por Massimo Prearo
Que palavras como “revolução”, “mudança” ou “guinada” sejam atribuídas a uma instituição religiosa como a Igreja Católica, ou às palavras de um papa, diz muito, na minha opinião, sobre a dificuldade de se situar em uma perspectiva de longo prazo a politologia das questões de gênero, sexualidade e família, especialmente na Itália, onde continua-se a acreditar que as decisões políticas sobre esses assuntos sejam ditadas a partir das cabines de comando do Vaticano.
A posição manifestada pelo papa Francisco acerca das uniões civis entre pessoas do mesmo sexo no dia 21 de outubro não faz mais do que reafirmar o fato de que a Igreja e os católicos estão num mundo secularizado, no qual a religião e as referências doutrinárias são colocadas como pano de fundo ou em segundo plano, sendo úteis apenas – se esse for mesmo o caso – como argumentos ou expedientes retóricos a serem empregados unicamente quando necessários.
Ou seja, é como se estivéssemos numa corrida ofegante, cansativa e muitas vezes ridícula para reposicionar a Igreja no mundo (a primeira vez que o casamento de pessoas do mesmo sexo foi reconhecido aconteceu na Holanda em 2001 e a última vez foi na Costa Rica em 2020). Essa corrida não é tanto para influenciar as decisões políticas (pois seria um pouco tarde para isso), mas sim para salvar o que ainda pode ser salvo de uma base católica secularizada, para a qual os preceitos religiosos já não estão no mesmo nível das leis do Estado e para a qual os princípios democráticos de justiça, liberdade e igualdade – ou alguma versão mais restritiva dos mesmos – já não podem ser sacrificados no altar dos “princípios não negociáveis”.
Em 2016, durante o debate legislativo sobre uniões civis na Itália e casamento entre pessoas do mesmo sexo, as forças de direita que se opunham ao projeto frequentemente o faziam usando argumentos “científicos” e “antropológicos” e não religiosos. Ao contrário, no campo da centro-esquerda, os que apoiavam a proposta muitas vezes se valiam em argumentos religiosos e referiam-se justamente à figura do papa Francisco. Mas há uma lembrança mais distante. Em 2005, durante o referendo para a revogação da Lei Nº 40 sobre reprodução assistida, o Vaticano e a Conferência EpiscopaI Italiana (CEI)[1] lutaram tanto pela manutenção da lei que ela se converteu, para alguns, numa “lei católica”, pois aceitava a fertilização homóloga, no contexto do casal, proibindo a fertilização heteróloga, fora do casal.
O mesmo vale para os primeiros projetos de lei sobre as Disposições Antecipadas de Tratamento (relativo a cuidados paliativos e morte digna) que encontravam certo respaldo episcopal, justificado pela ideia do “mal menor”. Ou seja, para a Igreja Católica é melhor estabelecer um limite enquanto seja possível do que deixar aberta a possibilidade de que os tribunais, as cortes ou as novas maiorias políticas abram ainda mais essa brecha, levando à aceitabilidade da eutanásia. E não esqueçamos o discurso “franciscano” sobre a pastoral do aborto, que o condena como pecado abominável, mas estende a mão à mísera pecadora.
Muito diferente é o discurso do novo movimentismo católico “pró-vida”, antigênero e pró-família, que se nutre de doutrinas intransigentes e de leis “naturais” escritas diretamente por Deus na pele de humanos e, sobretudo, pode-se dizer, das mulheres, para não pode aceitar tais “aberturas”. Mas quando olhamos mais de perto, a secularizaçã também, afetou esse movimentismo que agora age independentemente das declarações do papa Francisco, das posições da CEI ou das fileiras de bispos-marionetes sempre de plantão.
Também para o movimentismo neocatólico, se preciso for, a retórica religiosa é bem-vinda para sustentar um argumento ou um slogan. Caso contrário, seguirão adiante sozinhos ou bem acompanhados com as vozes “seculares” de Giorgia Meloni, Matteo Salvini, Maurizio Gasparri, Paola Binetti, Isabella Rauti, Lucio Malan e Simone Pillon e companhia, em direção ao que o senador Gaetano Quagliarello chama de “catolicismo antropológico”. Para ilustrar esse exemplo, basta verificar o tuíte de Gasparri com a foto do sorridente Massimo Gandolfini, líder do movimento italiano antigênero e “pró-família”, que se denomina Dia de Família, ao lado de lideranças partidárias de centro-direita, direita e extrema-direita durante a manifestação nacional de 17 de outubro contra o projeto de lei proposta pelo deputado Alessando Zan que quer criminalizar a homotransfobia como discurso de ódio.
Na verdade, será melhor seguir com eles, já que são eles que hoje estão na cabine de comando do Parlamento, com a possibilidade de manipular a caneta do legislador para fazê-lo escrever uma lei que preveja o reconhecimento da união de duas pessoas do mesmo sexo, mas não os laços parentais existentes entre esse casal e seus filhos.
Esse posicionamento extraeclesiástico, extracatólico e intrapolítico é o que tenho definido como “neocatólico” para nomear uma política de movimentos que é nova em relação ao movimentismo católico “tradicional”. A hipótese neocatólica é como um dedo que aponta para a lua, indicando-a ao mesmo tempo em que faz a ela uma acusação. Essa lua é a Igreja, o papa, o Vaticano e a religião católica. Discutamos, assim, as declarações lunares do pontífice, mas sem esquecer do dedo apontado para ela pelo movimento neocatólico, pois é ele que hoje se move nos espaços institucionais, enquanto o papa sorri para os jornalistas.
Este artigo foi originalmente publicado em italiano e traduzido por Rogério Diniz Junqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
As reflexões compartilhadas neste artigo estão elaboradas com a devida extensão e profundidade no livro L’ipotesi neocattolica. Politologia dei movimenti anti-gender (A hipótese neocatólica. Politologia dos movimentos antigênero) escrito pelo autor e que será lançado em breve.
Massimo Prearo é cientista político, membro e coordenador científico do centro de pesquisas PoliTeSse – Política e Teorias da Sexualidade da Universidade de Verona (Itália). Ele tem publicações na área de estudos dos movimentos LGBTQI+, como Le moment politique de l’homosexualité. Mouvements, identités et communautés en France (PUL, 2014) e La fabbrica dell’orgoglio. Una genealogia dei movimenti LGBT (Edizioni ETS, 2015). Com Sara Garbagnoli, ele foi co-autor do livro La croisade anti-genre. Du Vatican aux manifs pour tous (Textuel, 2017, também disponível em italiano em Kaplan, 2018).
Imagem: Sem título, de L’Osservatore Romano (2000-01), León Ferrari.
L’Osservatore Romano faz referência a um jornal tradicional com o mesmo nome, preparado pelo Vaticano, cuja diretriz era contrapor as calúnias publicadas sobre o Pontificado Romano. O artista argentino Léon Ferrari tem como um de seus principais temas as críticas à Igreja Católica. Saiba mais sobre o artista.
[1] A Conferência Episcopal Italiana (CEI) foi presidida de 1991 a 2007 pelo cardeal Camillo Ruini, um destacado conservador, defensor da atuação política da Igreja na vida pública italiana.