Em janeiro de 2025, o Diário Oficial da União publicou a Resolução 258/2024 do CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes. Essa norma assegura o acesso ao aborto legal para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, garantindo um direito previsto em lei desde 1940 e protegendo a dignidade dessas meninas.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 informa que no Brasil, ocorre um estupro a cada seis minutos. As principais vítimas são meninas (88,2%), negras (52,2%), com até 13 anos (61,6%). Em 84,7% dos casos, o agressor é um familiar ou conhecido da vítima, e 61,7% das violências acontecem dentro da própria casa. Esses números escancaram uma realidade cruel e inaceitável: meninas são violentadas, muitas vezes de forma sistemática, e ainda enfrentam enormes barreiras para acessar seus direitos. A Resolução 258 responde a essa dolorosa realidade, garantindo acesso ao aborto legal, direito assegurado há mais de 80 anos e detalhando o fluxo de atendimento que o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) deve adotar nesses casos.
A garantia desse direito, no entanto, é hoje obstaculizada por forças antidemocráticas seculares e religiosas que ignoram ou minimizam a epidemia de estupros contra meninas, e tentam impedir o acesso ao aborto legal. Essas ações alimentam a dupla violência do abuso e a da gravidez forçada. Essas crianças não são mães, são vítimas de crimes brutais.
Ao adotar a nova diretriz, o CONANDA cumpre seu mandato como órgão deliberativo. A resolução não propõe nenhuma inovação legal, apenas garante a implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) balizando intervenções cotidianas do Sistema Nacional de Proteção. O enfrentamento da violência sexual e da gravidez forçada exige medidas concretas e imediatas: garantia de acesso à justiça formação obrigatória de profissionais da saúde, educação sobre direitos sexuais e reprodutivos, criação de fluxos de atendimento eficientes e sem burocracia, e responsabilização de quem impede o acesso a esse direito fundamental.
O apoio à resolução e sua implementação efetiva é fundamental para o acolhimento e a proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Discursos e atos políticos que visam impedir sua aplicação implicam revitimização e desproteção. Não é possível esperar “mais um pouquinho” para quem teve sua vida dilacerada pela violência. A resolução já cumpriu um papel crucial no debate nacional sobre aborto legal e atendimento humanizado. O próximo passo é sua implementação pelo SGDCA, fortalecendo políticas públicas e garantindo a erradicação da violência sexual contra crianças e adolescentes.
Esse passo depende da mobilização social e do compromisso dos entes federativos. O silêncio e a omissão são cúmplices da violência. Precisamos, como sociedade, escolher de que lado estamos: se do lado das crianças ou dos estupradores.
Marina de Pol Poniwas é psicóloga do Judiciário, conselheira do Conselho Federal de Psicologia e ex-presidenta do CONANDA.
Deila Martins é assistente social, especialista em intervenções psicossociais com grupos em situação de risco, conselheira do CONANDA, coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares e da Plataforma Dhesca Brasil.