Para marcar o mês dos direitos das mulheres em 2025, fizemos um breve balanço do estado do debate sobre direito ao aborto no Brasil desde 2023. As ofensivas ao aborto legal no Brasil não começaram em 2023. A deterioração dos serviços e a proliferação da objeção de consciência vêm de muito mais longe. E, como se sabe, durante o governo Bolsonaro, em especial depois do caso da Menina de Guriri, em agosto de 2020, os serviços de aborto legal se tornaram alvo principal da ultradireita.
Aí se instalou um novo padrão de ação das forças antiaborto: o recurso a operações jurídicas e políticas para impedir ou procrastinar a realização dos procedimentos, em especial em caso de meninas menores de 14 anos. Essa maior agressividade mobilizou, inclusive, em 2022, a apresentação de uma ação junto ao Supremo (ADPF, 989/2022) demandando a proteção e a ampliação dos serviços de aborto legal, assinada pela Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e pela Associação Rede Unida.
Em 2023, o Centro de Estudos e Opinião Pública (CESOP/Unicamp), em parceria com o SPW e o Cfemea, elaborou uma metanálise das pesquisas de opinião pública feitas no Brasil desde os anos 1990. Os resultados mostram que a opinião pública brasileira é majoritariamente favorável à legislação existente, ou seja, ao direito ao aborto nos casos de estupro, risco de vida e anencefalia. Também informam que, desde 2019, cresce sistematicamente o percentual de pessoas que se opõem à prisão das mulheres que abortam. Mas isso não significa que o repúdio orquestrado à descriminalização e os ataques aos serviços de aborto legal tenham arrefecido. As ofensivas antiaborto estão muito consolidadas e, cada vez mais, se nutrem de dinâmicas regressivas em curso em outros países, em especial os EUA. Nesse sentido, não é nada trivial que uma das primeiras medidas de Trump foi reinstalar a Lei da Mordaça e retornar ao chamado Consenso de Genebra, plataforma global de propagação de discursos antiaborto.
Com a eleição de Lula, obviamente, criou-se a expectativa de que o novo governo iria investir com vigor na defesa do direito ao aborto legal previsto em lei. Em março de 2025, contudo, essas expectativas estão decididamente frustradas. Os esforços institucionais de avançar nessa direção, ensejados desde 2023, foram procrastinados, contidos ou mesmo abandonados. De maneira geral, a gestão do PT driblou a questão e, quando não era possível, fez ainda pior. No fim de 2024, por exemplo, quando se discutia, no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), um protocolo destinado a facilitar o acesso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ao aborto legal, assistiu-se ao espantoso alinhamento de setores do governo com a ultradireita. Olhando em frente, a confluência deletéria entre essa postura débil, quando não abertamente conservadora do governo, sua dependência frente ao Centrão, a vertiginosa queda de popularidade de Lula e a eleição de Trump podem assanhar ainda mais as forças antiaborto nacionais.
Nas páginas que se seguem, oferecemos uma cronologia breve, mas comentada, do período de setembro de 2023 a janeiro de 2025 (sobretudo baseada nos arquivos do SPW, em especial nos Boletins da Política Sexual). É, ao nosso ver, crucial registrar sistematicamente os ataques ao direito ao aborto no Brasil, suas conexões transnacionais, bem como as respostas bem sucedidas a eles, para elucidar a avalanche de fatos, informações e análises sobre a questão e abrir caminhos para novos patamares de resistência.
Agradecemos a Angela Freitas e Laura Molinari, da campanha Nem Presa Nem Morta, e a Letícia Vella Ueda, do Coletivo de Sexualidade e Saúde, pela contribuição na análise sobre o papel do ativismo nos últimos dois anos.
2023: Casos emblemáticos
Em setembro de 2023, a Folha de São Paulo publicou uma matéria relatando os obstáculos criados, em Teresina, no Piauí, para impedir o aborto legal de uma segunda gestação de uma menina de 11 anos estuprada por um parente (originalmente se dizia ser um primo, mas exames de DNA identificaram o tipo paterno como estuprador). Vários recursos judiciais acionados por organizações que defendem o direito ao aborto legal para assegurar o acesso ao procedimento foram negados. Em decorrência, a gestação foi levada a termo e o bebê, encaminhado para adoção.
Dois meses mais tarde, no Paraná, Miriam Bandeira dos Santos, uma mulher indígena adulta engravidou sendo estuprada. Mesmo apoiada pela Defensoria Pública do Estado, também teve o acesso ao aborto legal procrastinado. Segundo Rebeca Mendes, do Projeto Vivas, que passou a acompanhá-la para levá-la a um outro estado, parecia que “as pessoas que estavam tentando ajudar, na verdade, estavam criando barreiras”. Durante o parto, Miriam teve uma embolia pulmonar e faleceu. Muito embora as autoridades de saúde do estado argumentem que sua morte não poderia ser explicada pela procrastinação, especialistas consideram que ela estava sujeita a uma brutal tensão psicológica e que seu óbito deve ser qualificado como morte materna decorrente de obstáculos para acessar o aborto em caso previsto na lei.
Em que pese a gravidade dos dois casos, nem o Ministério da Saúde, nem o Ministério das Mulheres emitiram notas públicas sobre eles, mesmo quando no primeiro caso, ao menos desde junho, estivesse sendo discutida uma nova política de apoio aos serviços de aborto legal.
Setembro de 2023: Voto favorável à ADPF 442
Apesar do contexto desfavorável, setembro de 2023 se tornou um marco na trajetória da luta sobre o direito ao aborto no Brasil. Pois foi então que, finalmente, se iniciou o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 no STF, ação apresentada em 2017 que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O voto favorável da ministra relatora Rosa Weber foi apresentado como seu último ato antes da aposentadoria, na véspera do 28 de Setembro – Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta pela Descriminalização do Aborto. O voto estabelece um precedente sólido para o debate sobre o direito ao aborto, construído tanto com base em argumentos científicos e que argumenta em defesa do direito à interrupção da gravidez como uma questão de democracia. Sua apresentação à Corte reativou, com vigor, o debate jurídico e político sobre a questão. Neste dia, um anúncio de página inteira assinado pela Campanha Nem Presa Nem Morta foi publicado na Folha de São Paulo e, internacionalmente, o caso teve expressiva repercussão, com veículos de diferentes continentes fazendo paralelo com a onda verde que marcou o cenário do direito ao aborto na América Latina desde 2020.
Fizemos uma extensa compilação sobre o início do julgamento que, no entanto, seria suspenso pelo presidente da Corte, ministro Luís Roberto Barroso, com base em argumentos regimentais. Desde que Rosa Weber depositou seu voto favorável à tese da ADPF 442, proposições regressivas proliferaram no Legislativo.
Dezembro de 2023: A volta do “nascituro” e ataques em São Paulo
A resposta das forças antiaborto foi imediata. Na Câmara Federal, a Comissão de Constituição e Justiça – presidida por Ana Carolina Campagnolo, uma das mais aguerridas vozes antifeministas e antiaborto da ultradireita brasileira – aprovou a tramitação em urgência do Estatuto do Nascituro, projeto de lei originalmente apresentando em 2007. A decisão seria, contudo, contida por uma forte mobilização feminista.
Em seguida, a Prefeitura de São Paulo, sob comando do ultraconservador Ricardo Nunes, suspendeu o maior serviço de aborto legal da cidade, na Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, obrigando muitas mulheres a buscar o procedimento em outros estados. Ações judiciais foram impetradas contra a medida, e a Justiça determinou mais de uma vez a retomada do serviço, reativando duras críticas de entidades e organizações de defesa dos direitos humanos e das mulheres (leia compilação).
Semanas depois, o governo estadual de Goiás promulgou lei que obriga gestantes a ouvirem o batimento cardíaco do feto antes de realizaram o aborto previsto em lei. Uma ação foi apresentada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela OAB local, contestando e pedindo a suspensão da medida.
Fevereiro de 2024: o Ministério da Saúde recua
Como já mencionado, desde 2023, o Ministério da Saúde vinha construindo uma estratégia de revisão de normas e apoio aos serviços de aborto legal. Em março de 2024, porém, foi suspensa a publicação de uma nota técnica destinada a responder demandas do Judiciário sobre o direito ao aborto legal após a 22ª semana de gestação. O que deflagrou essa crise foi matéria, publicada poucas horas depois da assinatura da Nota Técnica, no Jornal Gazeta do Povo, afirmando que o documento autorizava o aborto até 9 meses de gestação. A desinformação disseminou-se rapidamente, e a nota foi suspensa menos de 24 horas após ser publicada. Alguns dias depois, a ministra Nísia Trindade mencionou o ocorrido em entrevista, afirmando que a nota não havia passado por todos os procedimentos antes de ir ao ar, e reafirmou explicitamente a obrigação da Pasta em proteger as mulheres que recorrem ao procedimento. Entretanto, desde então, o Ministério da Saúde não adotou nenhuma iniciativa no sentido de conter o ataque cada vez mais constante e virulento aos serviços de aborto legal.
Março de 2024: Visibilidade Internacional
Diversas organizações feministas denunciaram o Estado Brasileiro no Conselho de Direitos Humanos da ONU por violação do direito ao aborto legal. Os casos de São Paulo, Goiás e a suspensão da Nota Técnica foram citados na denúncia.
Abril-Maio de 2024: Resolução do CFM e Revisão CEDAW
De março de 2024 em diante, as ofensivas ao aborto legal passariam a ter como foco prioritário o limite de 22 semanas de gestação para a realização do aborto. Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM), que desde muito vem capitaneando os ataques ao direito ao aborto, publicou uma nova Resolução (nº 2.378) proibindo médicos de realizarem o procedimento em casos de gestação de mais 22 semanas, mesmo se resultantes de estupro.
A resolução foi contestada por uma ação mobilizada por procuradores de três Estados (São Paulo, Rio Grande do Sul e Bahia), pela Sociedade Brasileira de Bioética e pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, apresentada na 8ª Vara da Justiça Federal de Porto Alegre. Inicialmente exitosa ao conseguir uma liminar revogando o documento do CFM, a ação veio a ser derrubada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Concomitantemente, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) apresentou ao STF a ADPF 1.141, solicitando a revogação imediata da Resolução. Em 17 de maio, o juiz Alexandre de Moraes julgou a demanda procedente por divergir do que está gravado na legislação nacional, assim como da jurisprudência internacional sobre a matéria. O voto do ministro Moraes foi a julgamento no plenário, mas a sessão foi suspensa por causa de pedido de destaque feito pelo ministro Kassio Nunes Marques. A resolução permanece suspensa. Nossa compilação sobre essa nova dinâmica judicial inclui notícias, análises e notas de repúdio. Contudo, mesmo após essa decisão do STF, o Ministério da Saúde não adotou nenhuma nova definição sobre a matéria.
Ainda em maio, o Brasil passou pela revisão do Comitê CEDAW. O Comitê recomendou, com vigor, a legalização e a descriminalização do aborto no país. A recomendação foi muito bem-vinda, pois conflui com os argumentos arrolados na ADPF 442/2017. Contudo, para ativistas feministas que acompanharam o processo, o Comitê perdeu uma oportunidade de fazer recomendações robustas sobre a necessidade de proteção dos serviços de aborto legal que estão sendo sistematicamente ameaçados. Mais relevante ainda, no contexto dessa cronologia, as recomendações do CEDAW não suscitaram manifestações públicas robustas quanto a sua aceitação por parte das autoridades nacionais.
Junho de 2024: “PL do Estuprador”
Poucas semanas depois da revisão da CEDAW, em meados de junho, sob pressão da bancada antiaborto, que tem conexões orgânicas com o CFM, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação simbólica fulminante, a tramitação de urgência do PL 1904/2024. O projeto de lei, de autoria do deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), equipara o aborto após a 22ª semana de gestação a homicídio. Era a resposta da ultradireita à decisão liminar de Alexandre de Moraes determinando a suspensão da Resolução 2.378. O PL 1904, na prática, criminalizaria o acesso ao aborto previsto em lei no caso de estupro, mas deixava margens ambíguas de interpretação no sentido de também restringir a idade gestacional do aborto em caso de risco de vida das mulheres. A proposta foi qualificada nas redes sociais como “PL do Estuprador”, provocando um imediato e amplo repúdio social, como pode ser verificado na nossa compilação. Apesar da colossal repulsa da sociedade ao PL, toda uma semana transcorreu até que o Executivo Federal explicitasse, de maneira débil, sua crítica ao conteúdo da proposição. E o desempenho da bancada petista na Câmara foi, de maneira geral, deplorável. Depois de muitas idas e vindas, o PL saiu dos holofotes com o nome da deputada petista Benedita da Silva sendo cotado, mesmo entre partidos do Centrão, para a relatoria do texto. A discussão pública também se esvaiu e, desde então, o PL permanece à espera de novas ativações.
Julho a setembro: a ofensiva nos níveis locais segue seu curso
De junho em diante, a despeito da ampla mobilização da sociedade e de algumas derrotas judiciais, incluindo uma multa milionária, a Prefeitura de São Paulo continuou seu cerco ao aborto previsto em lei. Mulheres vítimas de violência sexual que procuraram serviços da cidade continuaram impossibilitadas de acessar o procedimento. Mas veio de Goiás a pior notícia do mês de julho. Uma menina de 13 anos grávida em decorrência de um estupro foi impedida por duas decisões da Justiça Estadual a realizar o aborto. O caso era de enorme complexidade, pois envolveu uma ação apresentada pelo pai da menina contra o procedimento. Contudo, ação judicial mobilizada por redes de luta pelo direito ao aborto legal levou o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que autorizou a interrupção da gravidez. O caso foi objeto de matérias extensas dos portais Metrópoles e G1.
Outro contraponto positivo à onda de regressão instalada desde 2023 veio da Bahia. Em setembro, o Tribunal de Justiça do Estado derrubou sentença da primeira instância e autorizou a interrupção da gestação de feto sem chances de vida após o nascimento. O caso expôs, como bem apontou O Globo, os limites da decisão do STF de 2012, que só permite a interrupção em casos de anencefalia.
Novembro: a ressurgência do “direito à vida desde a concepção”
Passados cinco meses da mobilização contra o PL 1904 (e seu “arquivamento informal”), a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, apresentada originalmente, em 2012, pelo então deputado Eduardo Cunha. Seu objetivo é incluir a proteção do direito à vida desde a concepção no texto constitucional.
Desde 1988, quando a reforma constitucional não incluiu essa premissa, reivindicada por pressões da Igreja Católica, as forças antiaborto tentam, periodicamente, demolir esse consenso. A incorporação dessa definição aos princípios constitucionais abre, potencialmente, espaço para que o aborto seja criminalizado de maneira draconiana, como aconteceu em outros países, sendo o caso de El Salvador o mais dramático. Adicionalmente, poderá comprometer o acesso a procedimentos de reprodução assistida e impactar pesquisas com células tronco (abrindo campo para a interrogação da decisão do STF, de 2010, sobre a matéria). A Campanha “Criança Não É Mãe” fez uma ampla mobilização nas redes, com excelentes resultados. Mas, uma vez mais, não houve manifestações firmes contra a proposição por parte da bancada petista ou do Executivo. E, mesmo a proposta tendo sido repudiada socialmente, nada garante que não possa retornar à pauta na nova legislatura.
Concomitantemente, novos casos locais de restrição ao acesso ao aborto previsto em lei irromperam. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) é o ator mais ativo nessa frente de ação. Em novembro de 2024, solicitou o prontuário de todas as mulheres que realizaram aborto legal no Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, da Unicamp, levando o juiz Alexandre de Moraes a intimar seu presidente, Angelo Vattimo, a explicar judicialmente a razão do pedido. Tendo recebido a resposta, Moraes sustou a entrega dos prontuários. Mas o mesmo aconteceria na cidade de São Paulo, onde o Hospital Maternidade de Vila Nova Cachoeirinha também foi notificado pelo STF após entregar prontuários médicos de pacientes que interromperam a gestação no hospital. Apesar dessas decisões sequenciais, o CRM faria a mesma demanda ao serviço de aborto legal em Botucatu, em dezembro.
Dezembro de 2024: A Resolução do Conanda
Nos últimos dias de 2024, estando a capacidade de mobilização pública prejudicada pelas festas de final de ano, o país assistiu a mais um grotesco episódio de repúdio ao aborto legal gravado em lei. Atendendo a uma demanda da senadora Damares Alves, um juiz de primeira instância do Distrito Federal suspendeu uma resolução aprovada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que estabelece diretrizes para garantir o acesso ao aborto legal no caso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. A decisão seria revogada alguns dias depois pelo TRF-1, que julgou uma ação liminar proposta pelo Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), que é membro do Conanda.
A trajetória de aprovação da resolução que provocou esse desfecho judicial ilumina com muita acuidade a escala e características dos obstáculos que vêm impedindo a proteção, ampliação e qualificação dos serviços de aborto legal no Brasil, que simplesmente cumprem o que está na lei e na jurisprudência. O Conanda iniciou o debate desta resolução após publicar uma firme Nota Pública contrária ao PL 1904. O esboço do texto final começou a ser debatido em plenária em novembro, causando reações negativas por parte de representantes do Executivo que têm assento no Conselho. Após muitas idas e voltas, no dia 23 de dezembro, a resolução foi aprovada com os votos da sociedade civil, pois os representantes do Executivo votaram em bloco contra sua aprovação.
Essa operação foi liderada pela Casa Civil e sua breve cronologia evidencia a barreira erguida pelo próprio governo federal contra avanços no direito ao aborto. Inicialmente, coube ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania apresentar pedido de vista durante a discussão da proposta. Esta postura, sem dúvida, enfraqueceu não apenas a tramitação do documento e sua força política. Também torna mais difícil tanto estabelecer uma relação de confiança com o governo quanto construir respostas sólidas e sustentáveis de garantia e ampliação do direito ao aborto no país. Conforme noticiado dias depois da aprovação, de acordo com apuração da Folha de São Paulo, a recusa em apoiar a resolução foi um movimento coordenado pela Casa Civil, que orientou os 13 representantes do governo no órgão a votar contra. Os 15 votos favoráveis – todos de representantes da sociedade civil – garantiram a aprovação. Desde o início do debate sobre a resolução, movimentos e setores da sociedade civil vinham se mobilizando em favor do documento, ao passo que vozes conservadoras, previsivelmente, se manifestavam na contramão. A mão de ferro do governo federal neste imbróglio é reveladora dos riscos de retrocesso para o direito ao aborto. E deixa claro que nem mesmo governos em tese progressistas merecem ser encarados como aliados, já que se alinham a posições e forças conservadoras, com quem acabam lamentavelmente convergindo no antagonismo à pauta. Marina de Pol Poniwas, ex-presidenta do Conanda, e Deila Martins, conselheira do órgão, comentam em artigo a relevância da resolução e os desafios para sua implementação.
Fevereiro de 2025: Uma nova ADPF chega ao Supremo
Mesmo diante de cenário político adverso, que impede a votação final da ADPF 442, uma nova ação retoma a pauta da descriminalização do aborto. Em fevereiro, a Associação Brasileira de Enfermagem (Aben) e o PSOL apresentaram ao STF a ADPF 1207, solicitando que enfermeiros e outros profissionais de saúde possam realizar o procedimento. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figa) manifestou-se em favor da ação, que abre outro caminho de mobilização e debate público para o direito ao aborto.
Março de 2025: Posicionamentos no Plano Internacional
Durante a 69ª Sessão da Comissão da ONU para o Status das Mulheres, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, explicitou, num de seus discursos, pela primeira vez, uma posição firme do Estado brasileiro com relação aos direitos sexuais e reprodutivos e à garantia do direito ao aborto nos casos previstos em lei.
Concomitantemente, o Grupo de Trabalho sobre Discriminação de Mulheres e Meninas, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, enviou uma comunicação formal ao Governo brasileiro repudiando o conteúdo e a eventual aprovação do PL 1904 (acesse aqui o texto em inglês). E, durante a 58ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, uma representante da CONECTAS leu uma nota que reclama a implementação imediata da Resolução do Conanda.
2023-2025: O ativismo feminista pelo direito ao aborto no Brasil
Nos últimos dois anos, a utilização de estratégias de litígio tem se ampliado para impedir retrocessos no campo da garantia do aborto legal nas políticas públicas. Essas ações ocorrem tanto em tribunais superiores, nos casos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, quanto em tribunais estaduais, como nas discussões travadas no caso recente da menina de Goiás e na disputa jurídica em torno do reestabelecimento do serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha.
A resposta judicial tem se mostrado favorável à garantia do acesso ao aborto, ao menos nas hipóteses já previstas em lei. Destaca-se, nesse sentido, a já mencionada ADPF 1141, na qual foi possível suspender a resolução do Conselho Federal de Medicina que proibia a realização de assistolia e bloqueava o questionamento jurídico da recusa dos serviços localizados no município de São Paulo em realizar o procedimento de aborto em gestações com mais de 20 semanas. Também houve importantes precedentes no caso individual da menina de Goiás e, sobretudo, no caso da resolução do Conanda obstaculizada tanto pela ultradireita quanto pelo governo.
No âmbito do STF, como já mencionado, o posicionamento da corte sobre a descriminalização do aborto é incerto. Num contexto em que são brutais as barreiras enfrentadas por pessoas que buscam o acesso ao aborto legal a nova ADPF 1207 busca a garantia da ampliação do cuidado nas hipóteses presentes na lei. A ação dá a oportunidade para que o STF reafirme seus últimos posicionamentos e mantenha-se na defesa da atual legislação. O pedido é simples: reconhecer que a assistência ao abortamento não deve se limitar a profissionais formados em medicina, mas deve incluir profissionais da enfermagem e obstetrizes, proporcionando uma melhora na qualidade do atendimento e uma ampliação da oferta da atenção ao aborto nos territórios.
Tanto as ameaças acima descritas quanto os ganhos conseguidos no campo do litígio estratégico tem sido objeto de campanhas muito bem sucedidas nas redes sociais, mobilizadas pela Campanha Nem Presa Nem Morta, cuja atuação se ampliou substantivamente desde 2023, quando a ex-ministra Weber votou favoravelmente à ADPF 442. Além da publicação do anúncio de página inteira na Folha de São Paulo, em outubro e novembro foram distribuídos 15 mil lenços em favor da ADPF, ao mesmo tempo em que aconteciam projeções de imagens e colagem em várias cidades, s intervenções político-culturais e se ativava uma forte incidência nas redes sociais. Segundo pesquisa do NetLab, no X, foi significativa circulação de hashtags como #NemPresaNemMorta, #aborto e #abortolegal.
Como já mencionado, às vésperas do Natal de 2023, uma mobilização feminista, em articulação com assessorias parlamentares do campo progressista, foi crucial para impedir o avanço na tramitação do Estatuto do Nascituro. Através do site da campanha Criança Não É Mãe, mais de 33 mil e-mails contra o projeto de lei foram endereçados diretamente a parlamentares da Comissão. Uma vez mais, em junho de 2024, foi feita intensa mobilização contrária ao PL 1904. Essa maré verde brasileira alcançou vários setores da sociedade, desde entidades de saúde e direitos humanos, mobilizando cerca de 70 notas públicas de repúdio ao PL, até manifestações de escolas de samba, de atrizes como Luana Piovani, apresentadores de TV como Luciano Huck e até mesmo fã-clubes de cantoras pop e de bandas de k-pop.
O mote Criança não é Mãe dessa muito bem sucedida campanha foi chamar atenção para a trágica realidade da violência sexual e da gravidez infantil no Brasil, que atinge sobretudo meninas negras com menos de e leva cerca de 20 mil meninas menores de 14 anos a parirem a cada ano. Das 625 matérias jornalísticas monitoradas pela articulação Futuro do Cuidado, 63 foram favoráveis ao PL 1904/2024, 280 contrárias e 282 neutras. A agência Quaest identificou 1,1 milhão de menções ao assunto nas redes sociais X, Facebook e Instagram, entre os dias 12 e 14 de junho, das quais 52% eram contrárias ao projeto de lei e apenas 15% favoráveis. Seis meses mais tarde, mobilização de mesmo teor garantiu o apoio das representações da sociedade civil à resolução do Conanda e ampliou na sociedade o apoio a medidas institucionais que assegurem e facilitem o acesso ao aborto seguro nos casos permitido por lei, especialmente as gestações decorrentes de estupro de menores de 14 anos.
O que podemos esperar para o ano que se inicia?
Nada sugere que as ofensivas contra o direito de aborto legal vão arrefecer drasticamente em 2025. Entre outras razões, porque o cenário global pós-eleição de Trump não é exatamente favorável e, como se sabe, desde muito, as forças antiaborto no Brasil são inspiradas e se espelham em seu pares norte-americanos. Para além do ataque frontal ao direito ao aborto implícito na Lei da Mordaça e no retorno dos EUA ao Consenso de Genebra, é crucial contabilizar, no conflagrado cenário incitado pela ultradireita americana e global, um franco ressurgimento da ideologia pró-natalista (leia mais aqui e aqui). [1]
Por outro lado, internamente no Brasil, sob novas presidências da Câmara, do Senado e de Comissões-chave do Congresso, a dinâmica de 2025 talvez não seja tão virulenta com relação ao direito ao aborto como foi em 2024. Isso não significa, contudo, que as forças parlamentares antiaborto irão reduzir substantivamente seu vigor regressivo. Um polo importante das ofensivas que poderão ganhar corpo em 2025 é, sem dúvida, a senadora Damares Alves na presidência da Comissão de Direitos Humanos do Senado.
Os desdobramentos internacionais registrados no início deste ano devem ser sublinhados como fatos positivos a contribuir na contenção da agressividade crescente das forças antiaborto nacionais e, sobretudo, superar os renitentes obstáculos para ampliação, requalificação e proteção efetiva dos serviços de aborto legal no Brasil, aí incluídos os silêncios e relutâncias de autoridades federais. Medidas sólidas de proteção dos serviços de aborto legal são cruciais para enfrentar a fúria da ultradireita contra o direito ao aborto, incluídos os casos previstos em lei, e nutrir um ambiente sociocultural cada vez mais favorável ao direito de autodeterminação reprodutiva de meninas, mulheres e pessoas que gestam. Venha o que vier, contudo, os feminismos e o campo mais alargado de defesa do direito ao aborto ainda estarão por aqui, fazendo o que é preciso ser feito.
RECOMENDAMOS
28/09 e o direito ao aborto: compilação e reflexões sobre o contexto latino-americano – SPW
Série “Lobby antiaborto” – Revista AzMina
“Saúde sexual e reprodutiva: o que dizem as mulheres da Maré” – Casa das Mulheres da Maré
“Estupro de Vulnerável: Caracterização de Crianças Mães no Brasil em 2022” – Rede Feminista de Saúde
Notas
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[1] https://sxpolitics.org/ptbr/o-pronatalismo-ressurge-por-francoise-girard/13764