Primeiras Palavras
Ao publicar o último Especial Política Sexual em Tempos de Pandemia de 2020, levantamos a hipótese de que ao longo de 2021, com a chegada das vacinas, a COVID-19 poderia deixar de ser nosso tema principal. Contudo, não foi assim. Desde então, ao sul do Equador, as infecções seguem seu curso e novos surtos irromperam, novas variantes continuam surgindo e as desigualdades brutais no acesso à vacina fazem com que o horizonte do fim da pandemia continue muito distante. Além disso, no cenário político global, tanto persiste ou se agrava o autocratismo, como também ocorreram crises políticas graves em alguns países e, em outros, novas ebulições políticas e sociais eclodiram. Sobretudo, as desigualdades, em todas as suas manifestações, se agravaram. Mais uma vez, portanto, é preciso fazer um panorama da pandemia e de seus efeitos antes de olhar mais de perto as dinâmicas e fatos mais relevantes da política sexual.
Boa leitura!
Estado da Pandemia
Em julho de 2021, mais de 192 milhões de casos e mais de 4 milhões de mortes por COVID-19 tinham sido registrados no mundo. As campanhas de vacinação iniciadas no final de 2020 começaram a frear esses números, porém nada indica que o Sars-Cov-2 vai ser erradicado tão cedo. As novas variantes do vírus, a desigualdade na distribuição e aplicação das vacinas, bem como os impactos socioeconômicos da pandemia sugerem que a hipótese do caráter sindêmico da COVID-19, de que falamos no balanço do primeiro ano da pandemia, está se confirmando. No Sul Global, as taxas de infecção persistem e novos surtos eclodiram desde janeiro. Se, no continente africano, mal começam a ser vacinados os grupos prioritários, nos EUA, na Europa, Austrália, Nova Zelândia e mesmo no Chile e Uruguai já se fala de doses de reforço para os próximos meses (EUA e países europeus).
Como se sabe, a América do Sul registra altos índices de casos e mortes desde o início da pandemia e, embora a vacinação avance, países como o Paraguai e a Colômbia ainda enfrentam grandes surtos da doença. Em junho, na região como um todo, a incidência de novos casos diários era quase 10 vezes maior que a registrada na Europa. Na Ásia como um todo, embora a pandemia tenha arrefecido na Índia, as mortes podem ter chegado a 4 milhões, e países como Tailândia, Vietnã e Indonésia registram hoje seus piores números. O mesmo acontece na África, região onde a COVID-19 parecia relativamente contida em ondas anteriores, mas agora explodiu, como, por exemplo, na Tunísia, África do Sul e Uganda. Essas tendências sugerem que, embora, num primeiro momento, a letalidade da pandemia tenha sido incomparavelmente mais alta nos países afluentes, esse padrão está se alterando por efeito das vulnerabilidades diferenciais e das disparidades no acesso a vacinas.
Nos países em que as campanhas de vacinação estão indo bem, a disseminação do vírus e as hospitalizações e mortes decorrentes da COVID-19 são reduzidas e há sinais de retomada da atividade econômica. Mas, como mostra esse mapa publicado pelo New York Times, há discrepâncias inter-regionais brutais no que diz respeito ao acesso a vacinas e velocidade de vacinação. A situação dos países africanos é especialmente dramática, e reflete tanto os problemas de compra de insumos por parte do mecanismo COVAX quanto demais barreiras de acesso a tecnologia de vacinas, como é o caso das restrições decorrentes das patentes. Mas, como bem analisa Mathias Alencastro, o “apartheid sanitário africano” tem origens muito profundas.
Além disso, a tendência deletéria registrada já no começo da pandemia, de que a corrupção estava se instalando no circuito de compras de insumos para o enfrentamento à COVID-19, agora se estende a aquisições de vacinas. O Brasil, país com o segundo maior número de mortos no mundo, é hoje também o epicentro desses escândalos, nos quais militares que ocupam cargos de alto nível no governo Bolsonaro estão implicados. E, há indicações de que o atraso na compra de vacinas esteja relacionado com essa dinâmica de corrupção.
Adicionalmente, internamente aos países há também diferenciais de acesso à vacina relacionados com desigualdades raciais e sociais. E, como mostra o COVID-19 Sex-Disaggregated Data Tracker, também no que diz respeito a sexo/gênero. Nos EUA, Argentina e Brasil, por exemplo, as mulheres se vacinam mais, possivelmente porque a masculinidade dominante torna os homens avessos a medidas de proteção de saúde. Já na Índia e no Afeganistão, normas patriarcais que excluem as mulheres da vida pública operam no sentido oposto, ou seja, as mulheres têm mais barreiras para buscar serviços de saúde, inclusive vacinas. Na Índia, o diferencial entre gêneros no acesso à saúde pode explicar parte do grande sub-registro de mortes por COVID-19. Mas é preciso também contabilizar a desconfiança e as campanhas contra vacinas, cujo efeito tem sido mais palpável nos países afluentes do que no Sul global. E, embora a recusa ou desconfiança da vacina esteja caindo, ainda é muito alta na Rússia (47%), Austrália (31%), Japão (23%), EUA (30%) e França (21%).
Finalmente, a medida que a pandemia avança, a vulnerabilidade diferenciada, por classe, raça e local de moradia, fica mais exposta. Em todo o mundo, as taxas de mortalidade são maiores no caso das populações negras, povos tradicionais, imigrantes e latinos (especialmente nos EUA), moradores de favelas, população de rua e também de outros grupos minoritários e discriminados. No que diz respeito a raça, os estudos disponíveis sobre o Brasil e Estados Unidos são contundentes nesse sentido. Numa perspectiva global, o ritmo lento e a precariedade da vacinação no contexto africano também deveriam ser interpretados como mais um reflexo das discrepâncias raciais da morbidade e letalidade.
E, em muitos contextos, gênero e reprodução também significam risco agravado de mortalidade. No Brasil, por exemplo, em maio de 2021, a letalidade entre gestantes e puérperas (7,2%) era quase o triplo da registrada na população como um todo (2,8%). Além disso, segundo a OPAS, apesar do risco agravado, a adesão de gestantes à vacina estava abaixo do esperado (ver também boletim da Fiocruz),
A persistência da pandemia também tem criado barreiras adicionais para o acesso à saúde de maneira mais ampla, ou seja, tratamento de outras enfermidades e resposta a outras necessidades de saúde. A atenção à saúde sexual e reprodutiva e aos serviços de aborto tem sido especialmente afetada. A OMS estima que cerca de 23 milhões de crianças deixaram de ser vacinadas contra enfermidades básicas. No Brasil, as cirurgias de processo transexualizador do SUS caíram 70% em 2020.
Economia na Pandemia
A COVID-19 também é uma crise econômica. Provocou uma brutal recessão, destruiu setores produtivos, aprofundou e recriou padrões de desigualdade e de exclusão. No primeiro especial, sublinhamos que a escala e velocidade da crise que se anunciava estavam vinculadas às condições do capitalismo no século 21: intensificação da circulação de capitais, bens e pessoas, cadeias globais de produção e elevados padrões de desigualdade. E, à medida em que a pandemia se alastrava, viu-se que seus drásticos efeitos eram, sobretudo, determinados pelo desfinanciamento ou privatização dos sistemas de saúde pública, precarização do trabalho, erosão dos direitos trabalhistas e demais redes de proteção, impactos decorrentes das muitas décadas de políticas neoliberais.
E, muito rapidamente, a crise foi, fortuitamente, nomeada “shecession” (“a recessão delas”), pois mais da metade das 453 milhões de pessoas que podem ser atiradas à pobreza até 2030 são mulheres (veja uma compilação em inglês) que trabalham no setor informal, em especial o trabalho doméstico e o trabalho sexual. Esses efeitos do gênero, cruzado por diferenciais de classe e raça, não vão desaparecer num horizonte próximo e, como analisa com acuidade artigo do The Lancet, assinado pelo diretor da OMS, diretoras e diretor da UNIFEM, FNUAP, UNAIDS e Anistia Internacional, Relatoras Especiais da ONU e feministas como Gita Sen e Débora Diniz, a crise sanitária e econômica da COVID-19 exige um compromisso robusto com a igualdade de gênero, inclusive em razão dos efeitos deletérios sobre a saúde, em especial a saúde sexual e reprodutiva.
Mais recentemente, contudo, outro dramático impacto social da pandemia ganhou visibilidade: o crescimento massivo dos números de órfãos que decorre do aumento da letalidade de pessoas mais jovens. Essa crise é global, e os número disponíveis sobre a Índia e o Brasil são assustadores (ver compilação). A orfandade decorrente da COVID-19, por um lado, não está dissociada das questões de gênero, em razão do papel das mulheres na chamada economia do cuidado. Por outro, seus desdobramentos sociais em termos de níveis de pobreza e acesso à educação não poderão ser equacionados na ausência de políticas robustas de proteção social que, de fato, não existem na maioria dos países.
Contudo, é importante referir que a crise econômica e social decorrente da COVID-19 também aqueceu os debates em torno da urgência do enfrentamento das desigualdades. Programas emergenciais de transferência de renda foram, inesperadamente, adotados por muitos países, tanto ao Sul quanto ao Norte do Equador, e reabriram-se discussões que estavam trancadas nas gavetas do gerenciamento neoliberal. O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), gestor máximo da austeridade fiscal, recomendou a continuidade dos pacotes em 2021. E outras instituições hegemônicas adotaram discursos fortes sobre a desigualdade, como, por exemplo, o Fórum Econômico de Davos, que teceu críticas severas ao neoliberalismo. Em julho de 2020, 80 indivíduos entre os mais ricos do mundo também fizeram uma declaração pública pedindo por maiores impostos sobre grandes fortunas como um dos remédios possíveis para a crise.
Esse nova tônica foi, de fato, acompanhada de robustos investimentos estatais de contenção da crise nos países afluentes, os quais desobedecem aos cânones neoliberais. Em maio, a Comissão Europeia propôs um pacote de recuperação pós-pandemia de 750 bilhões de euros, enquanto a Alemanha e a França lançaram um fundo conjunto de reconstrução de 500 bilhões de euros; propostas que investem na redistribuição e na economia verde. E, no começo de 2021, o recém-eleito governo Biden lançou seu megapacote de recuperação econômica, considerado, nos mais variados quadrantes, como política neokeynesiana destinada a enterrar 40 anos de neoliberalismo, como sugeriu artigo do El País.
Passados seis meses, nos EUA a combinação de vacinação acelerada e com estímulo à economia está tendo efeitos econômicos positivos rápidos. Na Europa, os impactos ainda não são palpáveis, pois o acordo do pacote ainda está sendo ratificado. Esses sinais são certamente positivos mas ainda não está claro se essa revisão das políticas econômicas nos países afluentes terá os efeitos esperados sobre a desigualdade, nem tampouco se irá replicar-se em outros contextos nacionais. Como veremos a seguir, a instabilidade política que grassa no cenário da COVID-19 não favorece compromissos governamentais com a superação das desigualdades. Sobretudo, são fortes os sinais de que nem mesmo a tragédia decorrente da pandemia possa reverter, facilmente, a lógica de acumulação capitalista no século 21 que está na origem dessas disparidades.
Enquanto as condições sociais eram devastadas pela COVID-19, os muito ricos ficaram muito mais ricos e, em alguns setores, as grandes corporações ampliaram significativamente seus lucros. Como analisa uma nota da Oxfam Brasil, um fator nodal do agravamento das desigualdades, durante a pandemia, é a financeirização que, inclusive, como já havia acontecido na crise de 2008, foi retroalimentada pelos pacotes emergenciais. A digitalização da economia é outro fator determinante: proprietários e CEOs das plataformas digitais foram os que mais ganharam com a crise. Finalmente, as empresas farmacêuticas e do setor privado de saúde foram as outras grandes beneficiárias da pandemia. No Brasil, onde a devastação causada pela COVID-19 tem sido caracterizada como genocídio, proprietários de dois grupos privados de saúde e de uma farmacêutica, que lucrou com a produção de cloroquina e ivermectina, estão na lista de bilionários Forbes 2021. O mesmo aplica-se à Índia, outro país devastado pela pandemia, pois o dono da Serum, que produz a vacina Covidshield (AztraZeneca), também é um dos bilionários de 2021.
A pesquisa Investors Watch do banco suíço UBS ouviu 3.800 investidores, a maioria dos quais teve lucros significativos durante a pandemia. Segundo a pesquisa, 66% deles, inclusive latino-americanos, se sentem culpados por terem auferidos tantos ganhos em 2020 e 45% se declaram dispostos a doar mais para caridade. Cabe perguntar se caridade é a resposta de longo prazo mais adequada para a devastação social e econômica causada pela COVID-19 que, como sabemos, não pode ser dissociada dos efeitos sistêmicos de produção de desigualdades. Além disso, como observa o pesquisador Gedeão Locks, nada indica que esses sentimentos persistam quando a situação sanitária e econômica der sinais de normalização.
Política: Normalização da Anormalidade?
O ano de 2021 começou com um acontecimento político icônico: o ataque de 6 de janeiro ao Capitólio (veja cobertura especial contínua do New York Times ). Nos EUA, desde então, as condições democráticas institucionais foram restabelecidas, mas no resto do mundo as derivas autocráticas, muitas vezes impulsionadas pelas respostas à crise da COVID-19, que estivemos registrando desde nosso primeiro Especial COVID, seguiram seu curso. Não só novos focos de arbítrio eclodiram, mas sobretudo essa anormalidade política, assim como ocorre com a própria pandemia, parece estar se “normalizando”.
O informe Autocratism turns viral (Autrocratismo Viral), recém publicado pelo V-Dem Institute, oferece números quantitativos robustos sobre essa rota persistente de desdemocratização, como por exemplo a evidência de que os níveis democráticos em 2020 retornaram ao que eram em 1990 e 2/3 dos países impuseram restrições à liberdade de imprensa. Além disso, no período Janeiro-Julho de 2021 aconteceram crises políticas graves: dois golpes de estado, um presidente assassinado e uma rebelião orquestrada. E na América Latina ocorreram novas erupções político-sociais assim como processos eleitorais significativos.
Autocratismos: Mais do Mesmo
Europa
Na Hungria, uma lei discriminatória contra organizações não-governamentais foi derrotada no Congresso, mas o projeto substituto não dissipou os temores de arbítrio. E, mais recentemente, frente a denúncias de que o governo estava recorrendo ao software espião Pegasus (saiba mais aqui) como controle político, o primeiro-ministro Orbán anunciou que vai convocar referendo sobre lei que discrimina abertamente a comunidade LGBTQ+. Na Polônia do ultraconservador Partido Lei e Justiça, as denúncias de violação de direitos civis continuaram, e chamamos atenção para a tentativa de enfraquecer órgãos de imprensa (no SPglobal, com mais detalhes). Na Bielorússia, o regime Lukashenko prossegue com a escalada repressiva contra órgãos de imprensa e sociedade civil organizada, cujo ápice foi o desvio de um voo comercial para prender um jornalista a bordo. Por fim, uma tendência inquietante vem da Alemanha, onde grupos de extrema-direita vêm ganhando espaço na política e na sociedade (aqui e aqui) na esteira da crise da COVID-19 e suas respostas. A Grécia, conforme relatou o openDemocracy, também experimenta um novo giro mais à direita no contexto das respostas à pandemia, havendo paralelos entre as medidas tomadas pelo governo conservador e o que se passa na Hungria.
Ásia
Na China, epicentro inicial da pandemia, eventos importantes aconteceram desde janeiro que adicionam sinais de que o fortalecimento dos aparatos estatais de vigilância, destinados a conter a COVID-19, sobre os quais escrevemos em edições anteriores não vai arrefecer. O primeiro deles foi a a apoteótica comemoração dos 100 anos do Partido Comunista, de que um dos lemas principais foi “sem o PCC a China não existiria”. A comemoração refletiu o poder e controle de Xi Jinping sobre a máquina partidária e projetou a imagem de uma China que ascende pacificamente, mas não vai se dobrar frente a outras nações. Apesar desse tom pacifista, o presidente Xi deixou claro que o controle político sobre Hong Kong não será flexibilizado, notadamente no que se referia ao sistema eleitoral e liberdade de expressão. Também foram registradas novas denúncias de violações de Direitos Humanos contra a minoria muçulmana Uigur e, como veremos a seguir, há novas ameaças no campo da política sexual.
Na Índia, em meio à devastadora segunda onda de COVID-19 que atingiu o país em abril e maio, continuam os ataques à liberdade de expressão e repressão política por parte do regime de Narendra Modi (aqui uma análise em inglês). Especialmente ignóbil foi a morte por COVID-19 do padre jesuíta Stan Swamy, de 84 anos, acusado pelo regime de terrorismo. Anand Grover, ex-Relator Especial da ONU para Saúde, em artigo para o jornal The Citizen (em inglês), analisa os detalhes do caso, seus antecedentes, as violações implícitas na prisão e na morte e suas implicações de longo curso para a política indiana. Segundo Grover, o tratamento do Padre Stan é um aviso de que o mesmo vai acontecer com todas e todos que se posicionarem como dissidentes do regime. Não menos relevante é a deterioração dos direitos humanos no Sri Lanka, onde, segundo relatório da Human Rights Watch, está em curso uma nova onda de intimidação de ativistas e ameaça às minorias Tamil e muçulmana, articulada com novos ataques ao judiciário.
Nas Filipinas, o presidente Duterte, assim como já havia feito quando decretou o lockdown no começo da pandemia, ameaçou prender quem se recusar a tomar vacina contra a COVID-19. Essa ameaça tem, de fato, outro alvo: mobilização da sociedade civil local contra a sistemática repressão do regime. Também chamamos atenção para a repressão contra as mobilizações iniciadas ano passado na Tailândia pedindo o fim da monarquia. No Cambodia, a pandemia tem sido instrumentalizada para ampliar práticas repressivas do regime no poder (saiba mais em inglês no The Guardian e na Human Rights Watch).
África
Também no continente africano a Anistia vem denunciando a instrumentalização da COVID-19 como pretexto para repressão e violações de direitos humanos no Chifre da África e na região Subsaariana, do que são exemplos Nigéria, Uganda, Quênia, República Democrática do Congo e, especialmente, Etiópia, onde um conflito armado está em curso desde 2020 (saiba mais na compilação). Na Argélia, as eleições legislativas foram marcadas por repressão e prisões de ativistas do movimento de contestação do regime Hirak. No Egito, o regime Sisi permaneceu sendo notícia por causa da repressão a ativistas de direitos humanos (mais análises em inglês no The Guardian e no France24).
América Latina
O Brasil é, sem dúvida, um destaque em termos de ameaças às instituições democráticas e aos pactos sociais. A ofensiva autocrática no Brasil, claramente, intensificou-se no primeiro semestre de 2021. E, como analisa André Petry, as ameaças de golpe tornaram-se mais frequentes e explícitas à medida que suspeitas e acusações de corrupção na compra de vacinas foram expostas na CPI da COVID. A ala militar do governo, envolvida nos escândalos (leia compilação aqui), tem adotado os mesmos mantras golpistas emitidos pelo presidente JMB, sendo exemplo a declaração do ministro da Defesa condicionando as eleições de 2022 à adoção do voto impresso. Esta obsessão do presidente, que emula o exemplo de Trump contra a lisura do sistema eleitoral nos EUA, ganhou estridência (aqui e aqui) com a divulgação de pesquisas de intenção de voto que indicam sua derrota no pleito do ano que vem. Frente à perda de popularidade, JMB também introduziu em seu repertório autoritário as motociatas, copiando estética do fascismo italiano, bateu o recorde de ofensas e insultos contra jornalistas (mulheres em especial) e, no final deste mês, encontrou-se, secretamente, com deputada da ultradireita alemã.
Na América Central, Bukele também ampliou o arbítrio governamental em El Salvador, lançando ofensivas contra ONGs, imprensa, lei de aborto e de identidade de gênero. Contudo, na sub-região, a situação deplorável da Nicarágua constitui um capítulo à parte. O regime Ortega-Murillo, que desde 2018 vem numa escalada incessante de repressão e violência, deflagrou agora uma nova onda de perseguição às forças de oposição e à imprensa para comprometer as eleições previstas para o final do ano. Várias feministas, jornalistas e pioneiros Sandinistas estão presos ou fora do país. Leia a compilação para informações mais detalhadas sobre a escala e os efeitos da repressão. Também recomendamos a Roda de Conversa organizada pela Revista Rosa que revisita a trajetória do regime e, sobretudo, debate a afasia das esquerdas regionais frente à tragédia política que se abateu sobre o país.
Novas Crises
Em Mianmar, um novo golpe militar ocorreu em fevereiro de 2021, seguido por repressão brutal a opositores, com relatos de prisão de profissionais de saúde atuando contra a COVID-19 (veja no El País, Global Voices, NYT e Aljazeera).
No Haiti, o presidente Jovenel Moïse foi assassinado por um comando mercenário em sua casa. Mais um episódio trágico num contexto nacional onde, desde muito, as catástrofes se sucedem. Leia nossa compilação com análises sobre o caso.
Finalmente, na África do Sul, onde a transição do apartheid para a democracia havia se caracterizado por uma significativa estabilidade, uma grave crise, qualificada como “sedição” por alguns analistas, tomou corpo quando protestos orquestrados por apoiadores contra a prisão por corrupção do ex-presidente Jacob Zuma deflagraram uma espiral de violência, saques e mortes, com mais de 300 vítimas fatais. As forças militares foram acionadas para conter o levante. Nota da Anistia Internacional afirma que as autoridades não deveriam estar surpresas com as proporções da violência porque, desde muito, falhas no sistema de justiça têm deixado impune atos de violência criminal. Um número importante de analistas, contudo, analisa os eventos, sobretudo, como um efeito retardado mas inevitável de repúdio à incapacidade do regime democrático para reduzir as desigualdades e responder às necessidades básicas da população. Na compilação que fizemos recomendamos, especialmente, o artigo da New Yorker (em inglês).
E, no final de julho, a Tunísia entrou na lista dos países cuja democracia está ameaçada. Após um longo período de reconstrução democrática desde a Primavera Árabe, o atual presidente demitiu o primeiro-ministro e suspendeu o Parlamento depois de manifestações contra a gestão da pandemia de COVID-19. A crise política aprofundou-se e pode ser analisada na compilação que preparamos.
Erupções
O cenário mais marcante foi a América Latina, onde um intenso estallido social está em curso na Colômbia, desde abril, quando irrompeu como protesto contra projeto de reforma tributária do governo Duque. Os protestos foram duramente reprimidos, mas persistem, embora sem soluções no horizonte. Veja compilação para entender as causas e condições do levante para além do estopim.
Não menos importante irromperam manifestações em Cuba, suscitadas pelo agravamento da pandemia e das condições socioeconômicas mas também como protesto contra a falta de liberdade política. Os eventos suscitaram grande polarização, especialmente no campo da esquerda íbero-americana. Tão logo o governo controlou a situação, o governo Biden, numa medida decididamente contraprodutiva, adicionou sanções aos dirigentes cubanos nas regras do embargo. El País fez um balanço substantivo da erupção e dos debates.
E na Guatemala, onde protestos vigorosos haviam eclodido em 2020 para contestar orçamento do governo no contexto da COVID e de um furacão devastador, uma vez mais a população tomou as ruas, agora para protestar contra o afastamento do procurador responsável por investigações contra corrupção.
Processos Eleitorais
Equador e Peru realizaram eleições presidenciais com resultados opostos do ponto de vista ideológico. Em Quito, o ex-banqueiro Guilherme Lasso, conservador que, segundo consta, tem vínculos com a Opus Dei, venceu Andrés Arauz, candidato do Correísmo. A vitória de Lasso se deu após uma conjuntura eleitoral em que duas correntes de esquerda disputaram a chegada ao segundo turno, entre Arauz e o líder indigenista Yaku Pérez – que obteve desempenho significativo nas urnas. Essa circunstância é inédita na política eleitoral regional e diz muito sobre distorções e desafios da política partidária de esquerda na região. A revista Rosa publicou dossiê e realizou uma roda de conversa sobre o cenário eleitoral do país. As expectativas e perspectivas do novo governo foram analisadas por diversos veículos e reunidas em compilação.
No Peru, o sindicalista Pedro Castillo foi declarado vencedor mais de um mês depois da realização do pleito, após a apuração litigiosa que se seguiu à margem de votos apertada nas urnas. Embora sua vitória tenha sido celebrada por setores de esquerda latino-americanos, suas posições em relação a temas de gênero, sexualidade e aborto são extremamente conservadoras. Mas, como Castillo vai governar numa coalizão com outros partidos de esquerda abertos a essas pautas, essas visões talvez não se transportem para a política de estado. Leia compilação para entender melhor o cenário peruano.
Por fim, o Chile deu um passo importante e inspirador com a instalação da Convenção Constituinte que vai redigir a nova Carta de Direitos do país. Destacamos a regra de paridade de gênero para a ocupação das cadeiras e a perspectiva de correção de traços deletérios da sociedade chilena, como o autoritarismo e a desigualdade. Outra boa notícia foi a eleição da líder indígena Elisa Loncón à presidência da Constituinte. Veja o balanço do Observatório Género y Equidad, plataforma de monitoramento feminista de políticas públicas, e uma compilação de imprensa. Aproveitamos para destacar nosso especial sobre o Chile no período do estallido social que está na origem das mudanças em curso.
Panorama da Política Sexual
Tal como previu Clare Provost, as cruzadas antigênero não arrefeceram por causa da pandemia. Na verdade, as forças que as impulsionam abriram novas frentes de mobilização, criticando regras de distanciamento social e propagando fake news contra a vacina.
Essa vinculação é, de um lado, político-ideológica, como no caso das fakes news que circularam no ano passado associando a vacina à conspiração das “elites pedófilas” e as que circulam até hoje afirmando que são feitas com resíduos de fetos abortados, tendo que ser desmentidas até pelo Instituto Butantan (leia mais na compilação que organizamos). No Brasil, a chinesa Coronavac tem sido demonizada como vacina comunista (apelidada de Comunavac), que conteria um chip para esterilizar os homens brasileiros. Essa onda de pânico anticomunista, analisada por Isabela Kalil em debate no Canal Meio, seja no Brasil, seja no resto da América Latina, está sempre, direta ou indiretamente, associada à “ideologia de gênero”. Além disso, como mostra investigação exemplar da Agência Pública, há vínculos institucionais orgânicos entre esses campos, pois grupos médicos que atuam na linha de frente da oposição ao aborto e que estão vinculados a parlamentares conservadores e ao Ministério da Saúde estão engajados nas campanhas contra isolamento social e a favor do tratamento ineficaz da COVID-19 com cloroquina e ivermectina.
Campanhas antivacina também proliferam em outros países, especialmente nos europeus e nos EUA, onde, como já mencionado, seu impacto não é nada desprezível, levando o presidente Joe Biden a abrir fogo contra as redes sociais por causa da avalanche de desinformação. E, na França, 100 mil pessoas marcharam contra as vacinas. Para analisar esse fenômeno que é, a um só tempo paradoxal e inquietante, recomendamos o excelente artigo de Richard Parker sobre a produção da ignorância na pandemia.
Políticas Estatais Antigênero
Mas o giro das metralhadoras conservadoras religiosas e da direita em direção a vacinas não significa, contudo, que elas abandonaram seus alvos de sempre, usados como alavancas para, como tem sido analisado por várias autoras e autores, catalisar temores coletivos para fins antidemocráticos. Na Europa, por exemplo, seguem em curso os ataques contra a Convenção de Istanbul, que estabelece normas para prevenir a violência contra as mulheres.
Nos países onde a ideologia antigênero está instalada nas políticas estatais, como Polônia e Hungria, os retrocessos se aprofundam. Na Polônia, o governo avança com o ensino do catolicismo em todas as escolas. Na Hungria, o governo de Viktor Orbán também abriu uma nova ofensiva: em junho, o país aprovou uma lei, cópia da lei russa de 2012, que proíbe qualquer material com conteúdo LGBT+ nas escolas e restringe referências à homossexualidade em publicidade, filmes e outros produtos para audiências juvenis.
O Brasil, como se sabe, é outro país em que a política antigênero está estatizada, havendo um intenso intercâmbio com autoridades húngaras e polonesas. E, nesse mesmo período, um projeto similar ao húngaro foi apresentado na Câmara Municipal de São Paulo que, contudo, não o aprovou. Além disso, desde 2019, as ofensivas contra gênero na educação se desdobraram em proposições legislativas sobre educação domiciliar e Escolas Cívico-Militares que estão agora sendo debatidas no nível federal e estadual (leia mais em compilação). Outra linha de convergência entre esses três países são as políticas familistas que, como analisam Andrea Peto e Weronica Grzebalska (em inglês), estão no cerne da desdemocratização em curso na Polônia e Hungria. No começo de 2021, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos lançou, em parceria com a CAPES, o edital Família e Políticas Públicas no Brasil, cujos parâmetros foram criticados (aqui e aqui) pelo campo acadêmico que investiga gênero e família no Brasil.
Outras ofensivas
Mas a Europa Ocidental tampouco está imune à atuação cada vez mais articulada das forças antigênero. Um excelente informe do European Parliamentarian Forum on SHR, The Tip of the Iceberg, faz uma cartografia completa desses grupos, suas conexões e sobretudo recursos, revelando que seu financiamento não é predominantemente americano ou russo, como se supunha, mas, sim, europeu.
Na Europa, uma novidade dos últimos seis meses são os ataques à linguagem inclusiva de gênero, que estão a todo vapor na Espanha, Alemanha e França, só para listar alguns países. Neste último, o presidente proibiu a linguagem inclusiva nas escolas (ver mais, em inglês, na revista Foreign Policy). Também no Brasil, desde dezembro de 2020, 14 projetos de lei foram apresentados para proibir linguagem inclusiva nas escolas, imprensa e publicidade.
Na França, em particular, registram-se novas ramificações no campo de ataques à produção de conhecimento relacionada a gênero: os novos alvos são a teoria decolonial e o conceito de interseccionalidade (aqui). Essas investidas têm contornos muito franceses – pois acionam premissas de republicanismo e universalidade –, mas não devem ser completamente dissociadas das fortes ofensivas deflagradas, desde o ano passado, nos EUA contra a teoria crítica de raça, embates que, como analisa a excelente reportagem da New Yorker (em inglês), estão hoje no centro dos debates intelectuais americanos. Conflitos semelhantes já se manifestam na Austrália e, no Brasil, Mayara Paixão e Ronilson Pacheco também escreveram sobre essa nova e expansiva trincheira.
Direitos LGBTTQ+ Ameaçados
Nos últimos seis meses, também registraram-se violações de direitos e pessoas LGBTTQ+ por todos os lados. Na Espanha, o assassinato homofóbico de um jovem com origens brasileiras levou a inúmeros protestos pelo país. Na Lituânia, o parlamento se recusou a debater a lei do casamento igualitário. Na Geórgia, a violência direcionada à comunidade fez os ativistas cancelarem a Parada do Orgulho LGBT. Na China, conteúdos LGBTQ+ foram excluídos do WeChat sem explicações, ação celebrada por grupos nacionalistas. Na Guatemala, três ataques fatais em apenas uma semana chamaram a atenção da Human Rights Watch, e na Bolívia um cartório recusou-se a registrar o casamento de um casal de mulheres.
No continente africano também recrudesceu a violência contra a população LGBT+. Houve ataques a ativistas em muitos países, como Gana, onde se anuncia a criminalização do ativismo LGBT+. Em Camarões houve prisões de mulheres trans, e no Senegal a ofensiva começou com um ataque contra manual de educação para diversidade da UNESCO. Um ótimo podcast da AfricaNews discute a homofobia na África ocidental. E uma investigação do DemocraciaAbierta esmiuçou o tratamento discriminatório e as tentativas de tratamento e conversão em hospitais no Quênia, Tanzânia e Uganda. Nesse último país, a legislação de criminalização da homossexualidade ficou ainda mais rigorosa e essa reforma teve apoio de grupos de mulheres que apoiavam a criminalização do trabalho sexual. Mesmo na África do Sul, que conta com uma sólida legislação de proteção dos direitos LGBTT+, grupos conservadores tentam bloquear a legislação sobre os crimes de ódio (em inglês). Além disso, como já havíamos observado em edições anteriores, as ofensivas contra a educação em gênero e sexualidade continuam se multiplicando, em alguns casos como no Senegal associada a ataques contra as pessoas LGBTT+.
E, não menos importante, ofensivas especificamente antitrans também continuam se intensificando. Nos EUA, esse já é o ano com o maior número de projetos de lei que visam cercear direitos de identidade de gênero (em detalhes na Openly, em inglês). O presidente tcheco referiu-se a pessoas trans como “repugnantes” e, no Reino Unido, uma parte significativa da imprensa tem se alinhando às visões que se opõem aos direitos trans. No Brasil, desde muito campeão dos homicídios transfóbicos, 80 pessoas foram assassinadas apenas no primeiro semestre. E, como já sublinhamos em edições anteriores, correntes feministas antigênero e antitrans estão presentes em muitos dos ambientes em que se registra essa atmosfera hostil aos direitos de identidade de gênero.
Ofensivas Antifeministas
Em vários contextos também aconteceram ataques contra feministas. Na Turquia, onde as mulheres foram às ruas protestar contra a saída do país do acordo da Convenção de Istanbul, a repressão policial foi brutal. No Paquistão, as organizadoras da marcha do 8 de março foram acusadas de blasfêmia pela polícia, crime que, no país, tem pena de morte, acusação rejeitada posteriormente, mas que sinaliza para elevado grau de intimidação contra feministas. E, no México, muros foram construídos no Zócalo do Distrito Federal para “proteger edifícios públicos” das manifestações do 8 de março e o presidente López Obrador fez novas acusações às feministas.
Gênero e Sexualidade: Boas Novas
Considerando o estado da política no mundo e a persistente vitalidade das ofensivas antigênero, é alvissareiro constatar que são muitas as boas novas registradas entre janeiro e julho de 2021. Por exemplo, contra o pano de fundo da atmosfera adversa aos direitos de identidade de gênero, acima mencionada, há três notícias muito significativas.
A primeira delas foi a aprovação da nova lei espanhola de identidade de gênero, superando um longo e polarizado processo de debate, no qual as posições feministas que se opõem à transgeneridade tiveram muito peso inclusive no interior do PSOE. A segunda foi o decreto promulgado pelo Executivo na Argentina que complementa a Lei de Identidade de Gênero de 2012, autorizando o registro de pessoas não binárias no Documento Nacional de Identidade. E no Estado do México também foi adotada uma nova norma que facilita a mudança de sexo/gênero nas certidões de nascimento e outros documentos.
Além disso, registram-se várias boas notícias no âmbito do litígio e decisões judiciais de alto nível. Na Europa, por exemplo, a Comissão Europeia abriu uma ação de violação de direitos humanos fundamentais (também aqui) contra as medidas adotadas pela Polônia e Hungria contra pessoas LBGT+. E um número importante de julgamentos positivos aconteceu na América Latina, os quais, substantivamente, derivam da Opinião Consultiva 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em 2017, estabeleceu novos parâmetros para casos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero.
A primeira dessas decisões foi a condenação de Honduras pelo assassinato da mulher trans Vicky Hernandez, no contexto do golpe de estado de 2009, pela Corte Interamericana. A decisão é muito significativa porque diz respeito à violência estatal transfóbica e porque se fundamenta nos princípios da Convenção de Belém do Pará para erradicação da violência contra mulheres. Uma segunda decisão de mesmo teor foi emitida pela Sala III da Corte Constitucional da Costa Rica que reconhece que a vulnerabilidade da violência contra mulheres também se aplica a pessoas com gênero assignado. Finalmente, no Panamá, a Corte Suprema de Justiça julgou inconstitucional a regra de restrição de mobilidade baseada em sexo/gênero adotada pelo Ministério da Saúde do país em 2020, as quais foram objeto de crítica por Sonia Corrêa.
Voltando à Europa, na Itália, a lei contra crimes de ódios, que vem sendo debatida há muito tempo e que inclui sanções contra homofobia e transfobia, finalmente chegou ao Senado para votação final. A polarização era inevitável, num país em que, como analisou Massimo Prearo, o Vaticano tem enorme influência sobre a política sexual e a direita antigênero, que esteve no poder até pouco, continua tendo força no jogo político (veja uma compilação). E, na França, foi aprovada uma nova Lei de Bioética, cujos capítulos de reprodução assistida, especialmente o direito das lésbicas aos procedimentos, vinham sendo virulentamente atacados pelas forças conservadoras.
Também há boas notícias sobre política de erradicação da “cura de homossexuais” tanto na Índia quanto nos EUA. No primeiro caso, a Alta Corte de Madras condenou a prática e recomendou política de respeito aos direitos LGBT+. E, nos EUA, matéria da Open Democracy analisa como, desde 2019, várias cidades estão adotando normas legais e medidas de política executiva para proibir a oferta de “serviços de cura”.
E, mesmo na África sub-Sahariana, onde, como vimos, assiste-se a uma nova onda perseguições e agressões a pessoas LGBT+, há dois registros positivos a fazer. Em Ruanda, prepara-se a primeira marcha de orgulho LGBTT+. E, na Namíbia, o ministro da justiça anunciou que a lei colonial que criminaliza sexo entre homens será banida.
Finalmente, mas não menos importante, as Olimpíadas de Tóquio, apesar das enormes limitações impostas pela COVID-19, se tornaram um palco no qual uma profusão de demonstrações de diversidade sexual e religiosa aconteceu. Foi também quando, pela primeira vez na história, atletas trans e não-binários estão competindo. Não sem controvérsias, contudo. A confirmação da participação da atleta trans neozelandesa Laurel Hubbard nos Jogos gerou um debate acirrado, levando uma de suas concorrentes a chamar a decisão de “piada de mau gosto”.
Contudo, no cômputo final, como analisam historiadores brasileiros dos esportes entrevistados pela Folha, Tóquio vai ficar registrado como os Jogos em que a política transitou das tensões geopolíticas para as “questões universais”. Também vale a pena ler a excelente reportagem da Gênero e Número sobre participação LGBTT+, assim como a bem-humorada coluna de Millie Lacombe sobre as “xerecas” que valoriza tanto a presença das mulheres nos Jogos quanto todos os corpos que contestam a ordem dominante de sexo/gênero. Também aproveitamos para convidar os leitores a conhecer nosso especial sobre gênero e sexualidade nos Jogos Olímpicos de 2016 no Brasil.
Nações Unidas
Entre junho e julho aconteceu a 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, quando foram aprovadas resoluções e ocorreram debates relevantes em torno de gênero e sexualidade, como por exemplo as resoluções sobre violência de gênero, HIV-AIDS e saúde menstrual e esterilização forçada. O boletim da Sexual Rights Initiative (em espanhol) traz um informe completo sobre a sessão, na qual também aconteceu um protesto virtual da sociedade civil contra as restrições à participação, estabelecidas como regras de contenção à COVID–19, mas que, de fato, parecem cumprir outros objetivos políticos.
GATE, Global Action for Trans Equality, também informa em seu boletim que a 47ª Sessão do CDH foi muito positiva para os direitos de identidade de gênero. GATE sublinha a importância da criação da coalizão feminista LGBTT+ em torno da declaração de Uma Afirmação de Princípios Feministas (o site tem uma página em português), que reitera a perspectiva inclusiva do pensamento e ativismo feminista em relação a gênero. Também parabeniza Victor Madrigal, o Especialista Independente para Orientação Sexual e Identidade de Gênero pela apresentação de seu primeiro relatório sobre “gênero” intitulado Direito à Inclusão (em espanhol). O SPW também parabeniza o Especialista Independente pela qualidade e consistência do informe como resposta institucional necessária às ofensivas antigênero que têm proliferado sem cessar na última década. Como bem analisa Jamil Chade, em artigo do UOL, o relatório é especialmente relevante para o contexto de política sexual no Brasil.
Outro evento importante das Nações Unidas realizado entre janeiro e junho de 2021 foi o Fórum Geração e Equidade (FGE), planejado, originalmente, para marcar os 20 anos da Conferência Mundial da Mulher de Beijing, mas adiado por causa da COVID-19. Realizado de forma virtual em dois eventos coordenados a partir do México e da França, o FGE não só reafirmou as definições emanadas das Conferências dos anos 1990 como estabeleceu compromissos dos estados com financiamento de políticas e estruturas para assegurar a igualdade de gênero numa perspectiva interseccional. Ver aqui uma síntese dos resultados finais (em inglês, francês e espanhol).
Direito ao Aborto
Retrocessos e ameaças
Considerando o contexto mais amplo das derivas autocráticas, seja de longo curso, seja as mobilizadas pelas respostas à crise da COVID-19, também se registram retrocessos com relação ao direito ao aborto. Um deles foi a entrada em vigor de legislação, na Polônia, que retirou o direito do aborto em caso de má-formação fetal e tornou extremamente difícil o acesso ao procedimento. Também na Lituânia e na Romênia, segundo informa The Conversation, o procedimento de aborto deixou de ser considerado serviço essencial nos hospitais durante a pandemia.
Nas Américas, há também razões de inquietação. A começar pelos EUA onde, desde a chegada ao poder de Joe Biden, o espectro da derrubada de Roe Vs. Wade ficou muito mais denso, especialmente com a chegada de Amy Barrret (aqui e aqui) à Suprema Corte. Hoje, dada a nova composição da Corte, os riscos de que restrições drásticas limitem o direito ao aborto estão amplificados. E, no âmbito dos legislativos estaduais, para fazer contraponto à posição pró-aborto do Executivo Federal, projetos restritivos continuaram se multiplicando: entre janeiro e fevereiro, mais de 380 proposições com esse teor foram apresentadas. Uma nova lei aprovada no Texas e outra no estado do Mississipi ganharam repercussão internacional (saiba mais em inglês aqui e aqui). Além disso, parte dos bispos norte-americanos clamaram pela proibição de que políticos favoráveis ao aborto, o que inclui o presidente Biden, comungassem, o que forçou, inclusive, um posicionamento do papa.
Além disso, na Argentina, cuja reforma legal foi um sopro de energia para toda a região, a entrada em vigor da lei de aborto incitou a fúria dos setores contrários ao direito, que passaram a atacar sistematicamente a legislação, conforme analisou o grupo ELA, inclusive com decretos executivos e decisões judiciais. O novo panorama do contexto argentino pode ser melhor compreendido na nossa compilação que inclui matérias da Página 12, Infobae e La Malafe. Na verdade, essa belicosidade está presente em toda a região, como resposta à reforma da Argentina e ao governo Biden.
Nesse sentido, o cenário brasileiro também é preocupante depois da eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL), um franco aliado das forças contrárias ao aborto, à Presidência da Câmara dos Deputados (aqui e aqui). Em julho, balanço feito pela Pública informa que a situação é, de fato, crítica. Na mesma semana, o executivo enviou ao Congresso um projeto de lei para instaurar no Brasil o Dia do Nascituro. Nessa conjuntura, cabe destacar as restrições em curso à possibilidade das mulheres terem acesso a abortos seguros, mesmo nos casos em que é legal, como mostram a matéria do Portal Catarinas sobre uma mulher que foi levada à delegacia de polícia depois de receber Misoprostol pelo correio e o artigo da Piauí sobre o ataque judicial contra o primeiro serviço de aborto legal por telemedicina.
Além disso, as eleições nacionais no Equador e no Peru também sinalizam para obstáculos nesse terreno. Guillermo Lasso, o novo presidente equatoriano, tem ligações fortes com o campo ultracatólico. Muito significativamente, já eleito, declarou que, em nome da democracia, vai respeitar plenamente a decisão da Suprema Corte sobre o direito ao aborto no caso de estupro. Isso não significa, contudo, que mais adiante, sob pressão das forças antiaborto, medidas que dificultam o acesso ao procedimento não sejam adotadas. No caso do Peru, o novo presidente, Pedro Castillo, desde a campanha declarou-se contrário ao direito ao aborto e sua legalização. Mas, como seu governo conta com o apoio de outros partidos de esquerda que são favoráveis à descriminalização, a radicalidade dessa posição talvez possa ser atenuada.
Vitórias e Resistências
Por outro lado, o direito ao aborto também obteve vitórias importantes no primeiro semestre de 2021. Em relação a mudanças de ordenamento jurídico, destacamos a já mencionada decisão de abril da Corte Constitucional do Equador que descriminalizou o procedimento nos casos de gestação por estupro, avanço importante mas que não encerra os inúmeros desafios na questão, conforme também aponta relatório da Human Rights Watch.
No México, o aborto foi descriminalizado nos estados de Hidalgo e Vera Cruz, e a Suprema Corte eliminou os prazos para abortar em caso de estupro. Avanços legais também foram registrados na Tailândia, onde o Parlamento aprovou em janeiro lei que autoriza o procedimento até a 12ª semana de gestação, e em Gibraltar, onde referendo ratificou em junho mudança na lei permitindo aborto em casos de risco à saúde física e mental da mulher e de inviabilidade fetal.
Na Colômbia, o movimento feminista deu um passo fundamental: lançou a campanha Causa Justa para reclamar junto à Corte Constitucional a retirada plena do crime de aborto da lei penal. Caso o resultado seja positivo, a Colômbia será o segundo país do mundo a não considerar o aborto um crime (o outro é o Canada).
Também é muito positivo que em Honduras a reforma constitucional de janeiro que legislou sobre a proibição futura de legalizar o aborto tenha gerado uma expressiva contestação feminista e, seis meses mais tarde, foi apresentada à Corte Constitucional uma demanda de descriminalização do aborto em três casos. E, na Venezuela, celebra-se a libertação da ativista e professora Vanessa Rosales depois de oito meses presa por ter ajudado uma menina de 12 anos, vítima de estupro, a abortar. Da mesma forma, noticiamos com esperança e alívio a notícia (aqui e aqui) da liberação da salvadorenha Sara Rogel depois de 10 anos presa por ter sofrido um aborto espontâneo, tipificado pela justiça como “homicídio qualificado”.
Finalmente, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução definindo o acesso ao aborto como direito humano, como resposta institucional aos países-membros que ainda criminalizam o aborto, ampliaram as restrições de acesso ou restringiram serviços de aborto em meio à pandemia de COVID-19.
Luto
Estamos em luto pela morte de quase 600.000 pessoas no Brasil por efeito da COVID-19. Perdas humanas cuja escala não pode ser atribuída à letalidade do Sars-Cov-2, mas sim a determinantes sociais e políticos, mais especialmente à lógica neo-Darwinista de deixar morrer em que se baseou a resposta do Governo Federal à pandemia. Mas também nos enlutamos por perdas singulares de pessoas, cujo pensamento e ação política foram e continuaram indeléveis no campo em que atuamos.
Susana Checa, ativista e pioneira pelo direito ao aborto. Socióloga, professora da Universidade de Buenos Aires, integrante histórica da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal Seguro e Gratuito. Pioneira da docência sobre gênero e direitos sexuais e reprodutivos, em parceria com Martha Rosenberg escreveu “Aborto Hospitalizado – uma questão de direitos reprodutivos, um problema de saúde pública”. Leia em mais detalhes no Página 12.
Fran Demétrio, primeira mulher transexual docente da Universidade Federal do Recôncavo Baiano. Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB), Fran era coordenadora do Laboratório Humano de Estudos, Pesquisa e Extensão Transdisciplinares em Integralidade e Interseccionalidade do Cuidado em Saúde e Nutrição, Gêneros e Sexualidades da UFRB. A Abrasco se manifestou sobre a perda.
Roberto Machado, filósofo e professor aposentado da UFRJ cuja trajetória intelectual foi determinante para o diálogo brasileiro com os filósofos Gilles Deleuze e Michel Foucault. Deve-se a Machado a vinda de Foucault ao Brasil nos anos 1970. Em homenagem, recomendamos a mesa-redonda organizada pelo Instituto de Medicina Social da Uerj que discutiu e celebrou a importância do filósofo.
Contardo Calligaris, psicanalista, escritor e intelectual de primeira ordem nos debates nacionais sobre sexualidade, gênero, cultura e política e cujas colunas na Folha de São Paulo tantas vezes reproduzimos.
José Arthur Gianotti, filósofo e intelectual público que, durante décadas, contribuiu para o debate político nacional com admirável compromisso com a liberdade de pensamento.
Arte&Sexualidade
Os Jogos Olímpicos de Tóquio nos inspiram a revisitar uma breve nota, Arte, Risco, Desconstrução sobre o teatro físico de Elizabeth Streb, que inclui um vídeo sobre as performances feitas nas Olímpiadas de 2012 de Londres.
Por duas razões também revistamos Paula Rego, a pintora portuguesa dos “pasteis do aborto”. A primeira é que, em março de 2021, em parceria com CLACAI, o SPW realizou dois seminários virtuais sobre a reforma legal do aborto na Argentina (ver abaixo). Mas também porque, neste momento, o museu Tate Modern, em Londres, faz uma retrospectiva da obra da pintora que inclui trabalhos nunca antes exibidos.
Recomendamos
Nesse número, essa seção compartilha eventos virtuais realizados pelo SPW, ABIA e GTPI e análises sobre ideologia e políticas antigênero nas suas interseções com a chamada nova direita.
Seminários virtuais
Português e Espanhol
Direito ao Aborto na Argentina: Refazendo percursos – Perspectivas do ativismo feminista e trans
Direito ao Aborto na Argentina: Refazendo Percursos – Outros Olhares
“Princípios de Yogyakarta: ganhos, limites e ameaças”, com Sonia Corrêa, Mauro Cabral e Daniel Caye no Congresso Internacional da ABEH.
Políticas antigênero na Europa e América Latina – Congresso Fazendo Gênero 2021, com David Patternote, Sonia Corrêa, Lilian Abracinskas
Abia Podcast: estigma, discriminação e direitos humanos – com Richard Parker
Workshops Abia “Respondendo ao Estigma ao HIV no Brasil”
Inglês
Reproductive Righteousness and the Alt-Right State: A Feminist Symposium – REPROSOC Program, Cambridge University
“Right wing gender politics in the Global South” – Wits University, África do Sul
Artigos selecionados
Genealogias
Ideologia de gênero: assim surgiu o espantalho – Sonia Corrêa – Outras palavras
Neoliberais e ultradireita: o tronco único – Quinn Slobodian – Outras palavras
“Destruição é a agenda do Tradicionalismo”, a ideologia por trás de Bolsonaro e Trump – El País
Benjamin Teitelbaum
Benjamin A. Cowan: O Brasil e a nova direita – Revista Fapesp
A criação da direita religiosa – Miguel de Almeida – O Globo
As origem católicas do feminismo radical – Leona Wolf
A epidemia crescente da transfobia nos feminismos -Bruna Benevides
Conexões transnacionais
Os milhões enviados da Polônia a conservadores da TFP no Brasil e no mundo – Uol
Governo usa “família” para combater o que chama de “ideologia de gênero” – Jamil Chade – Uol
Partido alemão que se encontrou com Bolsonaro só é recebido por párias – Jamil Chade – Uol
“Negócio de Fátima”: como medalhas de santos financiam a TFP pelo mundo – Uol
Política externa
Artigo: Sem Trump e Ernesto Araújo, o Brasil vai retomar o compromisso histórico em debate sobre gênero na ONU? – Gustavo Huppes e Sonia Corrêa
EUA e ONU querem direito à saúde sexual como dever estatal; Brasil resiste – Jamil Chade – Uol
Fora, Ernesto – El País
Com apoio do Brasil, Santa Sé obtém status oficial na OMS e preocupa grupos – Jamil Chade – Uol
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