A política sexual em tempos de pandemia
Março e começo de abril de 2020
Foi muito desafiante elaborar o anúncio do SPW de março/abril 2020 em razão da anormalidade, riscos e perdas provocados pela vertiginosa propagação do vírus SARS-COV2. Nesse contexto conturbado, pensamos que não seria suficiente compilar, em categorias habituais, o volume substantivo de informações e análises coletadas sobre os significados e efeitos da pandemia em relação a gênero, sexualidade, HIV/AIDS e aborto. Assim sendo, optamos por organizar esse material num formato diferente, situando os vários temas em relação às implicações da COVID-19 para a política, para a economia, mas também em termos biopolíticos. Além disso, como a pandemia se instalou primeiro nas chamadas economias centrais, China, Europa e EUA, antes de se espraiar por outros países e regiões, convidamos colaborador@s do SPW para escrever sobre contextos que não têm sido objeto de maior atenção, especialmente no Brasil. Começamos pela Nicarágua e El Salvador e agradecemos a generosidade de Humberto Meza e Amaral Arévalo por suas excelentes contribuições.
Covid-19: excepcionalidade e desdemocratização
Desde janeiro, quando o governo chinês adotou medidas extremas de confinamento, em Wuhan, a pandemia deflagrou no mundo uma semântica questionável de guerra ao vírus, dando aos estados, em particular aos inúmeros regimes autoritários existentes, justificativas para exercer o monopólio da violência, o arbítrio e a coerção política.
Nas Filipinas, Duterte autorizou a execução de quem infringe as regras de quarentena. Na Hungria, Orbán suspendeu o que ainda restava de institucionalidade democrática (clique aqui para saber mais na nossa compilação em inglês). Na Polônia, o partido Lei e Justiça investiu contra a lei eleitoral para instituir o voto por correio e manter as eleições presidenciais para maio, numa manobra apontada por opositores como um golpe de estado em meio à crise da COVID-19. Também se ampliaram os poderes de coerção do estado no Irã, Turquia, Israel, Russia, Quirguistão (confira compilação em inglês). Na Índia, a COVID-19 interrompeu as mobilizações políticas contra a nova lei de cidadania e os protestos contra a violência comunitária que vitimou a comunidade muçulmana em várias cidades e, sobretudo, dando a Modi novos argumentos para uso da força e restrição da liberdade de imprensa. Em Uganda, o regime Museveni, usou a pandemia para retomar a perseguição da população LGBT (aqui e aqui). A América Central é outro palco flagrante de abusos, pois estados de exceção estão instalados em El Salvador, Honduras e Guatemala e, mais recentemente, o Equador também suspendeu o acesso a garantias constitucionais. Há finalmente, os contextos autoritários de que quase não se fala como é o caso do Meio Oriente e das situações ainda mais dramáticas da Palestina, especialmente Gaza (ver aqui) e da Cachemira, desde muito, estados de exceção. Há que dizer que mesmo em contextos onde não se registram colapsos democráticos radicais, a crise da COVID-19 tem levado ao uso indiscriminado da lei penal e abusos da parte de agentes estatais de vigilância.
Entretanto, é fundamental lembrar que além dos líderes populistas e antidemocráticos que usam a COVID-19 para ampliar poderes discricionários, há os negacionistas, como Trump, Boris Johnson, Lopez Obrador e Bolsonaro que, em nome da economia e de outros argumentos, retardaram e atacam as medidas de contenção colocando em risco a população de seus países. Boris Johnson parece ter reconhecido com mais consistência as implicações da nova realidade epidemiológica. Trump terminou cedendo às pressões de imposição de quarentena, mas continua ameaçando suspendê-la e exonerar o Dr. Fauci que coordena a resposta sanitária nos EUA. Já Bolsonaro seguiu sua rota tenebrosa. Mesmo depois de mais de 1.000 óbitos por COVID no Brasil, continua irresponsavelmente questionando a gravidade pandemia e, para manter enfurecida sua base política, cria e fustiga inimigos, como por exemplo o ministro da saúde. Fazem-lhe companhia nessa trilha de insanidade três autocratas incontestes: Daniel Ortega e os ditadores da Bielorússia (leia mais aqui e aqui) e do Turcomenistão. Na semana de 10 de abril, contudo, após a substituição do ministro da saúde foi anunciado que as forças armadas iriam supervisionar a gestão da crise, o que sinaliza para um potencial giro autoritário na resposta à pandemia.
Considerando essa onda inequívoca de autoritarismo e arbítrio, é urgente dar visibilidade às políticas bem sucedidas de resposta à epidemia que, aparentemente, não implicam desdemocratização, como nos casos da Alemanha (leia mais aqui), Argentina, Barbados, Coréia do Sul, Dinamarca, Islândia, Noruega, Nova Zelândia, Portugal e Taiwan. Embora vários outros fatores devam ser contabilizados, é interessante observar que esse grupo de países é majoritariamente governado por mulheres. Mas é bom lembrar que essa evidência não deve ser essencializada. Nem todas governantes mulheres estão conduzindo uma resposta efetiva à pandemia, ou mesmo tem respeitado a democracia e os direitos humanos. Na Bolívia, por exemplo, adotou-se um estado de exceção não declarado.
É também fundamental conhecer e disseminar as recomendações feitas aos estados pelos sistemas regionais e internacional e organizações de direitos humanos, sublinhando que direitos humanos não sejam violados pelas ações de resposta à pandemia e lembrando que, em situações de exceção, as pessoas e grupos que já experimentam desigualdade e discriminação são as primeiras vítimas da violência do estado.
COVID 19: capitalismo, gênero e sexualidade
A escala e velocidade da crise COVID-19 não podem ser entendidas sem referência às condições do capitalismo no século 21: intensificação da circulação de capitais, bens e pessoas, cadeias globais de produção cada vez mais interligadas entre si e com China, mais especificamente Wuhan e elevados padrões de desigualdade. Vale lembrar, inclusive, que os primeiros sintomas mundiais de pandemia foram econômicos e financeiros, não sanitários, pois a epidemia chinesa afetou as bolsas no mundo inteiro ainda em janeiro.
Por outro lado, seus drásticos efeitos devem ser atribuídos às consequências das políticas neoliberais em termos de desfinanciamento ou privatização dos sistemas de saúde pública, erosão dos direitos trabalhistas e demais redes de proteção e precarização do trabalho. Um traço paradoxal do cenário atual é, portanto, como bem analisou Angela Alonso, que se quiserem evitar catástrofes humanitárias e econômicas os governos já não podem continuar seguindo cegamente o catecismo neoliberal. Por exemplo, caso os sistemas públicos de saúde fossem mais robustos, a resposta sanitária à COVID-19 teria sido muito mais eficaz e o vírus, possivelmente, menos letal. Além disso, os serviços de saúde sexual e reprodutiva, inclusive para HIV-AIDS, não estariam tão comprometidos pela emergência da pandemia (um tema que será examinado a seguir). Como observa David Harvey, foram os países menos neoliberais que responderam melhor à crise em termos sanitários.
Sobretudo, não estaríamos assistindo à destruição da sobrevivência econômica de milhões de pessoas que vivem do trabalho informal e precário, que a epidemia está produzindo. Entre essas pessoas, como se sabe, as mulheres são, em muitos países, maioria. No Brasil, por exemplo, Hildete Pereira observa que 82% dos postos criados no mercado informal em anos recentes são ocupados por mulheres, a maioria deles em serviços domésticos que, tanto aqui como em outros países, estão rapidamente desaparecendo. Nesse sentido, são muito bem vindas as medidas emergenciais de proteção social para trabalhadoras/es informais que beneficiam as mulheres chefes de família que foram adotadas pelo Congresso Brasileiro, assim como as políticas argentinas de gênero em resposta à pandemia (ver aqui e aqui).
No vasto conjunto de artigos e análises que circulou sobre os impactos de gênero da pandemia, o texto mais completo seja talvez o de Helen Lewis na revista The Atlantic que recupera, criticamente, o que aconteceu em outras epidemias recentes, como Ebola e Zika, e enfatiza como os desequilíbrios da divisão sexual do trabalho agravam os efeitos deletérios da COVID- 19. Como sublinha Lewis, a pandemia está colocando holofotes tanto sobre a persistente divisão sexual do trabalho quanto sobre a centralidade da economia do cuidado. As mulheres não só estão na linha de frente da resposta sanitária como são majoritariamente responsáveis pela sustentabilidade das pessoas nos espaços de quarentena. Essa centralidade, até aqui obscurecida pela primazia da economia das coisas, foi tematizada Débora Diniz, Rita Segato e Alain Touraine e tem sido enfatizada em vários documentos feministas e do Sistema ONU sobre os impactos de gênero da COVID (aqui e aqui) .
Voltando aos impactos sobre o mercado informal de trabalho, é preciso lembrar que, no mundo inteiro, ele está sendo dramático para as pessoas envolvidas com sexo comercial cujas atividades são predominantemente informais e precárias. Identificamos um amplo conjunto de notícias e análises sobre os impactos negativos da queda na demanda no Brasil, Colômbia, Argentina, Bolívia, México, Tailândia, Bangladesh, França e Espanha na nossa compilação em português/espanhol e inglês. Por um lado, esse tratamento dado pela imprensa nos diz que, depois de várias décadas de luta das/dos trabalhadoras/es sexuais por seus direitos, a prestação de serviços sexuais está sendo reconhecida, ao menos pela imprensa, como “trabalho” e já não mais degradação moral. Por outro, o repúdio de setores conservadores e feministas a esse reconhecimento vai, possivelmente, se constituir em obstáculo para implementação de medidas estatais de proteção social a trabalhadoras/es sexuais. Isso pode ser ilustrado pelo que aconteceu no Brasil, onde a primeira versão de uma cartilha sobre riscos da COVID-19, publicada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, recomendava a trabalhadoras/es do sexo a optar pela oferta de serviços virtuais. Mas, tão logo o material ganhou visibilidade na mídia, uma outra cartilha foi publicada na qual esse e outros conteúdos foram eliminados.
COVID-19: Implicações biopolíticas
A COVID-19 e seus efeitos também devem ser lidos como biopolítica. Como outras anteriores, esta pandemia ativa, atualiza e, pode-se dizer, radicaliza os aparatos e dispositivos governamentais, mas também científicos e tecnológicos, para o gerenciamento populacional em grande escala e para o disciplinamento e vigilância do corpo social e dos corpos individuais. Ou seja, os dispositivos de estatização do biológico, como teorizados por Foucault, se entrelaçam com os aparatos políticos e legais de coerção. Este enquadramento Foucaultiano tem inspirado inúmeras e instigantes reflexões críticas sobre a COVID nas últimas semanas, dentre as quais há uma primorosa entrevista ficcional com o próprio mestre da biopolítica, produzida por Clare O’Farrel (em inglês).
No registro biopolítico, a COVID-19 inevitavelmente evoca os efeitos de outras epidemias, como a sífilis, o surto recente de Zika e, sobretudo, a história política do HIV/AIDS porque potencialmente convertem pessoas e grupos sociais em vetores de infecção que devem ser controlados e, no limite, eliminados (veja um compilação em português, espanhol e inglês).
Nesta ocasião, Richard Parker, presidente da ABIA, escreveu sobre a falta de testes para COVID-19 no Brasil. Em seu artigo, observou que, assim como aconteceu no caos da AIDS, a resposta ao COVID-19 pode facilmente reeditar discursos e práticas que culpabilizam, estigmatizam e produzem violência contra idosas/os e portadoras/es de doenças crônicas, o que inclui pessoas vivendo com HIV/AIDS, em particular em contextos de populismo autoritário como o Brasil e os EUA. Analisando o contexto indiano, a feminista Gita Sen menciona a estigmatização de profissionais de saúde (mais expostos à infecção) e grupos vulneráveis, como Dalits, portadores de deficiências e mulheres pobres. Na China, mulheres profissionais de saúde atuando na linha de frente da contenção tiveram suas cabeças compulsoriamente raspadas. Em inúmeros países, pessoas que não cumprem as regras da quarentena que ,em geral, são as mais pobres e marginalizadas, são acusadas de irresponsáveis e estão mais facilmente sujeitas às medidas de coerção e violência do estado (inclusive a violência letal, como nas Filipinas).
Outro traço biopolítico da pandemia é, portanto, a vulnerabilidade diferenciada. Como assinala, Judith Butler, o vírus explicitou nossa precariedade compartilhada como humanos, mas seus riscos e efeitos, sejam eles patológicos, sociais ou políticos, são radicalmente diferenciados quando considerados idade, status de saúde, raça, gênero, orientação sexual e identidade de gênero, etnia, casta, classe e lugar de moradia. Essa vulnerabilidade diferenciada é, tragicamente, ilustrada pela primeira vítima mulher da COVID-19 no estado do Rio de Janeiro: uma trabalhadora doméstica de 63 anos, portanto grupo de risco, exposta ao vírus pela patroa de quem cuidou e que havia sido infectada numa viagem à Itália.
Não menos importante, a COVID-19 tem implicado em lógicas e efeitos problemáticos de segregação espacial, como a tecnologia biopolítica de gestão do corpo social. Cronologicamente, um primeiro sinal desses efeitos foi o aumento imediato da violência de gênero, inclusive assassinatos, porque as mulheres estão de novo confinadas aos espaços domésticos (saiba mais aqui e aqui). As primeiras notícias vieram da China, para em seguida proliferar pelo mundo afora. Esse crescimento da violência de gênero escancara a falta de segurança do universo doméstico (da família) a contrapelo do que propagam as forças conservadoras. Mas também demonstra como as regras biopolíticas de espacialização compulsória podem destruir muito rapidamente as redes de sociabilidade como um mecanismo de proteção horizontal.
Em seguida, os governos do Panamá, do Peru e da cidade de Bogotá adotaram como medida de contenção da circulação critérios de sexo/gênero para definir quem pode ou não sair de casa a cada dia da semana. As imprensas latina e brasileira publicaram matérias sobre essas medidas, que descrevem os efeitos de discriminação sobre as pessoas trans e, no caso no Peru, a estigmatização das mulheres (veja uma compilação). Na Colômbia, um editorial do jornal El Espectador criticou as medidas adotadas e, em toda parte, o rodízio por sexo/gênero foi repudiado por organizações de direitos humanos e de defesa dos direitos das pessoas trans. No Peru, a regra foi revogada e um balanço de seu impacto já está disponível (em espanhol). Na Colômbia, por sua vez, está em curso uma campanha digital que pede a suspensão das medidas na capital Bogotá. No artigo que escreveu sobre as medidas, Sonia Corrêa observa que a regra de segregação baseada em sexo/gênero reifica o determinismo biológico do dimorfismo sexual colocando, de imediato, as pessoas não binárias em situação de maior risco e vulnerabilidade frente à coerção do estado. Segundo ela, essa lógica também contribui para cristalizar a dita ordem natural de sexo/gênero, reativando camadas profundas onde se assentam a divisão sexual do trabalho e as desigualdades entre homens e mulheres.
Finalmente, há que se considerar, como o fazem várias/os observadoras/es, as implicações biopolíticas da gestão individualizada dos riscos da COVID e, mais especialmente, os significados e desdobramentos dos aparatos de vigilância digital ampliada, que foram adotados com sucesso epidemiológico em vários países, inclusive aqueles em que as condições democráticas não estão abertamente ameaçadas (saiba mais em nossa compilação).
E veja aqui recomendações da ONU e do Sistema Internacional de Direitos Humanos sobre como responder à violência de gênero e outras formas de violência, discriminação, estigmatização decorrentes da pandemia.
Saúde reprodutiva e aborto
O disciplinamento, regulação e jurisdição sobre os corpos que engravidam também estão na esfera da biopolítica e, como tal, também sofrem os efeitos da pandemia. Tanto a norte quanto ao sul do Equador – Brasil, EUA, França, Índia e Itália – serviços de aborto e de saúde reprodutiva foram suspensos por não serem considerados essenciais. Essa distinção entre essenciais e não essenciais, que parece ser inevitável nesse momento de crise, deve ser interrogada, pois é como se a autonomia corporal e o acesso à saúde sexual e reprodutiva fossem direitos dispensáveis. Além disso, as forças antiaborto têm deliberadamente usado a pandemia como pretexto para forçar o fechamentos de serviços de aborto. No Brasil, isso parece ter acontecido no Hospital Pérola Byington em São Paulo que, sob pressão da justiça, teve o serviço reestabelecido (leia aqui). Na Argentina, um grupo de deputados confessionais questionou a decisão do governo Fernandes de considerar como essenciais os serviços de saúde de reprodutiva, inclusive de aborto nos casos legais, assim como gastos com a compra de Misoprostol. Nos EUA, nos estados do Alabama, Iowa, Kentucky, Mississipi, Ohio, Oklahoma e Texas, onde em 2019 haviam sido apresentados projetos de lei para proibir absolutamente o aborto, houve fortes pressões para fechamento de serviços em vários deles, como no Texas, onde as clínicas foram fechadas por decreto. E, como se verá a seguir, proibir radicalmente o aborto se tornou prioridade do governo polonês (ver compilação aqui). Mais grave, porém, foi a declaração de Bolsonaro que ao demitir o ministro da saúde no dia 16 de abril, que resistiu sua pressão para suspensão da quarentena, declarou que nomearia uma pessoa radicalmente contra o aborto.
Por outro lado, a dificuldade de acesso físico aos serviços de aborto provocou uma conjuntura favorável para ampliação do acesso ao aborto farmacológico que pode ser realizado em casa. A Campanha Internacional Pelo Direito das Mulheres ao Aborto Seguro (ICWRSA) lançou uma chamada internacional à ação que clama por uma agenda racional que garanta o direito das mulheres frente ao atual estado de emergência, privilegiando o aborto realizado remotamente, e países como Colômbia, Escócia, Gales, Inglaterra, Irlanda e Irlanda do Norte conseguiram aprovar a regularização (mesmo que temporária) de serviços de aborto por telemedicina (veja uma compilação). Finalmente, e muito importante, reconhecendo os efeitos deletérios da COVID-19 sobre os serviços de saúde sexual e reprodutiva, a Organização Mundial da Saúde divulgou no dia 26 de março um guia clínico, em que afirma que esses serviços, aí incluída a interrupção voluntária da gravidez, devem ser preservados como essenciais durante a pandemia.
COVID- 19: políticas antigênero
Essa seção explora de maneira preliminar e parcial como as forças antigênero estão posicionadas e mobilizadas frente à COVID-19. A primeira coisa a se observar é que, em toda parte, instituições religiosas envolvidas nas campanhas antigênero têm reagido negativamente às regras de isolamento social. Mesmo o Vaticano criticou de início o fechamento de todas as igrejas e desafiou as medidas implementadas em Roma. Porém, quando o quadro italiano se agravou, o papa retrocedeu e, solitário, oficiou uma missa na praça São Pedro vazia. Na América Latina e no Brasil, especialmente, pastores vociferaram amplamente contra a restrição dos cultos. Em toda a região, circularam vídeos em que vozes evangélicas e católicas conservadoras questionam a existência do vírus, desqualificam a eficácia das respostas biomédicas e afirmam que as pessoas devem confiar na cura de deus (ver aqui vídeos brasileiros e vídeo chileno).
Ainda na América Latina, líderes católicos interpretaram a COVID-19 como um castigo pelos esforços de legalizar o aborto na Argentina e também pela radicalidade feminista e pelos direitos à diversidade sexual conquistados no México. Igrejas evangélicas também têm circulado panfletos que ensinam mulheres a se comportar como boas esposas durante a quarentena. Em Israel, o rabino Meir Mazzur declarou que a epidemia era um castigo pelas Paradas do Orgulho LGBT e, na Europa, o catolicismo conservador vinculou a propagação do vírus ao chamado “inverno demográfico”, ou seja, à queda de fecundidade (leia em inglês).
Por outro lado, é preciso dizer que nem todos os governos que escalaram os níveis de arbítrio ou que assumiram posturas negacionistas como resposta à pandemia estão alinhados ou contam com o apoio das forças antigênero. Isso não se aplica à Índia ou às Filipinas, por exemplo, mas é certamente o caso dos EUA, Brasil, Hungria, Nicarágua e Polônia. Na Polônia, onde hoje existem zonas em que está proibida a presença de pessoas LGBTTI, o Partido da Justiça, no poder há muito tempo, usa a pandemia para conseguir rapidamente aprovar proibição total do aborto (saiba mais em inglês aqui e aqui). Já nos Estados Unidos e no Brasil, as forças antigênero, reiterando sua ideologia anti-intelectualista, sustentam os discursos presidenciais que desqualificam a gravidade da pandemia e hostilizam epidemiologistas e outros cientistas.
Em ambos casos, há vozes extremistas afirmando que não se deve acreditar na ciência, mas em Trump e Bolsonaro, que seriam “enviados de deus”. Há ainda discursos religiosos e seculares que acusam o isolamento social, o acesso à saúde universal e os pacotes de alivio econômico como medidas socialistas (veja uma compilação em inglês e português). No caso dos EUA, essas pressões explicam, em parte, a suspensão de financiamento revertido à OMS, feita com base em acusações de ineficácia, alinhamento com a China e promoção do aborto. Decisão essa que está sendo aplaudida por celebridades do campo antigênero como, por exemplo, o argentino Agustín Laje.
Como argumenta Claire Provost em artigo publicado na openDemocracy, é evidente o estado de anormalidade e emergência instalado no planeta, que cria condições favoráveis para que as forças antigênero reforcem os papeis tradicionais de gênero, o dimorfismo sexual e a rejeição ao feminismo e à diversidade sexual. Mas também para fechar fronteiras e permitir a essas forças ou a seus aliados políticos um maior controle sobre o poder do estado nos contextos em que aí já estão instaladas ou, no futuro, para uso eleitoral das tragédias resultantes da epidemia e, então, capturar mais poder em outros países.
Para finalizar, é produtivo verificar como a pandemia está interpretada a partir dos arcabouços ideológicos mais amplos que têm inspirado a extrema-direita mundial, assim como uma gama importante das forças antigênero. Num instigante artigo publicado pelo The Nation, Benjamin Teiteulbaum mostra, por exemplo, como tanto Alexandr Dugin, o guru de Putin, como Steve Bannon – apesar de discordarem radicalmente quanto ao papel do Ocidente e dos Estados Unidos no sistema mundo – consideram que a pandemia tem um significado epocal e sistêmico que vai favorecer suas visões de repúdio à modernidade, em suas múltiplas manifestações, e ao globalismo.
Para não esquecer
Os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completaram dois anos no dia 14 de março. O SPW junta-se às vozes que, mesmo em meio à crise da COVID-19, relembram o crime brutal para cobrar por respostas e justiça. Leia nossa compilação.
Sexualidade & Arte
Nesta edição, o SPW exibe a obra Anticorpo Fabricado da artista Anna Dumitriu sobre doenças infecciosas, biologia sintética e robótica.
Recomendamos
O SPW apresenta a série de entrevistas Chile Desperto, realizadas por Carla Batista, que trata o levante popular chileno que aconteceu no final de 2019 sob diferentes ângulos, privilegiando o tema da política sexual em relação ao feminismo, gênero, sexualidade e identidade de gênero. Leia aqui.
Artigos
Aborto
Principal hospital de aborto legal de SP interrompe serviço por coronavírus – Azmina
Nota sobre o fechamento do serviço de atendimento a mulheres vítimas de violência sexual do Hospital Pérola Byington, em São Paulo – Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
Crise do coronavírus tem dificultado acesso ao aborto nos Estados Unidos – UOL
COVID-19, saúde reprodutiva e aborto: compilação – SPW
Biopolítica
Paul B. Preciado: Aprendendo com o vírus – AGB Campinas
Biopolítica nos Tempos do Coronavírus. – Instituto Unisinos
Biopolítica e Coronavírus, ou não esquecer Foucault – Felipe Demetri – Medium
Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’ – Folha de São Paulo
A necropolítica das epidemias – Débora Diniz – El País
Biopolítica de uma catástrofe anunciada – Outras palavras
#SomosTodasVelhos: notas sobre grupo de risco em tempos de pandemia – Memória LGBT
Biopolítica e coronavírus: compilação de artigos – SPW
Direitos Humanos
Resposta ao COVID-19 deve respeitar direitos – Human Rights Watch
América Latina: Reduza a superlotação nas prisões para combater a COVID-19 – Human Rights Watch
No meio da pandemia, governo Bolsonaro admite que removerá quilombolas – UOL
Coronavírus e direitos humanos: compilação – SPW
Economia e Desigualdade
“O capitalismo tem seus limites”, afirma Judith Butler sobre o COVID-19 – Judith Butler – Blog Boitempo
O futuro pós-coronavírus já está em disputa – Eliane Brum – El País
Austeridade é a maior aliada do coronavírus no Brasil – Jacobin
Coronavírus, economia e desigualdade: compilação – SPW
Gênero, direitos das mulheres e feminismo
A necropolítica das epidemias – Débora Diniz – El País
Mundo pós-pandemia terá valores feministas no vocabulário comum, diz antropóloga Debora Diniz – Folha de São Paulo
Violência doméstica na quarentena: como se proteger de um abusador? – Carta Capital
Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do coronavírus – AzMina
Violência doméstica na quarentena: o que fazer? – AzMina
¿Cómo luchan las mujeres contra la violencia de género en América Latina? – openDemocracy
Emitxin: Los feminismos del fin del mundo – La Tinta
Coronavírus, gênero, mulheres e feminismo: compilação – SPW
HIV/Aids
O que as pessoas que vivem com HIV precisam saber sobre o coronavírus – Agência de Notícias da Aids
COVID-19 e HIV/AIDS: compilação – SPW
Política
Além do vírus: Não há pandemia sem Estado – Estado da Arte
Coronavírus: por que Bolsonaro e líderes de esquerda na América Latina adotam postura parecida – BBC
Líderes de extrema direita ampliam poder e erram ao lidar com epidemia – Veja
Bolsonaro vira ‘BolsoNero’ e ‘O último negacionista’ – Folha de São Paulo
Vladimir Safatle: Bolsonaro se acha capaz de esconder os corpos – Agência Pública
Políticas antigênero
¿Qué es la “ideología de género”?: transformaciones sociales y políticas en Brasil a partir de la apropiación de una estrategia discursiva – Encartes Antropológicos
Religião
Base social dos pentecostais conta com uma presença grande de mulheres e negros. Entrevista especial com Maria das Dores Campos Machado e Christina Vital – Instituto Unisinos
Coronavírus: líderes evangélicos espalham charlatanismo e teorias da conspiração em cultos e vídeos – Intercept
Evangélicos fazem coro com Bolsonaro e negam riscos do coronavírus – DW
Covid-19 e discurso religioso: notícias e análises – SPW
Trabalho sexual
‘Nós somos invisíveis’: trabalhadoras sexuais são afetadas pela pandemia – Uol
A prostituta, o vírus, a cidade – Observatório da Prostituição
Indiferente ao vírus, a vida segue devagar em zona de prostituição do Rio – Folha de São Paulo
Coronavírus: pandemia deixa prostitutas de BH sem renda e moradia – Estado de Minas
Coronavírus não interrompe prostituição a R$ 30 no centro de São Paulo – Uol
Coronavírus faz cliente procurar sexo com máscara em Amsterdã – Folha de São Paulo
Como trabalhadoras do sexo no Brasil vêm conquistando direitos pelo sindicato – openDemocracy
Coronavírus e trabalho sexual: compilação – SPW
Direitos LGBTTI+ e sexualidade
Pandemia, sexualidade e percepção do risco: algumas notas sobre quarentena e desejo – antropoLÓGICAS EPIDÊMICAS
Jovens relatam como a pandemia do novo coronavírus alterou suas rotinas – Projeto Diversidade Sexual, Saúde e Direitos entre Jovens
Coronavírus e direitos LGBTTI+: compilação – SPW
Outros
Breves anotações sobre trauma, por Carla Rodrigues – Medium
Paul B. Preciado: A conspiração dos perdedores – Medium Sara York
Metáfora da guerra não faz bem à saúde pública ou à democracia – Folha de São Paulo
O andar de cima sabia mais, e a cólera matou 10 mil pessoas na última epidemia na Europa – Elio Gaspari – Folha de São Paulo
Coronavírus e vigilância: compilação de artigos – SPW
Recursos
Clipping ‘Aborto na mídia brasileira’ – SPW & CFEMEA
Aborto en tiempos de covid-19 – CLACAI
Guía de orientaciones prácticas de denuncia de la violencia de género sobre mujeres y niñas con discapacidad en la situación de emergencia por el coronavirus – Fundación Cermi Mujeres
Não perca!
Oportunidades na área de gênero – Núcleo de Estudos de Gênero Pagu
Equipe: Rajnia de Vito, Fábio Grotz
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