A Rede Fluminense de Núcleos de Pesquisa de Gênero, Sexualidade e Feminismos nas Ciências Sociais (RedeGen) se posiciona a respeito do edital “Família e Políticas públicas”, produto de uma parceria entre a Capes e a Secretaria Nacional da Família (SNF), ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
Lançado em janeiro de 2021 com o objetivo de formar “recursos humanos altamente qualificados” voltados ao tema das políticas públicas familiares, o edital faz parte de um conjunto de ações da Secretaria cujo eixo aglutinador reside na ideia de transformar a “família” na matriz das ações de intervenção estatal. Basta um passeio pelo site da SNF para ter uma compreensão do que significa “família” para o MMFDH: aquela responsável, em última instância, pelo ajustamento dos indivíduos. Uma família com vínculos “fortes”, ou seja, com relações densas e próximas entre seus membros seria o caminho para o enfrentamento da violência, do abuso de álcool e outras drogas, do suicídio.
O MMFDH acredita que as famílias devem ser orientadas por um educador a melhorar a “comunicação”, a “afetividade” e a “gestão de conflitos”, e assim “fortalecer os vínculos familiares”. É uma visão de que a família é autossuficiente; basta uma boa “conversa” para “entrar nos eixos”. Ao Estado caberia somente prover os meios para que as famílias se adequem a determinados modelos e expectativas considerados “funcionais”, mas que não fazem jus à diversidade das famílias brasileiras.
Essa compreensão caminha na contramão de anos de pesquisas sobre famílias e sobre políticas públicas que temos acumulado nas ciências humanas da segunda metade do século XX até hoje. Não há nenhum problema em ter ações de pesquisa sobre famílias e políticas públicas, mas há muitos problemas se esses termos não estão pensados e definidos de acordo com ampla e fundamentada tradição de pesquisa acadêmica. Tradição essa da qual o Brasil é expoente e referência.
Para as Ciências Sociais, o bem-estar das famílias é inseparável das políticas de saúde, renda, trabalho, de combate à pobreza, de erradicação de violência etc. Quanto mais fortalecidas são essas políticas, melhores as condições de vida das famílias e dos indivíduos que as compõem. As chamadas “políticas familiares” do MMFDH são concebidas como inteiramente separadas dessas outras políticas e, por isso, não trarão bem-estar às famílias. Como já mostraram diversas pesquisas científicas, é preciso políticas integrais, transversais e integradas. E para isso, o Estado deve ter vontade política e capacidade de gestão. No entanto, lembremos que o MMFDH gastou apenas 44% da verba disponível em 2020. Como em todo governo neoliberal, as “políticas familiares” são parte de uma articulação mais ampla de desfinanciamento de políticas públicas, relegando às famílias a responsabilidade “diante das próprias circunstâncias de vida”.
O que significa propor políticas que visam sustentar as relações e os vínculos familiares a qualquer custo? Significa ignorar que a família também pode ser um lugar de violência? Significa não reconhecer o direito de um indivíduo de sair da família quando sofre opressão? Significa desconhecer que pessoas se vêem privadas de suas famílias quando não se encaixam nos papéis esperados? Que violações concretas de direitos a implementação dessas políticas pode acarretar? Nos recusamos a fazer pesquisas tão convenientemente cegas. Eleger a família como objeto de estudo científico é recusar visões normativas sobre o que ela deveria ser e, em vez disso, levar a sério todas as suas características e diversidade concretas. Em sua ambição de “começar do zero”, o edital ignora saberes consolidados e legitimados no campo das ciências sociais e humanas, em especial os estudos de gênero, sexualidade, raça, classe e geração.
O primeiro eixo do edital, sob a rubrica de Políticas Familiares, é o mais abrangente e vagamente definido. Um raciocínio tautológico define “políticas familiares” como aquelas capazes de sustentar as relações e os vínculos familiares, fortalecendo as famílias. Há na formulação desta área temática uma deliberada desarticulação com demais políticas de proteção a sujeitos, particularmente crianças, adolescentes e mulheres. O edital é explícito acerca das políticas cuja articulação deverá ser evitada nas propostas: políticas educacionais, de saúde, de combate à pobreza ou de erradicação de violência, entre outras. As pesquisas deverão, portanto, excluir quaisquer políticas transversais ou a própria transversalidade como princípio. O ponto de vista adotado pelo edital é o do planejamento e gestão de políticas, com ênfase na relação custo/benefício, cercado de definições que indicam uma concepção omissa a respeito de valores consagrados na Constituição e no ECA, como a igualdade de gênero e a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de direito.
O eixo dois, chamado de “Dinâmicas Demográficas e Família”, prevê análise de dados demográficos sobre família no Brasil, uma tarefa que por décadas foi realizada com absoluta competência pelo IBGE, órgão que sofreu ataques desse governo. Nem o censo demográfico conseguimos levar adiante, configurando um verdadeiro apagão de informações sobre o nosso país. Como esse edital pretende propor análise de dados demográficos nacionais sem os dados demográficos atualizados disponíveis? Certamente não se está supondo que a pesquisa financiada faça o levantamento, pois o orçamento para custeio é somente R$50.000,00 por projeto aprovado, sendo a maior parte dos recursos destinada a bolsas de estudo.
O eixo três, “Equilíbrio trabalho-família”, é um tema clássico dos estudos de gênero no Brasil. Isso porque o conceito de gênero permitiu reconhecer os cuidados com a família efetivamente como trabalho, frequentemente desvalorizado e majoritariamente realizado pelas mulheres, e ainda mais pelas mulheres negras e pobres. Como seria possível pesquisar as relações entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo sem tocar nas desigualdades de gênero, raça e classe, categorias que, no entanto, são completamente ignoradas pelo edital? Fomentar estudos que desconsideram essas relações de poder é reforçar modelos de família em que cabe às mulheres “se equilibrar” na corda bamba do trabalho dentro e fora de casa, enquanto os homens têm mais tempo para se dedicar às suas carreiras profissionais ou ao lazer. Paralelamente, o governo se exime de gestar políticas que realmente possam promover o dito “equilíbrio”, como creches em tempo integral, educação que promova igualdade entre os gêneros, saúde de qualidade, incremento da renda, direitos trabalhistas, seguridade social etc.
A definição do quarto eixo, que interroga o uso de tecnologias de informação e de comunicação no contexto familiar, promove uma visão dessas tecnologias como ameaça à família e do seu uso como risco para seus membros. Ignora, em primeiro lugar, os usos da internet como fonte de informação, como instrumento auxiliar da educação formal, bem como suas possibilidades como local de encontro plural e meio para o cultivo de liberdades, de identidades e de diversos tipos de laço comunitário. Em segundo lugar, ignora o urgente desafio que significa hoje, para um marco democrático das comunicações, a atuação desregulada das mídias sociais, capazes de propiciar desinformação e diversas formas de discriminação, notadamente as marcadas pelo gênero, a raça/cor e pela pobreza. O edital não contempla a responsabilidade da sociedade civil e da esfera estatal para fazer frente a esses desafios. É inegável o impacto da digitalização das comunicações nas relações familiares, entretanto parece um artifício compreendê-la como alvo específico da violência online ou privilegiar a unidade familiar como âmbito de regulação e controle, em evidente detrimento de outras formas de proteção, de segurança e de promoção da cidadania digital.
O eixo cinco, denominado “saúde mental nas relações familiares”, parte novamente do suposto de que vínculos familiares bem ajustados e equilibrados redundam em pessoas saudáveis e sociedade
integrada. O eixo dá especial atenção a fenômenos complexos como o suicídio e a automutilação, tratando-os como eventos cujo combate depende da natureza e estado das relações entre os membros da família. Pretende-se levantar o perfil da família que tenha membros “em sofrimento emocional” para detectar “fatores de risco e de prevenção” do suicídio e da automutilação. Esta proposta alinha-se com a metodologia “Famílias Fortes” da SNF, voltada para famílias com crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos, que visa estreitar a “comunicação” entre pais e filhos como forma de preservação da “harmonia familiar”, através de encontros mediados. Temos diagnósticos claros sobre os limites desse tipo de abordagem que, ao fim e ao cabo, mais esconde do que revela as dinâmicas de maus tratos e abusos sobre crianças, adolescentes, mulheres e idosos.
O eixo seis, “Projeção Econômica das Famílias”, tem a pretensão de fazer uma avaliação “definitiva” dos benefícios econômicos direcionados às famílias, em especial os programas de transferência de renda. Deliberadamente ignorando as pesquisas nacionais e comparativas que comprovam a importância deste tipo de políticas para o bem-estar das famílias de diversos países, o MMFDH quer avaliar o “impacto” e a “viabilidade” desses benefícios no Brasil. Ao mesmo tempo, esse governo incentiva o desmonte do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Para que financiar pesquisa sobre transferência de renda quando o cadastro único tem sido desmantelado?
Para a RedeGen o edital “Família e Políticas Públicas” representa um retrocesso em relação às conquistas de pesquisas e políticas públicas que se debruçaram sobre as famílias brasileiras. Sem reconhecer e enfrentar as desigualdades de gênero, de raça/etnia e de classe que imperam no país o Estado não terá condições de prover apoio/proteção social aos que necessitam. Ao contrário do que afirma, este edital reforça a desproteção das famílias e seus integrantes.
Imagem: s/ título, Helena Almeida, 2010.