por Sonia Corrêa & Rajnia de Vito
As referências à pedofilia aumentaram de maneira vertiginosa recentemente nas redes sociais e na mídia brasileira. Uma primeira leitura dirá que isso se deu por conta das acusações indevidas contra o YouTuber Felipe Neto, que tomou posições contundentes contra o governo Bolsonaro, sendo destaque o vídeo que protagonizou para o jornal The New York Times sob o título “Trump não é o pior presidente da pandemia”. As hashtags #TodosContraFelipeNeto e #FamiliasContraFelipeNeto, que repercutiram fake news relacionadas a ele, chegaram a trending topic no Twitter no dia 27 de julho.
Entretanto, Felipe Neto não foi o único alvo dessa campanha acusatória. Um pouco antes, no dia 22 de julho, circularam nas redes acusações de pedofilia contra ministros do Supremo Tribunal Federal depois que Roberto Jefferson acusou ministros do STF de estarem atacando a ministra Damares Alves pelo combate à pedofilia. Antes disso, no dia 10 de junho, um perfil no Twitter publicou uma conversa que implicava o YouTuber PC Siqueira (e amigo de Felipe Neto) em crimes de pornografia infantil. Também foi alvo de uma campanha difamatória o irmão de Felipe Neto, Luccas Neto, que também é YouTuber, associando-o à “incitação de pedofilia”.
Essa não é a primeira vez que se assiste no Brasil uma onda contra a pedofilia com traços acusatórios e de instigação do pânico moral. Isso se deu, por exemplo, entre 2007 e 2009 quando foi instalada no Congresso uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra pedofilia presidida pelo senador pastor Magno Malta (PR-ES), de quem Damares Alves, atual Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) foi assessora por mais de dez anos. Essa CPI foi lançada em sequência ao lançamento da Política Nacional de Saúde LGBTT na I Conferência Nacional LGBTT, que teve grande visibilidade internacional (da qual participou o então presidente Lula) e transcorreu em paralelo a debates acirrados sobre projeto de lei de criminalização da homofobia.
Esse momento intenso de discussões em torno da pedofilia e direitos das pessoas LGBTT antecedeu o ataque feito por parlamentares da bancada religiosa neoconservadora a uma série de vídeos educativos lançados pelo Ministério da Educação em 2011 para promover o respeito pela diversidade sexual, que levaria à sua suspensão pela então presidente Dilma Roussef. Esse material conhecido como “kit gay” continuaria reverberando politicamente. No processo eleitoral de 2018, ele uma vez mais irrompeu no debate público quando foi usado pela campanha de Bolsonaro (PSL à epoca) para atacar o candidato Fernando Haddad (PT) de haver distribuído “mamadeiras de piroca” no sistema educacional público para “ensinar os meninos a serem homossexuais”.
Em 2020, deve-se dizer, a nova onda “contra a pedofilia” começou muito antes das acusações feitas em julho contra Felipe Neto, ministros da Corte e outros. No final de abril, no que parecia ser a maior crise do governo Bolsonaro provocada pela saída do Ministro da Justiça, Sérgio Moro, o presidente nomeou como novo ministro André Mendonça que era Advogado Geral da União desde 2019. Mendonça é advogado e pastor presbiteriano. Como comentaram as pesquisadoras Brenza Carranza e Christina Vital, a nomeação sinaliza para uma maior aproximação com a base evangélica no Congresso e na sociedade e sinaliza para a uma eventual indicação de André Mendonça para ministro da Suprema Corte.
Essa nomeação foi amplamente celebrada entre os membros do governo, especialmente por Damares Alves, mas também pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL), que afirmaram o compromisso firme de Mendonça com a luta contra a pedofilia.
Na sequência, um estudo da agência Bites de análise de dados citado pelo O Globo informou que, desde maio, a Ministra Damares expandiu o número de menções ao termo pedofilia em suas redes sociais, tendo desde então ultrapassado as menções feitas no ano passado inteiro. Entre o final de julho e início de agosto, ela postou 18 mensagens sobre o tema, inclusive um vídeo alertando sobre os perigos da internet para crianças e adolescente e mais especificamente da pornografia infantil.
No podcast Ao Ponto, Pedro Bruzzi, da Consultoria Arquimedes, retomou a tese, ao nosso ver equivocada, que a pedofilia, como outros temas da chamada pauta da moral, estavam de novo sendo usados como “cortina de fumaça” para borrar os efeitos da crise política iniciada com a saída de Moro e agravada pelo momento crítico da pandemia. Nossa discordância vem de quem, desde o nosso ponto de vista, os temas de gênero e sexualidade estão no cerne do giro à direita, mesmo quando também possam funcionar como distração. Rubens Valente, numa excelente análise na Folha de São Paulo, afirma que a atual priorização da pedofilia como campanha de governo tem também a função de projetar a imagem de que o governo não só identifica problemas, mas também oferece soluções.
Finalmente, Isabela Kalil observou que o novo foco na pedofilia está vinculado à criação do Observatório da Família, anunciado pelo MMFDH também em abril. Segundo a antropóloga, essa agenda vem se organizando desde algum tempo com o programa de abstinência sexual (lançado em dezembro de 2019), agora mais abertamente focado na valorização da família e na “proteção das crianças”. Essa agenda de combate governamental à pedofilia é tanto uma política pública estruturante da pauta do governo, quanto um espantalho que, a depender das circunstâncias, pode facilmente se transmutar em categoria acusatória contra pessoas que criticam ou tentam conter o arbítrio deste governo. Essa nova onda pode ser lida como uma nova manifestação da cruzada contra a metamórfica “ideologia de gênero” que, como já mencionado, foi um dos combustíveis da eleição de 2018.
Conexões transnacionais e singularidades nacionais
Essa trajetória, em grande medida singular, não explica contudo e completamente o que se assistiu no Brasil desde abril. A recente erupção antipedofilia tem conexões facilmente rastreáveis com dinâmicas em curso na ciberesfera continental e global. No início de junho, o veículo evangélico digital Noticia Cristiana replicou uma matéria norte-americana que afirmava haver pressões para inclusão dos ‘pedossexuais’ na lista de grupos que reivindica direitos da população LGBTTI. A matéria publicou a imagem da bandeira de um suposto “MAP” em cores rosa e azul, mimetizando de algum modo a bandeira do movimento trans. Em inglês, MAP é o acrônimo de “minor-attracted person” (pessoas atraídas por crianças), uma categoria médico -psiquiátrica que nunca foi usada politicamente.
A bandeira é a sigla foram postadas ao lado de uma foto de manifestação LGBTTI organizada pela organização Sentiido, que luta pelos direitos da população LGBTTI na Colômbia. Essa postagem parece ter desencadeado uma reação viral nas redes digitais do Brasil, Chile, Costa Rica e Colômbia e também na Bolívia e no México ainda que com particularidades. Nos registros do Google Trends, a busca pelos termos ‘pedofilia’ e ‘bandeira da pedofilia’ aumentou vertiginosamente, chegando a alguns picos em junho e julho. Essa postagem e sua viralização pode ter sido mobilizada para criar confusão em relação ao 17 de maio, data que marca o Dia Internacional de Luta contra a LGBTfobia e quando organizações, redes e indivíduos inundam a web com registros de ativismo e celebração da diversidade sexual.
No entanto, a onda também tem traços de “coisa requentada”. Segundo a agência americana de checagem de notícias Snopes, a mesma notícia havia saído no Tumblr nos EUA, em junho de 2018, depois de ter circulado pela primeira vez em 2017. Na sequência, seria publicada em julho de 2018 pelas mídias brasileiras Terça Livre, Expresso Diário e Portal Livre. Ou seja, no momento imediatamente anterior ao processo eleitoral que elegeu Bolsonaro e no qual o tema da pedofilia iria produzir um circo de horrores.
Essa reiteração não é acidental, trata-se de um método: reativar esse tipo de notícias funciona como “jogar iscas” (bait em inglês) nas redes sociais para capturar a atenção, levando o conteúdo a se tornar, eventualmente, um trending topic. Nos países da região em que essa “isca” viralizou em 2020, perfis anônimos no Twitter também publicaram a foto de uma suposta nova bandeira LGBT, com a legenda “O que é a pedossexualidade? – uma thread extremamente necessária” pretensamente para diferenciar a pedossexualidade da pedofilia, a pedossexualiddade seria uma suposta nova categoria de orientação sexual para descrever não só desejo por menores como também o consentimento da criança ou adolescente desejados.
No Brasil, a pedossexualidade se tornou um trending topic no Twitter no dia 3 de junho, muito embora o post de origem tenha sido rapidamente apagado. O perfil que postou a nota admitiu para seus seguidores, todos também anônimos, que isso havia sido um ‘bait’ bem sucedido e foi congratulado pelo seu feito excepcional. Uma dessas congratulações justapunha emoticons das bandeiras da União Soviética e do movimento LGBT , reativando, portanto, a “ideologia de gênero”/marxismo, na nova clave “ideologia LGBTTI”/comunismo que ganhou corpo na Polônia desde o ano passado.
Essa vinculação não é nem nova nem excepcional. A maioria das threads sobre o MAP que examinamos faziam a associação clássica entre comunismo, esquerda e pedofilia. Contudo, num dos posts que replicou as threads, o perfil tuiteiro incluiu nos seus comentários as petições que, na época pediam justiça para George Floyd e o menino Miguel (que caiu do nono andar num prédio de luxo no Recife) estendendo assim a associação da pedofilia na direção da luta antirracista. Um outro perfil, supostamente feminista, postou a imagem já clássica da operária segurando o braço com o lema “Morte aos bolsominions” também fazendo a defesa da pedossexualidade. Em todos os casos verificou-se a conexão em cadeia de significantes flutuantes, usada pela direita há algum tempo, que permite ir “colando” marxismo cultural, Escola de Frankfurt, proteção das minorias, feminismos, “proliferação de gêneros” e pedofilia.
Entretanto, no Brasil, um novo tropo seria, posteriormente, incluído nessa cadeia quando se deflagraram os ataques a Felipe Neto: ‘idade fluida’ (‘age fluid’ em inglês). Como analisou o jornal O Globo, esse termo definiria, supostamente, a categoria usada por pessoas que têm uma “identidade geracional” e de gênero peculiar que justificaria seus desejos sexuais por crianças. Como também investigou o Snopes, essa é uma invenção brasileira, mas outra peça de propaganda importada das redes sociais americanas. No Brasil, ela foi associada à “denúncia” segundo a qual Felipe Neto estaria promovendo a legitimação desse conceito com a conivência do Supremo Tribunal Federal. Essas confusões deliberadas e muito heterogêneas podem ser lidas como uma ramificação metamórfica de argumentos desenvolvidos, desde os anos 1990, contra o feminismo e a homossexualidade e agrupados na fórmula “ideologia de gênero” inventada pelo Catolicismo ultraconservador, ou seja, o Vaticano e seus aliados (leia mais sobre e genealogia do termo aqui e aqui).
Mais um ator na “luta contra a pedofilia”: QAnon
Na sequência, os ataques ressurgiriam, com bastante força, a partir das proliferações digitais do movimento norte-americano QAnon. A sigla se refere ao Q, um perfil anônimo da rede 4Chan (que hoje opera em diversas redes) que pertenceria a um suposto funcionário do governo americano dedicado à propagação de teorias conspiratórias. Nos EUA, o perfil ganhou proeminência por efeito da COVID-19 ao denunciar uma suposta mobilização dos democratas para instalar o satanismo e a pedofilia, clamando aos eleitores para votar em Trump como único oponente possível dessa estratégia.
Sob a hashtag que apela à “proteção das crianças” #SaveTheChildren, os ativistas QAnon denunciam grandes figuras do partido democrata, mas também milionários e celebridades de Hollywood que estariam envolvidos nesse esquema “pedófilo-satânico”, mas também repudiam medidas sanitárias contra a COVID-19, as evidências sobre a crise climática, a produção jornalística da mídia convencional e evidências científicas.
O QAnon tampouco é exatamente uma novidade, como argumenta um artigo esclarecedor do jornal espanhol El Diário, que resgata as principais referências do movimento. Sua origem pode ser traçada ao século XX, nos falsos Protocolos dos Sábios de Sião, um documento que denunciava uma rede secreta de poderosos judeus que controlariam o mundo e que fora utilizado para justificar o antissemitismo. Atualmente, sua referência mais próxima é o episódio Pizzagate, que envolveu a disseminação de uma teoria conspiratória em 2016 que envolvia Hillary Clinton, então candidata à presidência nos EUA, com uma rede de tráfico infantil e que, ao final, levou um membro a abrir fogo contra um restaurante onde as crianças estariam.
No final de junho, a onda QAnon chegou a América Latina, mais especialmente na Argentina e Costa Rica, embora, como informa a BBC, tenham surgido páginas e grupos dedicados ao tema no Brasil, Colômbia, Guatemala, México, Panamá e Uruguai. No Brasil, o movimento se tornaria, de fato, proeminente em 27 de agosto, quando foi lançado o livro “O Movimento QAnon – Introdução à História que Mudará o Mundo” com a ajuda financeira de uma vaquinha online. Como argumenta Odilon Caldeira Neto, do Observatório da Extrema Direita, a pedofilia está no cerne das teorias conspiratórias propagadas pelo movimento, porque incita o pânico moral com muita facilidade para além dos setores ultraconservadores e é um instrumento eficaz para desqualificar inimigos políticos, como se viu no caso de Felipe Neto.
Para concluir
Como vimos, ondas de acusações e pânico moral associadas à pedofilia têm uma larga história. Nos demais países da região, o que se viu desde maio de 2020 pode ser talvez apenas uma nova onda. Mas, nos EUA e no Brasil, essa espirais não vão arrefecer a curto prazo. No primeiro, a acusação de pedofilia já está inscrita na trama de uma feroz dinâmica eleitoral. No Brasil, como vimos, “combater a pedofilia” é agora prioridade do governo Bolsonaro, ou seja, o aparato de estado é uma fonte permanente de discursos sobre o assunto. Além disso, nada indica que a reação virulenta do bolsonarismo a seus críticos vá recrudescer e, portanto, a pedofilia como categoria de desclassificação vai continuar pairando no mundo digital.
Trata-se, portanto, de estar preparados para novas espirais, rastreando suas origens e, sobretudo, não replicando posts, threads, imagens, nem mesmo como denúncia, pois isso só carrega mais água para o moinho de quem propaga esses espantalhos. Também é crucial, como faz Andrea Domingues no excelente artigo O Monstro Debaixo da Cama, justapor a fantasmagoria maligna propagada por redes de direita e do neoconservadorismo religioso contra a plasticidade do gênero e da sexualidade aos dados quantitativos sobre a tenebrosa realidade do abuso sexual.
No caso da Colômbia que ela analisa, em 2018, 23.000 meninas, meninos e adolescentes foram abusados sexualmente, sendo 10.258 meninas entre 10 e 14 anos. Além disso, 77% desses abusos aconteceram em casa, e 77% perpetradores eram pessoas próximas das vítimas, sendo que 14% deles eram seus pais e 2,3% suas mães. Como o cenário brasileiro que veio à luz com ampla visibilidade por efeito do caso da menina de Guriri, no Espírito Santo, vale resgatar aqui a recomendação de Domingues:
Assim sendo, se ficarmos perseguindo pedófilos enrolados em bandeiras cor de rosa, que são retratados nas redes sociais como ativistas furiosos que saem por aí marchando por seus direitos, vamos perder de vista o elefante no meio da quarto, o monstro debaixo da cama.
Imagem: Sem título, Michel Basquiat (1960-1988).