Nota d@s editor@s
Pedimos desculpas a noss@s leitor@s e parceir@s pela demora em publicar nossa última Edição Especial sobre a Política Sexual em Tempos de Pandemia. Este atraso se deve à inesperada compressão de tempo que vivemos em 2020, mas também a casos de COVID-19 na equipe da ABIA/SPW, bem como entre parentes e colegas de trabalho. Embora a estrutura desta edição especial seja a mesma das edições anteriores, um novo tópico foi acrescentado, no qual a política recente do Vaticano em relação às questões sexuais e para além delas é examinada. A depender de como a vacinação e os padrões pandêmicos evoluam em 2021, esta pode ser a nossa última Edição Especial sobre gênero e política sexual durante a COVID-19. Esperamos que assim seja.
O estado da pandemia
Passado um ano desde que o primeiro caso de infecção pelo vírus SARS-CoV-2 foi identificado em Wuhan, mais de 74 milhões de casos e 1,6 milhão de mortos foram registrados no mundo. Na última edição da Política Sexual em Tempos de Pandemia, publicada em julho, a Europa experimentava um declínio dos casos e relaxava as medidas de isolamento social, mas agora enfrenta uma segunda onda. O mesmo acontece nos EUA, Ásia e América Latina. A África foi o único continente em que os impactos da COVID-19 se mantiveram em níveis reduzidos (exceto na África do Sul) e esse padrão peculiar está hoje sendo investigado (veja aqui). A COVID-19 começa a replicar as ondas consecutivas das epidemias do passado e se sobrepõe a patologias endêmicas, especialmente enfermidades negligenciadas. Isso requer novos modos de definir a pandemia, dos quais um caminho possível, como sugerem alguns epidemiologistas, seria resgatar o conceito de “sindemia”, elaborado nos anos 1990 para descrever como a epidemia do HIV/AIDS interagia e reforçava condições epidemiológicas, sociais e políticas pré-existentes.
A geoeconomia das vacinas: mais do mesmo?
Desde julho, também se intensificou a corrida pelas vacinas e disputas entre fabricantes. Quando esse Especial estava sendo finalizado, nos meados de dezembro, as primeiras pessoas haviam sido vacinadas no Reino Unido e previa-se que a partir de janeiro a vacinação massiva ia começar em outros países europeus e nos EUA. Na América Latina, vários países avançavam na aprovação de produtos e a OMS havia autorizado a fase 3 dos testes de 4 vacina desenvolvidas em Cuba. A situação brasileira continuava, no entanto, em estado deplorável até que finalmente, no dia 16 de dezembro, um dia depois do presidente irresponsavelmente declarar que ele mesmo não vai se vacinar, um plano nacional foi apresentado (compilação).
A medida em que as vacinas se tornam disponíveis, a questão do acesso assume contornos complexos em razão dos desafios de escala, de logística e, especial e injustamente, em razão das disparidades globais na capacidade de compra de insumos e de obstáculos derivados das regras de propriedade intelectual (patentes).
Em setembro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu a plataforma COVAX (COVID-19 Vaccines Global Access Facility), reunindo estados e empresas para assegurar a distribuição de 2 bilhões de vacinas aos países do sul global. Entretanto, em dezembro começaram a circular notícias de que a plataforma não conseguiria cumprir sua meta por falta de insumos comprados por países ricos.
Em outubro, na Organização Mundial do Comércio (OMC), a Índia e a África do Sul fizeram uma demanda de renúncia (waiver) de patentes e outros direitos sobre vacinas e medicamentos de tratamento da COVID-19. Em 10 de dezembro, a proposta já tinha apoio de cem países e foi debatida no Conselho sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) da OMC. Em ambas arenas, uma vez mais registra-se a fratura clássica entre países do sul, que defendem lógicas não proprietárias, e os países do norte, que protegem suas patentes. Como bem afirmam os autores do artigo Intellectual Property Monopolies Block Access to Vaccines (O monopólio da propriedade intelectual impede o acesso a vacinas), enquanto os ricos e poderosos terão acesso, nos países pobres só 1 a cada 10 pessoas será vacinada em 2021. São contra o waiver a Austrália, EUA, União Europeia, Noruega, Japão, Suíça e, lamentavelmente, o Brasil.
COVID-19 e a economia
Em março-abril, foram feitas projeções otimistas de que a pandemia constituía uma oportunidade para enfrentar a desigualdade global. Em seguida, os pacotes de alívio econômico emergencial não só foram cruciais para evitar uma tragédia humana ainda maior, como reabriram debates nacionais e globais sobre programas de renda básica universal. O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI), gestor máximo da austeridade fiscal, recomendou a continuidade dos pacotes em 2021. Além disso, outras instituições hegemônicas passaram a priorizar a desigualdade em seus discursos, dentre as quais o Fórum Econômico de Davos foi ainda mais ousado, fazendo críticas severas ao neoliberalismo.
Essas intenções são mais que bem-vindas. Inclusive porque estudos têm revelado que, durante a pandemia, os bilionários ficaram mais ricos e grandes corporações ampliaram significativamente seus lucros. Paradoxalmente, essa reconcentração de riqueza pode, em parte, ser atribuída aos pacotes emergenciais, que também incluíram incentivos aos mercados financeiros. Não sem razão, a pandemia também abriu espaço para a retomada de debates sobre a taxação de grandes fortunas, sendo que na Argentina, a Câmara de Deputados aprovou um projeto de lei nesse sentido, que ainda precisa ser sancionado pelo Senado.
No entanto, enquanto essas boas intenções e proposições não se transportam dos discursos para as realidades, a crise econômica continua sendo devastadora. Nos EUA, seus custos são estimados em 16 trilhões de dólares, 90% do PIB do país. Segundo o Programa de Alimentos da ONU, a subsistência e segurança alimentar de 265 milhões de pessoas vivendo na África, América Latina, Caribe, Ásia e Oriente Médio estão ameaçadas. E, tal como analisado em nossas edições anteriores, o emprego e a renda das mulheres têm sido especial e brutalmente afetados pela recessão pós-COVID-19. A nova crise, fortuitamente nomeada “shecession” (“a recessão delas”, em tradução livre) pode levar 453 milhões de pessoas de volta à pobreza até 2030, das quais 279 milhões são mulheres (veja uma compilação). Como se sabe, mulheres que trabalham no setor informal, em especial o trabalho doméstico e o trabalho sexual, são as mais drasticamente afetadas. Esse impacto contrasta com o reconhecimento sobre a centralidade da economia do cuidado, dominantemente gerida por mulheres, que teve grande visibilidade no começo da epidemia.
Um outro aspecto a retomar das edições anteriores é a maneira pela qual as redes da economia submersa e ilegal têm se aproveitado das condições de crise provocada pela pandemia. Isso pode ser ilustrado pelo efeitos deletérios da proibição de álcool e tabaco na África do Sul e uma vasta lista de episódios de corrupção nas compra e venda de insumos para a COVID-19 que não está restrita aos países do sul global (veja uma compilação).
Política no cenário da pandemia
Arbítrio, coerção, repressão
Desde julho, arbitrariedade política e “estados de emergência” justificadas pela COVID-19 não arrefeceram. Há registros de intervenções estatais coercitivas, restrições à imprensa, à liberdade de expressão e associação, erosões democráticas por toda parte. Em 80 países, onde vivem 51% da população mundial, registrou-se o menor índice de liberdade de expressão em 20 anos. Destacam-se, nesse grupo, Rússia, Índia e Oriente Médio. Na Rússia, a censura política está atingindo inclusive os profissionais de saúde que se manifestam em relação aos problemas na resposta à COVID-19. Na Índia, a lei antiterrorismo tem sido usada para justificar a repressão contra grupos e lideranças que continuam protestando contra a nova lei de cidadania e, sobretudo, em Assam e na Cachemira, onde a polícia reprimiu violentamente uma procissão por mortos pela COVID-19. Além disso, a Anistia Internacional suspendeu suas atividades no país depois ter a sua conta bancária congelada em setembro. No Irã, persiste a repressão contra movimentos de contestação iniciados no ano passado. No Egito, pela primeira vez desde que o General Sisi chegou ao poder em 2013, ocorreram amplos protestos ao redor do país que foram violentamente reprimidos.
Na Turquia, Polônia e Hungria também persiste o autoritarismo governamental, nos dois últimos casos com efeitos particularmente deletérios sobre as políticas de gênero e sexualidade. No Zimbábue, ampliou-se a repressão policial aos protestos iniciados desde o começo da pandemia que reclamam por melhores condições econômicas e acesso a serviços de saúde. Também vale retornar à China, epicentro original da epidemia de COVID-19, pois investigação recente da ProPublica revelou que os sistemas de controle da internet, estabelecidos em 2014, foram usados para censurar a circulação de informação sobre a gravidade da enfermidade quando ela eclodiu. Isso apenas confirma o poder do aparato chinês de governança, cuja capacidade de gestão coercitiva da vida social numa situação de emergência não tem paralelo no mundo. Assim sendo, não surpreende que no segundo semestre de 2020 tenham aumentado as pressões sobre a autonomia política de Hong Kong. Em novembro, a China suspendeu os mandatos de 4 parlamentares pró-democracia, levando os demais desse bloco a renunciar.
Por último, mas não menos importante, como observou com acuidade Masha Geschen em dois artigos publicados na revista New Yorker em julho, os EUA também devem ser incluídos nesta lista. Em primeiro lugar porque, como assinala Geshen, a gestão da informação marcada por confusão e desinformação sobre a COVID-19 da administração Trump tem paralelos evidentes com os métodos usados por líderes soviéticos dos anos 80 no desastre de Chernobyl. No entanto, ainda mais convincentemente, argumenta Geshen em seu segundo artigo, as operações implementadas pelo Departamento de Segurança Nacional para conter protestos em Portland (Oregon) foram tipicamente características de uma polícia política.
Protestos que persistem
É mais significativo, contudo, que a coerção e repressão coexistiram ao longo do ano com rebeliões e protestos e não apenas nos países acima mencionados. Entre maio e julho, assistimos o início de protestos paradoxais, pois houve muitas manifestações contra as medidas estatais e individuais de contenção da COVID-19, especialmente expressivos nos EUA, Europa e América Latina, sobretudo no Brasil, mas que persistiram na Alemanha, cujas regras de distanciamento são mais rígidas, e têm voltado a emergir com o retorno dos lockdowns (veja uma compilação). Por outro lado, o movimento Black Lives Matter tomou a cena, tendo implicações e desdobramentos no processo eleitoral dos EUA, mas também transformando a violência policial racista numa pauta transnacional.
Desde julho, se multiplicaram protestos contra a brutalidade policial. Na Colômbia, protestos contra a morte de um taxista por policiais em setembro deflagrou grandes manifestações contra a repressão estatal, mas também contra medidas de austeridade e em repúdio aos assassinatos de líderes indígenas e rurais. Na Nigéria, protestos liderados por jovens contra repressão policial e pedindo o fim das forças especiais SARS (Esquadrão Especial Anti-Roubo originada durante o apartheid) em outubro foram violentamente reprimidos, mas não se arrefeceram, se tornando rapidamente um movimento mais amplo de indignação contra o governo. Na França, a partir do final de novembro, um verdadeiro levante tomou corpo contra a nova lei de segurança pública aprovada pelo governo Macron. E, no começo de dezembro no Brasil, o assassinato brutal de um homem negro por seguranças do supermercado Carrefour, em Porto Alegre, deflagrou uma massiva mobilização digital assim como protestos e ocupações (veja compilação).
Passado um ano desde o estallido popular que varreu o Chile em 2019, 30 mil manifestantes voltaram às ruas em demonstrações majoritariamente pacíficas e alguns atos violentos, como o incêndio de igrejas, posteriormente atribuídos à infiltração policial. Mais uma vez, os protestos foram energicamente reprimidos. No Equador, também foi registrada uma nova onda de indignação popular contra cortes orçamentários e contra forma como o governo tem respondido a pandemia, que também foi objeto de forte repressão. Finalmente, na Índia, deflagrou-se uma massiva mobilização de produtores e trabalhadores agrícolas contra a reforma da política de financiamento agrícola proposta pelo governo do primeiro ministro Narendra Modi, vista por alguns observadores como um potencial ponto de inflexão da política indiana.
Eleições
Além de protestos, também ocorreram eleições muito significativas. Na Bielorrússia, a despeito de amplas mobilizações, o ditador Lukashenko foi reeleito sob acusações de fraude, deflagrando-se daí uma brutal repressão contra os opositores do regime: cerca de 20 mil detenções e pelo menos 500 casos documentados de tortura. Em contraste, no Chile, o Congresso aprovou a proposta de reforma da Constituição herdada da ditadura, com paridade e gênero e participação de constituintes independentes. Na Bolívia, as eleições de outubro elegeram Luis Arce, do Movimento ao Socialismo (partido de Evo Morales), numa flagrante derrota das forças de direita e do neoconservadorismo religioso que chegaram ao poder por efeito da crise eleitoral e institucional de 2019, nomeada por muitos como golpe. No Brasil, por sua vez, eleições estaduais e municipais, tiveram resultados paradoxais, pois Bolsonaro não elegeu seus candidatos, mas os partidos da antiga direita amorfa e evangélica foram os grandes vitoriosos. Se, por um lado, a eleição teve resultados importantes em termos de raça, gênero e identidade de gênero, por outro, elegeu o maior número de candidatos militares ou policiais da história do país.
Contudo, a eleição mais importante de 2020 foi, sem dúvida, a que derrotou Donald Trump nos EUA. Uma eleição que só terminou no dia 14 dezembro quando, depois de batalhas jurídicas, ameaças e protestos, finalmente os votos do Colégio Eleitoral deram a vitória ao democrata Joe Biden. Há, certamente, muito mais a relatar sobre esse evento que, entre outras coisas, descortinou como nunca antes os limites e fragilidades da democracia americana. Aqui, nos limitamos a resgatar o que publicamos sobre os resultados eleitorais de 2016 e oferecer uma seleção de boas análises sobre as implicações nacionais e globais das eleições de 2020 (veja uma compilação).
COVID-19 e biopolítica
A produção intelectual que enquadram a COVID-19 dentro do marco da biopolítica não foi tão volumosa entre julho e dezembro de 2020 como havia sido nos seis meses anteriores (veja nossa compilação). Não é excessivo, no entanto, dizer que este modo de ler a pandemia tomou um rumo bastante inesperado: a biopolítica chegou, definitivamente, ao discurso mainstream. Isto pode ser claramente ilustrado, por exemplo, pelo artigo no New York Times Meet the Philosopher who is Trying to Explain the Pandemic, de Christopher Walton, que com muita cautela traduz para o público americano as controversas posições do filósofo Giorgio Agamben sobre as respostas do estado italiano à COVID-19, concluindo que:
Hoje, porém, com a crise italiana recuando e com uma razoável calma restaurada na discussão pública, podemos ver seu livro pelo que ele é: não é uma obra de manipulação científica ou de política carbonária, mas sim, um estudo in loco da conexão entre poder e conhecimento.
Alguém poderá dizer que isto não é tão surpreendente, dado o longo e amplo reconhecimento de Foucault na academia americana e sua frequente presença em suplementos literários. Entretanto, isto não se aplica exatamente à Índia, onde um artigo de opinião sobre biopolítica, provocativamente intitulado Poder e Perversidade, foi publicado pelo The Telegraph. O autor Shaoni Shabnan termina o texto com uma série de perguntas pungentes:
… se o Estado não oferecer serviços de saúde adequados para o corpo enfermo, ele pode reivindicar incondicionalmente o direito sobre o corpo do morto? Existe algum espaço para delimitar os limites da intervenção do Estado em relação às escolhas e decisões pessoais? Quando a democracia, durante uma crise, exerce a política do biopoder em sua forma mais insidiosa, como pode a cidadania questionar o governo e suas medidas?
Ainda mais significativo, no dia 31 de outubro, Richard Horton, editor da revista The Lancet, publicou um comentário editorial intitulado, COVID -19 – Uma crise de poder, que oferece uma leitura objetiva, mas muito precisa do marco conceitual de Foucault, começando por afirmar sobre a centralidade do corpo na pandemia. Não é trivial que o veículo global que representa e expressa as opiniões e princípios da ciência biomédica também tenha adentrado a conversa sobre biopolítica e a pandemia, oferecendo essa lente de leitura como sendo necessária e produtiva para interpretar os efeitos e as respostas ante às múltiplas crises da COVID-19:
Por que Foucault é importante para entender a COVID-19? As razões residem na forma sinistra como abordagens da sindemia estão evoluindo. Está sendo, por exemplo, considerado aceitável argumentar que os cidadãos mais velhos em risco de COVID-19 são de alguma forma menos valiosos para a sociedade do que as pessoas mais jovens. Sugere-se que os jovens deveriam poder arriscar sua saúde a fim de proteger as economias. E os governos decretaram medidas extraordinárias para controlar e restringir os comportamentos de suas populações. A COVID-19 evoluiu no sentido de se tornar um debate sobre a distribuição do poder nas sociedades: governo central versus governo local, jovem versus velho, rico versus pobre, branco versus negro, saúde versus economia.
Entre outras repercussões, este giro em direção à corrente mainstream poderá, eventualmente, conduzir a um melhor entendimento no campo da ciência biomédica nos veículos da grande mídia, mas também na percepção do público em geral, quanto ao significado biopolítico das questões de gênero e sexualidade e da própria política sexual, esteja ela relacionada ou não com a pandemia.
A política sexual na paisagem da COVID-19: novos e antigos padrões
Conspirações carregadas de tons sexuais
Como observado em nossas edições especiais durante a pandemia, as forças antigênero e antiaborto e os regimes políticos aos quais estão associados não exatamente se conformaram neste período. Particularmente nas Américas e na Europa, elas usaram a crise como uma oportunidade para atacar a legislação de gênero e para criar barreiras adicionais aos direitos e serviços de aborto, especialmente na América Latina. Além disso, como já observado em vários países, essas mesmas forças estavam engajadas em protestos negacionistas contra os lockdowns, o distanciamento social, o uso de máscaras e as vacinas, o que se tornou especialmente vicioso nos Estados Unidos e no Brasil.
No contexto desses protestos, uma nova formação chamada QAnon tornou-se proeminente ao promover teorias conspiratórias que ligam a pandemia e a vacina às elites norte-americana e globais e à pedofilia. As fantasias políticas reacionárias do QAnon, que são uma criação norte-americana, ganharam notória visibilidade durante as eleições americanas de 2020, quando os partidários de Trump aderiram a essas visões. Mesmo assim, como outros fenômenos da política digital, essas fantasias se espalharam muito além das fronteiras dos EUA (veja uma compilação em português e em inglês).
Quando o desenvolvimento da vacina começou a mostrar resultados positivos, dispararam narrativas conspiratórias fortemente entrelaçadas com questões sexuais. Segundo o QAnon, a imunização contra a COVID-19 está ligada a uma poderosa rede pedófila com o objetivo de controlar a política mundial. Vertentes religiosas antivacina também argumentam que tecido fetal proveniente de procedimentos abortivos é usado no desenvolvimento de algumas vacinas (argumento principalmente católico) ou que as vacinas são portadoras do vírus HIV (principalmente evangélico). Também se espalham rumores sobre a falta de segurança das vacinas, seus efeitos colaterais e a inescrupulosa manipulação científica. Esta propagação reativa as camadas já existentes de opiniões e sentimentos antivacina, com destaque para os EUA e o Brasil, que se tornaram novamente os lugares onde estes ataques têm sido bastante intensos e parecem, de fato, ter afetado a percepção das pessoas sobre a vacina contra a COVID-19.
No Brasil, entre agosto e dezembro, a porcentagem de pessoas que se recusam a ser vacinadas aumentou de 9 para 22%. Este aumento pode ser atribuído a uma infinidade de opiniões negacionistas que circulam na sociedade, mas em particular às declarações de Bolsonaro e seus seguidores com suspeitas em relação à vacina chinesa CoronaVac sendo testada no país, geralmente retratada como uma ameaça comunista. Quando o plano nacional de vacinação foi finalmente anunciado, Bolsonaro declarou que ele mesmo não seria vacinado e que seu governo não será responsável por nenhum efeito colateral em potencial. Ele disse: “... se você virar um chimpanzé… um jacaré, o problema é de você… Se você virar Super-Homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino“. Esta grotesca boutade apenas confirma a análise do SPW de junho de 2019 afirmando que Bolsonaro pode facilmente transformar qualquer questão política em uma tirada sexual machista.
Nos EUA, conforme verificado pelo Pew Institute, a aceitação da vacina também diminuiu de 72 para 51% entre maio e setembro para aumentar novamente para 60% no final de novembro, movimentações que podem ser explicados por teorias conspiratórias e o negacionismo oficial. Entretanto, é de se notar que a recusa da vacina permanece muito alta entre afro-americanos (58%). Jelani Cobb, em seu comentário semanal na New Yorker, examina como esta recusa não pode ser explicada apenas pelo negalismo político da COVID-19, mas deve também ser conectada a experimentos biomédicos reconhecidamente racistas do passado: o experimento de sífilis Tuskegee e o uso não autorizado de células cancerígenas do colo do útero de Henrietta Lack. A análise de Cobb é um lembrete cauteloso de que embora seja necessário defender a integridade do raciocínio científico nas atuais condições políticas mundiais, o uso instrumental de seres humanos por meio da biomedicina não pode ser apagado.
Políticas antigênero
No contexto da pandemia, as políticas antiaborto e antigênero continuaram seu ritmo, às vezes ligadas à crise e às condições da COVID-19, às vezes não.
Estados Unidos
É produtivo começar pelos EUA, onde, com a aproximação das eleições, a administração Trump se tornou hiperativa em domínios críticos para a política sexual global. Em 16 de julho, o Departamento de Estado lançou o Relatório da Comissão sobre Direitos Inalienáveis, um novo órgão criado em 2019. Entre outras questões, o documento propõe um retorno aos princípios fundadores do direito natural e dos direitos naturais norte-americanos, repudiando o que é designado como uma “proliferação injustificada de direitos”. O relatório foi recebido com amplas e duras críticas por organizações da sociedade civil sediadas nos EUA, acadêmicos e entidades e indivíduos religiosos que assinam uma nota de repúdio. Como observado por Kurt Mills no site openDemocracy, o trabalho da Comissão pode potencialmente minar os direitos relacionados a gênero, incluindo os direitos das mulheres, LGBT e aborto, bem como quaisquer reivindicações em relação a direitos econômicos, sociais e culturais. Mas, independentemente destas críticas, o relatório foi formalmente lançado na ONU em Nova Iorque e Genebra em setembro.
Lamentavelmente, entre estes dois eventos, a juíza Ruth Bader Ginsburg faleceu (veja uma compilação de análises em inglês e português) e a administração Trump acelerou a nomeação e a confirmação de um novo juiz. Amy Barrett, uma ultra-católica, foi confirmada em 22 de outubro mudando o equilíbrio da Suprema Corte e colocando imediatamente em risco a decisão Roe V. Wade que garante o direito ao aborto. Simultaneamente, os Estados Unidos em estreita aliança com o Brasil, Polônia e Uganda mobilizaram outros 26 países para assinar um documento global intitulado Declaração do Consenso de Genebra que defende os valores tradicionais da família e a proteção do “direito à vida desde a concepção” (ver uma compilação).
Europa Oriental
Na Polônia, o ataque aos direitos LGBTTI retratado pelas autoridades conservadoras como “ideologia LGBT”, também continuou ferozmente. No início de agosto, ativista Margot Szutowicz, de gênero fluido, foi pres@ e, em resposta, uma declaração assinada por estudiosos de gênero e sexualidade, incluindo Judith Butler e Paul Preciado, pediu a sua libertação imediata. Paralelamente, as “Zonas Livres LGBT”, que começaram a proliferar em 2019, ganharam maior visibilidade na imprensa internacional. Outra carta, mobilizada por acadêmicos e ativistas poloneses, e assinada por artistas de vários países, foi enviada ao chefe da Comissão Européia pedindo o fim da repressão e da agressão. No final de setembro, o governo belga mobilizou uma carta de 50 embaixadores repudiando estas violações, que foi enviada diretamente às autoridades polonesas.
Apesar destas pressões e de uma onda maciça de protestos impulsionada por manifestações feministas contra a decisão da Suprema Corte que restringe ainda mais os direitos ao aborto (veja na seção abaixo), no final de novembro o governo polonês sediou online a 3a Reunião Ministerial para Avançar a Liberdade Religiosa. Esta é uma iniciativa global lançada pela administração Trump em 2018 em parceria com outros estados conservadores, como Brasil, Hungria e a própria Polônia, que criou a Aliança Internacional para a Liberdade Religiosa. Mas a reunião de Varsóvia em 2020 contou com a presença de um número muito maior de países, bem como de participantes da sociedade civil. A iniciativa parece suficientemente sólida agora para sobreviver à derrota eleitoral de Trump. No início de dezembro, uma lei que proíbe a adoção por casais do mesmo sexo foi aprovada na Hungria.
Ataques mundiais à educação sexual
Mas também foram registrados ataques e regressões em outros lugares, em particular em relação à educação sexual integral e ao respeito à diversidade sexual nos sistemas educacionais. Em Portugal, um país conhecido pela flexibilidade do catolicismo contemporâneo, um novo currículo sobre gênero e sexualidade foi contestado por mais de cem nomes públicos que também reivindicaram a objeção de consciência do professor. Esta iniciativa não pode ser separada do crescente apoio ao recém-criado partido de direita Chega!, cujo representante também atacou o direito ao aborto na Assembleia Nacional do partido.
Então, na Zâmbia, o programa nacional de educação sexual integral foi atacado pela Congregação Evangélica de Zâmbia (EFZ) com o apoio do principal partido de oposição. Uma cruzada legal contra a “ideologia de fluidez de gênero” e sua promoção para crianças também está em andamento no sul do País de Gales, Austrália, onde um projeto de lei que proíbe esta “ideologia” foi apresentado na assembléia estadual. E, no Chile, no dia 16 de outubro, uma disposição que visava criar a lei de educação sexual nacional integral foi derrubada no Congresso.
Atuação antigênero em outros domínios
Em desacordo com uma notável nova resolução do Conselho de Direitos Humanos sobre raça e gênero nos esportes (ver abaixo), o domínio esportivo continua a ser um campo de batalha. Em São Paulo, um projeto de lei estadual apresentado em 2019 que visa a proibir a participação das mulheres trans em todos os esportes chegou em julho à fase de votação final em plenário (o que ainda não ocorreu). Em outubro, o Federação Mundial de Rugby proibiu as mulheres trans de competir. Também no Brasil, e não sem relação, o deputado federal ultra-católico Felipe Barros (PSL) apresentou um projeto de lei em dezembro decretando que gênero deve ser sempre entendido como sexo biológico.
Mas no reino das guerras de gênero, um desenvolvimento significativo dos últimos meses tem sido a crescente visibilidade e legitimidade alcançada pelas TERFs, sigla em inglês para feministas radicais trans-excludentes, em sua agenda contra os direitos trans. Conforme informado na primeira edição do Especial SPW sobre a COVID-19, estas visões feministas estão colocando em risco as diretrizes de política de identidade de gênero do Reino Unido. Confrontos similares também estão em andamento na Espanha e causando efeitos de fraturamento tanto na esquerda quanto nos feminismos (confira uma compilação). Entretanto, a agenda dos direitos antigênero e antitrans ganharam uma nova escala após J.K. Rowling, autora da série de livros Harry Potter, ter feito declarações transfóbicas. Sem ambição de esgotar as motivações e implicações da acalorada e expansiva disputa, recomendamos o ensaio de Laurie Penny que retrata a longa trajetória da política das TERFs no Reino Unido (em inglês), e a entrevista de Judith Butler para a New Statesman.
E algumas boas novas
Neste ambiente carregado em relação aos direitos em relação à identidade de gênero, a nomeação de Petra de Sutter como nova vice-primeira ministra da Bélgica foi uma brisa de ar fresco. Petra é uma mulher trans, professora do curso de ginecologia na Universidade de Ghent, membro do Partido Verde do Parlamento belga e também foi eleita para o Parlamento Europeu em 2019.
Mais de 60 membros do Parlamento Europeu fizeram um apelo pela proibição em toda a Europa da chamada “terapia de conversão”, prática que continua em uso em pelo menos 69 países no mundo todo, inclusive nos estados membros da União Europeia. As “terapias de conversão” também ganharam força na Índia depois que uma jovem bissexual cometeu suicídio em Kerala. Ativistas LGBTTI apresentaram uma petição ao Tribunal Superior Estadual, pedindo a proibição de tais práticas.
Finalmente, uma série de debates positivos sobre gênero, sexualidade e aborto na ONU também devem ser brevemente mencionados. Como relatado pela Sexual Rights Initiative, durante os procedimentos da 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos (junho-julho), ao discutir a resolução A/HRC/44/L.21 sobre a Eliminação da Discriminação contra Mulheres e Meninas, estados conservadores tentaram, sem sucesso, apagar a linguagem sobre educação sexual, autonomia corporal e serviços de saúde sexual e reprodutiva. Por outro lado, a A/HRC/44/L.20, sobre a Eliminação da Mutilação Genital Feminina foi adotada por consenso (mesmo quando o Brasil criou alguns obstáculos iniciais). Os debates da 45ª Sessão foram menos polêmicos e viram a aprovação de uma importante resolução sobre a eliminação da discriminação de gênero e raça nos esportes, além da apresentação de declarações sobre o direito ao aborto para marcar o 28 de setembro, que foi assinada por mais de 300 organizações da sociedade civil de todo o mundo. Finalmente, na Assembléia Geral em Nova York, foi dedicada uma sessão especial para marcar os 25 anos da 4a Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, quando declaração que reafirma os compromissos de 1995 foi assinada por 82 estados.
Por último, mas não menos importante, na Ásia, o parlamento do Butão aprovou por grande maioria (63 votos de 69) um projeto de lei que altera o Código Penal para apagar a linguagem que criminaliza a homossexualidade e agora a lei foi encaminhada ao rei para sanção.
Direito ao aborto
Muito aconteceu nas trincheiras do direito ao aborto nos últimos seis meses, inclusive em relação aos efeitos da COVID-19. Para aqueles que querem ter informações mais substanciais sobre as tendências em jogo neste domínio internacionalmente, recomendamos a consulta ao site da Campanha Internacional sobre os Direitos das Mulheres ao Aborto Seguro, mas também gostaríamos de chamar a sua atenção para quatro eventos principais.
O primeiro é o caso da menina brasileira de 11 anos que engravidou depois de ter sido abusada sexualmente por um membro da família e os obstáculos indecentes criados pelas forças antiaborto, especialmente o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos do Brasil, para bloquear seu acesso ao aborto legal. Aqui você pode ler o relatório de Sonia Corrêa sobre o caso e uma compilação de notícias. A segunda é, inevitavelmente, a nomeação de Amy Barrett para a Suprema Corte dos EUA e como isso vai afetar o futuro do direito ao aborto, mesmo quando a recém-eleita administração Biden está politicamente comprometida com a defesa da decisão Roe v. Wade (veja um compilação em inglês e português). A terceira é a resposta robusta das feministas polonesas à decisão da Suprema Corte que aboliu o aborto no caso de anormalia fetal grave, que não apenas forçou o governo a recuar, mas principalmente impulsionou uma gama muito maior de protestos contra o governo de direita do PiS. Esta é provavelmente a primeira vez na história em que uma defesa feminista feroz dos direito ao aborto provocou uma convulsão política mais ampla (compilação).
Finalmente, no início de dezembro, na Argentina, o governo Fernández cumpriu sua promessa eleitoral e apresentou um novo projeto de reforma da lei do aborto. A proposta que visa a legalizar o aborto sob demanda até a 14ª semana de gravidez foi acompanhada por outra disposição destinada a garantir assistência médica de qualidade e apoio social às mulheres grávidas. Em 10 de dezembro, a disposição da lei foi aprovada pela Câmara dos Deputados de 131 a 117 votos e enviada ao Senado. Em 17 de dezembro, quando este relatório estava sendo finalizado, a Comissão do Senado que examinou a disposição já havia dado sua aprovação e a votação estava prevista para ocorrer antes do dia 30 de dezembro. Considerando as condições da política sexual e do aborto no final de 2020, se a lei for aprovada, esta será uma vitória notável da tenacidade feminista na defesa do direito ao aborto (veja uma compilação em português e espanhol)
Política vaticana: eventos dispersos, uma mesma trama
No começo de outubro, o papa Francisco I publicou uma nova encíclica. Nomeada Fratelli Tutti (todos irmãos em português) e a nova carta papal foi amplamente aclamada por vozes situadas nos mais diversos pontos do espectro politico, assim como pela grande imprensa. Dois meses mais tarde, no começo de dezembro, foi anunciada a criação do Conselho para o Capitalismo Inclusivo com o Vaticano, uma plataforma que reúne um grupo significativo e bastante plural de corporações e algumas instituições filantrópicas como as Fundações Ford e Rockfeller (compilação de notícias em inglês). Esses dois fatos que certamente merecem uma análise muito mais aprofundada, são apenas mencionados aqui para ilustrar a hiperatividade do Vaticano nos últimos meses num momento bastante singular.[1] Por exemplo, uma análise do El País, publicada no final de novembro, informa que Francisco, após ter criado 73 novos cardeais, finalmente detém o controle do colégio cardinalício que elegerá seu sucessor. Além disso, tanto a Encíclica quanto o novo Conselho para o Capitalismo Inclusivo devem ser situados em relação aos resultados eleitorais americanos que deram a vitória ao primeiro presidente católico dos EUA desde John Kennedy.
Mas isso não é tudo. Entre um fato e outro, no dia 21 de outubro, irrompeu a notícia de que o papa teria feito uma declaração a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo no documentário Francesco, do diretor russo Evgeny Afineevsky, exibido no Festival de Roma. A notícia, como previsto, também teve ampla difusão e efusiva recepção nos meios de comunicação e no campo dos ativismos LGBTTI e também feminista. Treze dias mais tarde, contudo, o Vaticano jogou um balde água fria nesse vasto entusiasmo. O Vaticano informou oficialmente que a declaração registrada no documentário havia sido citada “fora de contexto” e que não deveria ser lida como uma inflexão doutrinária.
A essa altura, vários veículos de imprensa já haviam revelado que o trecho do filme em que o papa se refere à união civil entre pessoas do mesmo sexo havia sido editado usando respostas a perguntas distintas feitas ao pontífice em momentos diferentes. Mais especialmente, soube-se que em seguida ao comentário de Francisco de que “precisamos criar uma lei de união civil” havia outra frase — “falar em casamento entre pessoas do mesmo sexo é algo incongruente” — que foi suprimida da edição final. A explicação corretiva do Vaticano sugere que o diretor extrapolou os parâmetros estabelecidos para o documentário pela Secretaria de Comunicação da Santa Sé. Mas, aquela altura, tanto a publicidade do documentário quanto mais uma onda de popularidade do papa já estavam devidamente asseguradas. E, de fato, autoridades eclesiais começariam a reproduzir o contestado discurso papal, como foi o caso do Cardeal Carlos Aguiar, arcebispo da Cidade do México.
Comentado o episódio, o cientista político Massimo Prearo, publicou no Facebook uma nota que foi posteriormente transformada em artigo para o SPW. Nesse texto, Prearo analisa a fala papal a luz da política sexual italiana, lembrando que essa não é a primeira vez que as entrevistas papais surpreendem e tem efeitos insólitos. Segundo ele, o que se assistiu em outubro foi mais um capítulo de uma corrida ofegante para situar a igreja num mundo cada vez secularizado. Sobretudo, Prearo sublinha que os sorrisos de Francisco para jornalistas e ativistas devem ser sempre situados no contexto político mais amplo no qual o movimento neocatólico – amplamente engajado em cruzadas de oposição ao direito ao aborto e ao gênero – transita, sem maiores constrangimentos, em arenas político institucionais.
Outro evento que aconteceu alguns dias depois que a opinião do papa sobre união civil entre pessoas do mesmo (agora duvidosa) se tornou viral, talvez ilustre bem o que Prearo quer dizer com isso. Em 24 de outubro, a Missão de Observação Permanente da Santa Sé – em parceria com o Instituto Lumens Christi, a revista jesuítica América Media e o Instituto Kellog de Estudos de Relações Internacionais – realizou um webinário público para debater perspectivas católicas sobre os 75 anos do Sistema ONU.
O evento contou com a participação do chefe da Missão do Vaticano na ONU, o arcebispo e embaixador Gabriele Caccia, mas também da professora de Harvard Mary Anne Glendon. Glendon foi porta voz do Vaticano na Conferência Mundial das Mulheres (Pequim, 1995) e, mais tarde embaixadora do governo George Bush na Santa Sé. Na ocasião do webinário, coordenava a Comissão dos Direitos Inalienáveis (CDI), estabelecida pelo governo Trump no Departamento de Estado. Segundo Kurt Mills, em artigo publicado na Open Democracy, o relatório que a Comissão produziu e que foi lançado em julho de 2020:
…oferece uma justificativa histórica (ou talvez a-histórica) e teórica para priorizar um conjunto reduzido de direitos humanos compatíveis com uma agenda religiosa e econômica conservadora. Embora muitos dos que são considerados como “novos” por essa agenda – incluindo os direitos LGBT – não sejam explicitamente mencionados como passíveis de rebaixamento para um status de direitos alienáveis (e dada a proeminência da agenda dos direitos LGBT, é bastante curioso que isso não seja mencionado nem uma vez), a mensagem do texto é clara: existem alguns direitos básicos “inalienáveis” que são centrais para o ideal americano – liberdade religiosa, direitos de propriedade e direitos relacionados à participação democrática.
No debate, Glendon não falou desse ambicioso projeto da direita religiosa e secular norte americana no sentido de reconfigurar substantivamente os direitos humanos tal qual os conhecemos. Mas enfatizou que, desde a adoção da Declaração Universal, em 1948, a Igreja tem tido apreço mas também expressado muitas reservas quanto ao papel e agenda das Nações Unidas. Para exemplificar citou a expressiva observação feita por João Paulo II, em 1989 de que a Declaração carece das bases antropológicas e morais necessárias para sustentar os direitos humanos que nomeia. O arcebispo Caccia, não fez por menos. A uma certa altura do debate disse que uma de suas expectativas é que as “Nações Unidas sejam cada vez mais católicas”. Em seguida a essa provocativa afirmação, fez uma pausa sorridente e acrescentou: “ou seja, verdadeiramente universal” .
Quando situada em relação a essa conversação, o novo ato de fala papal sobre união entre pessoas do mesmo sexo pode ser lido como uma isca colorida que atraiu a atenção do grande publico, enquanto o Vaticano se movia de maneira muito intensa em esferas institucionais de alto nível. Entre outros eventos esse seminário no qual se debateu o destino da ONU e dos direitos humanos com uma das lideranças mais proeminentes do que Prearo denomina movimento neocatólico. Isso sugere que se 2021 sinaliza para desdobramentos ou deslocamentos imprevisíveis da geopolítica sexual do Vaticano. Só o tempo dirá.
Diante desse horizonte incerto pensamos que é produtivo revisitar, ainda que de maneira breve, os gestos e discursos de Francisco que, desde 2013, aludiram a homossexualidade, direitos LGBTTI, matrimônio igualitário e temas correlatos, pois eles foram sempre, ambíguos quando não decididamente enigmáticos. Acesse aqui o está arquivado em nossa biblioteca.
Arte e Sexualidade
Para esta edição da seção Sex & Art, o SPW apresenta o artista argentino Léon Ferrari e sua arte que promove uma contestação implacável da religião.
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