Carla Gisele Batista
No último 8 de março o Chile chamou a atenção do mundo com a maior manifestação de todos os tempos. Em Santiago, cerca de 2 milhões de pessoas foram às ruas. Em todo o país as mobilizações, algumas delas multitudinárias, vinham acontecendo num contínuo desde o 18 de outubro de 2019, em um processo que ficou conhecido como estallido social, quando “a revolta passou a ser um gesto permanente”.
Em janeiro deste ano (2020) fui ao Chile ver de perto a movimentação. Fazia diariamente o percurso Alameda até a Praça da Dignidade, região de universidades, bastante destruída pela situação de guerra imposta pelas forças a serviço do renitente presidente Piñera, que atacam diariamente a civis. A população nem por isso recuou, muito pelo contrário. Foi aprendendo a se defender dos gases, ácidos, tiros que miram os olhos, quando não matam, das prisões. Ao sentimento de revolta contra o regime neoliberal, implantado no país desde o golpe que tirou Salvador Allende do poder, soma-se o de solidariedade cidadã na luta contra o poder instituído. Cai por terra sua fachada democrática. Os partidos políticos e as corporações midiáticas são também criticados e repelidos.
O descontentamento e reivindicações abrangem, de forma mais concreta, o preço a ser pago pela saúde e a educação, privatizadas e inacessíveis para a maioria da população, a ausência de direitos trabalhistas e baixos salários que se somam a uma aposentadoria de fome, o valor dos transportes e serviços, a privatização da água, entre outros/as. As ruas e avenidas estão cobertas de cartazes e pixações, de todos os tamanhos e cores, que os expressam. É um movimento feito majoritariamente por jovens, mas que encontra respaldo (e admiração) em todas as gerações.
Abriu-se, neste momento, um parênteses. Há duas semanas as grandes manifestações que aconteciam, em maior dimensão, todas as sextas feiras santiaguinas na Praça da Dignidade (a antiga Plaza Itália, ocupada e renomeada pelos/as ativistas) e cercanias, estão suspensas em função da prevenção ao novo coronavírus. Às reivindicações anteriores, em um contexto de pandemia e crise sanitária, se somam o não ao toque de recolher, à militarização, o chamado à greve e quarentena gerais, visto que o ministro da saúde, Jaime Mañalich, tem descartado a quarentena geral*, apostando em reclusões localizadas.
Para ampliar a compreensão, compartilhamos aqui as entrevistas com a psiquiatra Danae Sinclaire, que nos conta como se organizaram os serviços e brigadas de saúde, numa perspectiva dos direitos humanos, para atender às vítimas da violência policial; Bárbara Sepúlveda, das Advogadas Feministas – ABOFEM, aborda o suporte jurídico oferecido diante da violência estatal; Jaime Barrientos nos oferece um olhar de especialista em educação e gênero; Franco Fuíca, militante trans, avalia o processo que culminou na aprovação da Lei de Identidade de Gênero e como os movimentos LGBTs estão atuando nesta conjuntura. Lei do aborto, Proposta de uma nova constituição, avanço do fundamentalismo religioso, a atuação dos movimentos feministas, foram também temas destas conversas.
Duas outras entrevistas foram publicadas pela coluna Mulheres em Movimento, na Folha de Pernambuco. Duas gerações de feministas: Veronica Matus, da Corporação da Mulher La Morada e Javiera Vallejo da Coordenação 8M tratam da organização feminista no Chile do estallido social.
Acredito que a solidariedade que perpassa hoje o tecido social chileno, reaprendida no processo do estallido social, vai contribuir para o enfrentamento à epidemia e para que quando retornem à luta, ela se faça ainda mais forte e resistente no sentido de alcançar os seus objetivos. Boa leitura!
Entrevistas e tradução: Carla Gisele Batista
Edição: Fábio Grotz e Carla G. B.
*No domingo, 5 de abril, os dados oficiais para o país eram de 4.471 contaminados/as e 34 pessoas mortas por covid-19. No Chile também há subnotificação, diante da incapacidade global de fazer testes em larga escala.