>> Leia em PDF <<
Parte 2 – As ofensivas antigênero não arrefeceram
Política do gênero: boas novas
Inevitavelmente, o cenário político descrito na parte 1 desta edição está atravessado por ofensivas antigênero, ataques a direitos LGBTQIA+ e, como veremos a seguir, ao direito ao aborto. Contudo, também trazemos algumas boas notícias.
Na esfera transnacional, a mais relevante delas foi, sem dúvida, a aprovação no Conselho de Direitos Humanos da ONU de uma resolução que reconhece as violações de direitos humanos das pessoas intersexo. Houve enorme resistência ao texto por parte de estados conservadores, e a delegação da Santa Sé atuou com muito vigor contra sua adoção. Apesar de muitas abstenções, a resolução foi aprovada por 24 países membros do Conselho, após ter sido apresentada por um conjunto ainda mais amplo de países (muitos dos quais não são membros do CDH nesse momento). Num artigo para o SPW, Mauro Cabral, ativista e filósofo argentino, e o ativista brasileiro Amiel Vieira falam sobre o significado desse resultado para a comunidade intersexo.
Outra boa notícia é que o Grupo de Trabalho sobre Discriminação de Mulheres e Meninas na Lei publicou um novo informe que analisa violações de direitos humanos no âmbito do trabalho sexual e recomenda sua descriminalização. O relatório foi objeto de debate num evento paralelo organizado pela Sexual Rights Initiative, na 56ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos, e antes disso profissionais do sexo fizeram uma manifestação diante do Palácio das Nações. Essas iniciativas contestam frontalmente os argumentos arrolados num recente relatório sobre tráfico de pessoas elaborado pela Relatora Especial de Violência contra Mulheres e Meninas.
Também se registraram dinâmicas e mudanças normativas auspiciosas no âmbito dos direitos trans em vários contextos nacionais. No Brasil, na mesma semana em que a resolução da ONU foi adotada, o Ministério Público Federal solicitou ao Conselho Federal de Medicina a revogação de resolução que autoriza cirurgia precoce em crianças intersexo. Na Suécia, uma nova lei foi aprovada, em abril, que amplia a idade mínima de 18 para 16 anos para efeito de mudança de gênero no registro civil e facilita o acesso a cirurgias de mudança do sexo biológico. No mesmo mês, o Congresso alemão adotou lei que reafirma o direito à autodeterminação da identidade de gênero em documentos oficiais, facilitando os trâmites burocráticos. A decisão foi elogiada em artigo do Human Rights Watch.
Também é muito significativo que, no Caribe — região do mundo onde na maioria dos países ainda estão vigentes as leis criminais herdadas do colonialismo britânico –, a Corte Suprema de Dominica tenha descriminalizado a relação consensual entre pessoas do mesmo sexo.
Na Estônia, em janeiro, entrou em vigor a lei do matrimônio igualitário aprovada em meados de 2023 e que faz do país a primeira nação do espaço pós-soviético a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O mesmo aconteceu na Grécia, onde a nova lei também garante o direito à adoção. Não menos importante, na Polônia — onde em 2023 o regime ultraconservador do Partido Lei e Justiça foi derrotado eleitoralmente –, a emissora estatal de televisão desculpou-se publicamente por anos de propaganda homofóbica.
Outra ótima notícia vem de Comitê Olímpico Internacional. Como bem analisou Nana Soares em artigo que publicamos no ano passado, o Comitê havia de algum modo “lavado as mãos” ao transferir para as federações de cada modalidade esportiva a definição de parâmetros biomédicos para a participação de mulheres trans. Como temos registrado, desde então, isso resultou numa enxurrada de normas restritivas em quase todas as modalidades. De modo a conter essa avalanche, o COI solicitou um estudo amplo, que foi realizado pela Universidade de Brighton, cujos resultados concluem que mulheres trans não são homens biológicos. A conclusão se contrapõe frontalmente aos argumentos das forças que se opõem à participação de mulheres trans em competições femininas de elite. O resultado não vai conter de imediato a fúria desses setores, mas pode ancorar novas narrativas de contestação desses ataques.
Finalmente, registramos e celebramos a publicação do novo livro de Judith Butler: “Quem tem medo do gênero?”, lançado em março. Nessa nova obra, Butler reflete criticamente sobre os significados e efeitos das políticas antigênero, mapeando suas geografias e conexões transnacionais e contestando as imagens e narrativas por elas propagadas. Nesse exercício, Butler revisita muitas de suas elaborações anteriores e tece o novo enquadramento do “fantasma do gênero”. Como pode ser visto na compilação que organizamos desde o lançamento, e nas várias entrevistas subsequentes, Butler tem sublinhado o caráter político dos ataques à teoria de gênero, incluídas suas conexões com o pós-fascismo.
As ofensivas que não arrefecem
Apesar das boas novas, as ofensivas antigênero não só persistem como, de fato, ficaram mais agressivas desde janeiro de 2024. O ano começou com o recém-eleito Javier Milei acionando sua “motoserra” contra o keynesianismo, o “marxismo cultural”, o “gênero” e o feminismo no Foro de Davos. A performance, bem mais grotesca que o primeiro discurso feito por Bolsonaro na ONU, em 2019, causou perplexidade por todo lado, inclusive entre atores neoliberais que até então andavam entusiasmados com a pauta econômica de Milei. Uma ótima matéria da Página 12 descreveu a cena apontando os trechos mais grotescos do discurso. Mas coisa pior estava por acontecer, pois em seguida Elon Musk postou na sua plataforma digital uma imagem pornográfica tóxica para exibir sua excitação erótica com o líder libertário portenho, como escreveu Marcos Augusto Gonçalves na Ilustríssima.
Outro evento global a registrar foi a publicação da Cass Review, uma revisão técnica realizada a pedido do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido sobre abordagens biomédicas da identidade de gênero na adolescência e infância (IGAI). Como previsível, o impacto midiático foi imediato e tendencioso, já que essa questão é hoje alvo principal das ofensivas antigênero. Alguns veículos alegaram, inclusive, que a revisão teria revelado o maior escândalo médico do século. No Brasil, depois da publicação de notas de agências sobre o documento, coletivos feministas transexcludentes pressionaram os grandes jornais a dar maior visibilidade aos resultados.
Tomas Ojeda e Rodrigo Sierra, num excelente briefing sobre a revisão, examinam a hostilidade que viceja no Reino Unido em torno da IGAI e cotejam a diferença entre o que o informe diz e o que circulou na imprensa, pois o resultado não menciona danos físicos ou psicológicos das abordagens médicas para a IGAI, tampouco recomenda a suspensão do uso de bloqueadores de hormônios. Por outro lado, os autores observam que a Dra. Cass e sua equipe não têm experiencia em serviços de atenção à IGAI e que, sobretudo, a revisão não foi sistemática nem, de fato, apresentou “dados novos”. A avalanche de críticas que se seguiu, elaboradas pelo ativismo trans, mas também pelo campo biomédico – por exemplo, a American Academy of Pediatrics e até mesmo o governo escocês-, parece ter contido esse ciclone. Mas isso não significa que outros não virão.
Voltando os olhos para dinâmicas nacionais, ilustrações muito contundentes vêm da América Latina. Na Argentina, num de seu primeiros atos administrativos, Milei fechou o INADI, instância responsável pela políticas antidiscriminação, e reduziu o Ministério das Mulheres, Igualdade e Diversidades a uma Secretaria de Combate à Violência de Gênero dentro do Ministério do Capital Humano. Em junho, foi anunciado que essa secretaria, já transportada para o Ministério da Justiça, iria desaparecer. Antes disso, ainda em fevereiro, o governo tinha vetado o uso da linguagem inclusiva em documentos da administração pública. Não surpreendentemente, também em El Salvador, Bukele vem atacando a “perspectiva de gênero” e determinou sua exclusão dos materiais pedagógicos da educação pública.
No Brasil, levantamento publicado em janeiro, pela Folha de São Paulo mapeou quase 300 projetos de leis que visam restringir direitos trans em vários campos apresentados nos níveis federal, estadual e municipal. Setenta e sete dessas leis já foram aprovadas. Além disso, desde 2023, o Ministério das Mulheres tem sido alvo de ataques digitais sistemáticos por parte de coletivos feministas transexcludentes que se posicionam contra sua política de proteção contra a violência que está voltada para as mulheres em sua diversidade, ou seja, inclui mulheres trans e intersexo. E, no começo de junho, logo após a revisão do Brasil pelo Comitê Cedaw, que elogiou essa política, a ministra esteve na Comissão de Educação da Câmara Federal, presidida pelo deputado Nikolas Ferreira, para “esclarecer qual é concepção de mulher”.
Para além dos ataque ao “gênero”, um livro antirracista amplamente premiado, “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório, foi proibido nas escolas públicas do Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás. Um padrão que em grande medida replica o norte-americano, onde as ofensivas antigênero se conjugam com ataques à pedagogia antirracista.
Já no Peru, o Ministério da Saúde, sob o argumento de assegurar acesso ao tratamento da disforia de gênero nos seguros privados, adotou uma nova normativa de atenção à saúde trans. O protocolo, contudo, se baseia na caduca CID 10, que definia essa condição como transtorno mental. Em contraste, a CID 11, aprovada em 2018, substituiu a definição de disforia por incongruência de gênero e a situou no capítulo de saúde sexual. A reação crítica foi ampla, comportando tanto reações nacionais como internacionais. Em Lima, a comunidade trans organizou uma marcha de protesto contra a medida.
Nos EUA, a ofensiva contra os direitos LGBTQIA+, especialmente contra as pessoas trans, segue seu curso. Nos legislativos estaduais, mais de 500 projetos de lei foram apresentados até o início de junho, superando o número de propostas apresentadas em todo o ano de 2023. Embora essa virulência seja assustadora, Françoise Girard avaliou, no debate promovido pelos Diálogos Pendentes e Emergentes, que esses ataques podem ter um efeito negativo do ponto de vista eleitoral.
Finalmente, apesar da boa notícia sobre a pesquisa realizada sob os auspícios do Comitê Olímpico Internacional (COI), a saga da proibição da participação das mulheres trans nos esportes de elite continua nos níveis descentralizados. Nos EUA, a federação de boxe determinou que atletas trans se submetam à cirurgia de redesignação sexual para competir nos torneios e estabeleceu um período de quatro anos de avaliações trimestrais para que possam competir. Da mesma forma, a Federação de Alpinismo estabeleceu novas regras que restringem a participação de atletas trans.
Arenas das Nações Unidas
A 77ª Assembleia Mundial da Saúde se reuniu entre os dias 27 de maio e 1º de junho, e gênero foi um dos aspectos mais flagrantes. Durante a consideração de várias resoluções, notadamente cobertura universal de saúde, participação social e crise climática, os termos sensíveis a gênero (“gender-responsive”) e saúde sexual e reprodutiva sofreram oposição de países conservadores, como Paquistão, Irã, Arábia Saudita, Rússia, Nigéria, Bahrein, Síria e Egito. O genocídio na Palestina também foi um tema divisor na AMS. Embora a resolução autorizando a Palestina a ampliar seu papel na Assembleia tenha sido aprovada, a resolução sobre a saúde na Palestina foi sequestrada por Israel, que conseguiu inserir uma emenda urgindo a liberação de reféns em Gaza. Do lado de fora da Assembleia, o famoso ônibus da organização antigênero CitizenGO cruzava Genebra, desta vez vestindo as cores azuis da OMS para opor-se ao Tratado de Pandemias, um dos principais temas pendentes desta assembleia, e conseguiu reunir algumas centenas de pessoas em uma manifestação no último dia. A mobilização contra o Tratado, no entanto, é muito mais ampla e antecede a Assembleia, contando com massivas campanhas digitais.
CPD: trinta anos da Conferência do Cairo
No final de abril, aconteceu na sede das Nações Unidas, em Nova York, a 57ª Sessão da Comissão de População e Desenvolvimento que, neste ano, celebrou os 30 anos da Conferência de População e Desenvolvimento do Cairo. A Comissão é a instância responsável pelo seguimento do seu programa de ação. À diferença do que havia acontecido desde 2014, o documento final desta sessão foi consensuado, o que foi comemorado em vários quadrantes – inclusive no campo feminista. [1]
Mas esse documento final não foi, de fato, negociado de maneira ampla. Além disso, é um texto de pouco mais de 700 palavras onde proliferam reafirmações e reconhecimentos. Mas que, em nenhum momento, explicita os conteúdos que fizeram do Programa de Ação do Cairo um documento extraordinário: igualdade de gênero, saúde e direitos reprodutivos, as muitas formas de família, o direito de crianças e adolescentes, e o aborto como grave problema de saúde pública. Tampouco menciona desdobramentos e ampliações posteriores desses conteúdos como, por exemplo, o chamado Consenso de Montevideo.
Não há, portanto, o que celebrar nos resultados da 57ª sessão da CPD. O documento final, de fato, suscita inquietações, inclusive porque esse vazio de referências aos conteúdos nodais do Cairo se conjuga com uma menção explícita a preocupações demográficas (parágrafo 3). Esse retorno a parâmetros demográficos deve ser lido a partir das lentes usadas por Françoise Girard no seu excelente balanço sobre o ressurgimento de ideologias e políticas pró-natalistas nos contextos nacionais mais variados. Não menos importante, esta leitura crítica também deveria contabilizar uma recente e espantosa declaração do Papa Francisco comparado os contraceptivos à indústria armamentista. Dito de outro modo, são fortes os sinais de que, no plano institucional, o círculo virtuoso iniciado em 1994 foi encerrado. Isso não significa, contudo, que seus legados não estejam vivos no mundo da vida.
Direitos LGBTQIA+: Boas e más notícias
A maioria das boas notícias que nos chegaram sobre direitos das pessoas LGBTQIA+ referem-se a leis de matrimônio igualitário. A Estônia se tornou o primeiro país do espaço pós-soviético a reconhecer o matrimônio igualitário: a lei aprovada em meados de 2023 entrou em vigor em janeiro deste ano. Em fevereiro, na Grécia, a nova lei que assegurou esse direito também incluiu o direito à adoção. No final de novembro 2023, a Corte Constitucional do Nepal reconheceu o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. Em março, o mesmo aconteceu na Tailândia, com lei aprovada no Parlamento. Com essas novas definições legais, são hoje quatro os países que permitem o casamento ou a união civil entre pessoas do mesmo sexo na Ásia, sendo os outros Taiwan (2019) e Índia (2022).
No Caribe, onde seguem vigentes leis penais coloniais que criminalizam relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, a lei foi objeto de litígio estratégico em Dominica. A Corte Suprema julgou a lei inconstitucional. E, no Brasil, a boa notícia é que o Ministério das Mulheres está apoiando financeiramente a realização de uma nova etapa do censo da população lésbica.
Por outro lado, há também muitos ataques e retrocessos a reportar, especialmente na África Subsaariana, como pode ser verificado em matéria do portal Openly e em análise feita pela DW que identifica, nesta onda, as digitais da direita religiosa americana. Entre outros exemplos nacionais, em Gana, uma lei draconiana proposta em 2021 foi aprovada no final de fevereiro. O texto pune não apenas as condutas homossexuais como também qualquer iniciativa considerada em defesa política dos direitos LGBTQIA+ (nossa compilação oferece análises sobre a lei).
Em Uganda, onde inciativas legislativas drásticas contra a homossexualidade e pessoas trans remontam ao começo dos anos 2010, o Tribunal Constitucional legitimou a draconiana legislação em vigor que prevê até prisão perpétua para pessoas condenadas por relações homossexuais. A Corte, contudo, preservou a proteção do acesso à saúde para a prevenção do HIV e para pessoas vivendo com HIV. Como analisado em artigo da Open Democracy, essa exclusão foi criticada por ativistas e profissionais de saúde pública, que a consideram inútil num contexto de hipercriminalização.
No vizinho Burundi, onde as relações entre pessoas do mesmo sexo são criminalizadas desde 2009, o presidente tem recorrido a uma forte retórica homofóbica. E um episódio ocorrido no contexto pós-eleitoral do Senegal ilustra o agravamento dos sentimentos antidireitos LGBTQIA+ que viceja entre os líderes, mas também nas sociedades regionais. Em maio, Jean Luc Mélenchon, líder da esquerda francesa, visitou o Senegal e, num foro estudantil, na Universidade Cheikh Anta Diop, defendeu o casamento igualitário. Foi vaiado e Ousmane Sonko, o novo primeiro-ministro, criticou Mélenchon afirmando que tal defesa mobiliza sentimentos antiocidentais na África. Posteriormente, dois homens foram presos depois de acusarem, publicamente, o primeiro-ministro de tolerar a homossexualidade ao permitir a presença de Mélenchon no país.
Também é preciso registrar a aprovação de lei no Iraque que pune com prisão “atos homossexuais” e “homens que agem intencionalmente como mulheres”. E, no Caribe, em contraste com a boa nova da revogação da lei de sodomia em Dominica, a Corte de São Vicente e Granadinas indeferiu uma demanda de inconstitucionalidade da lei penal de mesmo teor.
Aborto e Direitos Reprodutivos
Na França, no começo de março o Parlamento aprovou a constitucionalização do direito ao aborto, iniciativa do governo Macron apoiada por uma ampla coalização de congressistas da esquerda à direita. O episódio obteve bastante visibilidade e foi apontado como uma resposta ao panorama global de retrocesso na matéria. Também foi muito discutido e apontado por ser considerado o primeiro caso de uma nação que inscreve a prática na Carta Magna. Contudo, conforme ressaltou artigo de Tanja Ignjatovic, publicado no portal Balkan Insight, a Iugoslávia constitucionalizou esse direito em 1974. Sonia Corrêa, em preâmbulo à tradução do artigo de Tanja, aborda o acontecimento numa perspectiva que combina a trajetória histórica da descriminalização com memórias pessoais.
Depois da lei francesa, o Parlamento Europeu também aprovou resolução que inclui o aborto no rol de direitos fundamentais da União Europeia. E, na Alemanha, uma comissão de especialistas recomendou que o aborto seja legalizado no país germânico. Embora tolerado na prática, a lei vigente define a prática como crime.
Na Polônia, o governo pós-autocracia de Donald Tusk tem cumprido a promessa de reformar a legislação sobre a prática, que foi submetida à draconiana criminalização durante os anos de gestão do Partido Lei e Justiça. Em abril, quatro diferentes projetos que legalizam e ampliam o acesso ao procedimento avançaram na Câmara Baixa. Compilamos análises sobre a cena polonesa e as perspectivas na questão.
Em meio a ofensivas contra o direito ao aborto na América Latina e apesar do clima político desfavorável à sua gestão, o presidente Gabriel Boric anunciou que, já no segundo semestre deste ano, seu gabinete deve propor um projeto de lei para o aborto legal no país. No Chile, a interrupção é permitida em apenas três circunstâncias e somente desde 2017.
Olhando a América Latina, o Brasil foi denunciado, em março, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, por violação do direito ao aborto legal. Em maio, o país passou pela revisão do Comitê CEDAW, que fez ao Estado a recomendação preliminar de legalização e descriminalização do aborto no país. A recomendação é bem-vinda, pois converge com os argumentos arrolados na ADPF 442/2017 que está em julgamento no STF. Contudo, o Comitê perdeu a oportunidade de fazer recomendações robustas sobre a necessidade de proteção dos serviços de aborto legal que, como se verá a seguir, estão sob forte ataque.
Finalmente, na Argentina, onde o novo governo incita com vigor o clima antiaborto, a Corte Suprema decidiu, no final de abril, contra uma ação coletiva que questionava a constitucionalidade da lei de aborto de 2020.
Más notícias
Como anunciado acima, más notícias vêm da Argentina. O presidente Javier Milei já anunciou a apresentação de um projeto de lei para revogar a reforma aprovada em 2020. Também fez um corte acentuado no financiamento dos serviços do Plano Nacional de Prevenção da Gravidez Não Intencional na Adolescência. Essas ofensivas não devem arrefecer, inclusive porque o atual Secretário Nacional para a Infância dirigiu a política de saúde na cidade de São Miguel, onde desde alguns anos tem sido implementada uma política robusta para convencer mulheres a não exercer o direito ao aborto.
Já no Brasil, como analisa nosso briefing, os serviços de aborto legal que existem desde 1989 estão hoje sob forte ataque e, lamentavelmente, uma nota técnica do Ministério da Saúde que seria um primeiro passo para conter essas ofensivas teve sua publicação suspensa em fevereiro. Em abril, o contexto se agravou quando o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução que proíbe os médicos de realizar abortos após a 22ª de gestação. No final de maio, o STF julgou a ADPF 1141/24 e emitiu liminar que suspende a Resolução do CFM. Desde fevereiro, contudo, o Ministério da Saúde não adotou nenhuma nova definição sobre a matéria, o que é muito preocupante.
E, em meados de junho, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação simbólica fulminante, a tramitação de urgência do PL 1904/2024, que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação a homicídio. Na prática, o texto criminalizaria o acesso ao aborto previsto em lei. O projeto, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), ficou conhecido como “PL do Estuprador” e provocou um amplo e imediato clamor contrário. Em nossa extensa compilação, apresentamos o cenário e cálculos políticos implicados, bem como as manifestações de repúdio.
Na Itália de Giorgia Meloni foi aprovada uma normativa que autoriza a entrada de ativistas antiaborto em clínicas que oferecem consulta e aconselhamento para mulheres que desejam interromper a gravidez.
Por fim, nos EUA, a cena do direito ao aborto continua tumultuada. Os efeitos dramáticos da derrubada de Roe vs Wade vão se revelando com o passar do tempo: estudo projetou em mais de 64 mil o número de gestações por estupro em 14 estados desde junho de 2022. Em outro capítulo assombroso, a Suprema Corte do Arizona deu permissão, em meados de abril, para restabelecer lei de 1864 que bane o direito ao aborto, com exceção para quando há risco de morte à gestante, e criminaliza os provedores do procedimento. Embora no início de maio o executivo estadual tenha revogado a proibição, o caso é revelador do clima político sobre a questão. Já no Alabama, a Corte Suprema do Estado equiparou embriões fertilizados in vitro a crianças, em decisão que põe o estado na rota da proibição total do aborto, mas também afeta os serviços de reprodução assistida. A decisão é tão problemática que tanto Biden como Trump fizeram críticas.
Feminismos e Gênero
Desde a atabalhoada retirada americana do Afeganistão, em 2021, que teve efeitos dramáticos sobre a vida de mulheres, meninas e das pessoas queer, pouco se tem falado do país, talvez porque, desde então, o número de crises e guerras se multiplicou. Sob esse silêncio, a situação das mulheres e seus direitos atingiu níveis drásticos de deterioração. No final de 2023, o regime do Talibã anunciou que iria restaurar a punição de açoite e apedrejamento para mulheres consideradas adúlteras. Essa intenção devolve o país ao que acontecia antes de 2001, quando se deu a invasão norte-americana justificada, como bem analisou Berenice Bento, não apenas como retaliação pelo ataque às Torres Gêmeas, mas também como “defesa dos direitos das mulheres afegãs”.
Nos últimos seis meses também se registraram, na América Latina, retrocessos e ataques a instituições e medidas voltadas para o combate a violência de gênero. Além da já mencionada demolição da respectiva secretaria na Argentina, em maio, no Equador, o governo Noboa subsumiu o antigo Ministério das Mulheres e dos Direitos Humanos num Ministério de Política Criminal e Direitos Humanos. Sob o efeito de protestos, o governo tenta persuadir o movimento feminista que os conteúdos das políticas de direitos das mulheres não serão alterados.
Por sua vez, no Brasil, ameaças feitas por grupos masculinos misóginos de ultradireita levaram a ativista Maria da Penha, que deu nome à lei de proteção contra violência de gênero, a pedir medidas de proteção especial ao Ministério da Justiça.
Finalmente, na Índia, tão logo se encerraram as eleições, a escritora feminista Arundathi Roy – crítica contundente do regime – foi presa num protesto ecológico em Deli. Ela foi liberada por fiança no dia seguinte, mas continua sob investigação. Esse ato repressivo é uma sinalização: embora tenha perdido apoio no recente processo eleitoral, Modi não vai abandonar facilmente a política do arbítrio. No dia em que a escritora foi presa, o primeiro-ministro estava na Itália, na reunião do G7, abraçando afetuosamente o papa que, convidado por Meloni, foi, em grande medida, a estrela da cúpula.
Vaticano
No começo de abril de 2024, a Santa Sé publicou a declaração Dignitas Infinita, documento que deve ser entendido como a primeira diretriz doutrinal ampla de Francisco I para orientar as autoridades da Igreja, as e os fieis em relação a questões de direitos humanos, gênero, sexualidade e reprodução.
Desde 2013, o Papa Francisco tem sustentado a condenação radical do aborto ao mesmo tempo em faz tergiversações contraditórias em relação à homossexualidade e declarações negativas sobre o “gênero”. Em 2019, seu papado publicou um primeiro documento sobre “gênero” na educação, nomeado Homem e Mulher, Deus os Criou, cujo tom é dialogal, mas cujo conteúdo não difere substantivamente das concepções elaboradas em documentos dos papados anteriores.
A declaração Dignitas Infinita também trata dessas questões, mas não de maneira específica. No novo texto, elas são equiparadas a outras crises que afetam o mundo atual, como a pobreza, a guerra, a migração e tráfico de pessoas e a violência digital. Nesse marco ampliado, o aborto, a teoria de gênero, a mudança de sexo e a gestação de substituição são condenados não apenas como ameaças à família ou a uma certa concepção moral, mas como violações da dignidade humana, concebida num registro epistemológico católico.
O documento é complexo e requer uma exegese cuidadosa e detalhada. Mas em razão de sua relevância no momento político atual, consideramos que seria produtivo oferecer uma leitura preliminar de seu conteúdo, ficando o compromisso de mais adiante compartilhar uma crítica mais elaborada desta nova peça doutrinal.
Desde que Bergoglio foi eleito papa, em 2013, publicamos inúmeros conteúdos sobre as políticas do Vaticano em relação a gênero, sexualidade e direitos humanos. Alguns desses textos oferecem chaves de leitura adicionais para examinar criticamente os argumentos desenvolvidos pela Dignitas Infinita. Por exemplo, a entrevista com Maria José Rosado sobre a eleição do papa Francisco I, uma nota escrita em 2020 por Sonia Corrêa sobre as muitas frentes de operação do Vaticano, e a entrevista com o cientista político Massimo Prearo, publicada em 2021.
Para outros conteúdos sobre o Vaticano, consulte esta compilação.
Recomendamos
Políticas antigênero
Quem tem medo do gênero? – compilação de artigos e entrevistas sobre livro de Butler
O pronatalismo ressurge, por Françoise Girard
Argentina: de la institucionalidad feminista a las políticas de género en emergencia – Volcanicas
“Es un gran retroceso, con consecuencias nefastas para las mujeres” – Página 12
“Los violentos ahora se sienten validados” – Página 12
El cuento de la ideología de género – Alharaca
Direitos LGBTQIA+
Eleições serão decisivas para direitos LGBTQIA+ na Europa, diz ativista – Diadorim
_____________________
Notas de rodapé
[1] Essa impossibilidade de consenso a partir de 2014 não deve ser uma surpresa pois, como se sabe, a Conferência do Cairo está na origem dos ataques ao gênero que irromperam na preparação para Pequim, seis meses mais tarde. Em 2014, já eclodiam na Europa e na América Latina mobilizações populares e discursos políticos contra a “ideologia de gênero” e tudo mais que cabe nessa cesta, os quais nunca arrefeceram, como aliás mostra este boletim. Essas ofensivas se refletiam inevitavelmente em várias arenas na ONU e mais ainda na CPD, que é responsável pelo seguimento do Cairo.