Na última edição especial de 2020, fizemos uma breve avaliação da política do Vaticano e publicamos um artigo do cientista político italiano Massimo Prearo sobre um episódio envolvendo um ato de fala do Papa Francisco sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, que teve, naquele momento, grande impacto midiático. Desde então, em muitas outras ocasiões, o papa manifestou a sua opinião sobre este mesmo tema, mas também sobre o aborto e o “problema do gênero”. No que diz respeito ao gênero, seu discurso mais forte aconteceu em setembro, quando na visita à Eslováquia, em conversa com um grupo de jesuítas, ele disse: “o gênero exerce um fascínio diabólico porque é demasiado abstrato no que diz respeito à vida concreta de uma pessoa”. Um mês mais tarde, na Itália, o Senado fez retroceder a seu estágio inicial a tramitação da chamada Lei Zan contra crimes de ódio e discursos discriminatórios. Estes dois acontecimentos não estavam desconectados.
Olhando a cena de longe, pensamos que poderia ser iluminador examinar, uma vez mais, a posição do Vaticano sobre o gênero assim como seu papel como ator político, analisando o fracasso da Lei Zan. Entre outras razões, porque a Itália é, desde sempre, um contexto privilegiado para observar e entender os jogos políticos papais. Assim, convidamos Prearo para uma entrevista sobre essas dinâmicas e ele, muito generosamente, aceitou o convite.
Nas suas elaborações, sobre a derrota da Lei Zan, ele analisa a política do Vaticano não de maneira isolada, mas sim na sua relação com o campo antigênero mais amplo, onde se movem tanto o que ele chama de movimento neocatólico quanto as correntes feministas críticas do gênero. Agradecemos muito sua contribuição analítica excepcional sobre um episódio cujo significado poderá impactar, de maneira significativa, desdobramentos futuros das ofensivas antigênero na Europa, mas também no resto do mundo.
SPW: O Vaticano sempre teve um papel político, especialmente quando se trata de assuntos relacionados com o gênero, a sexualidade e a procriação. Por razões óbvias, a Itália é um lugar privilegiado para analisar o Vaticano como um ator político. Em outubro de 2021, o Senado italiano fez retroceder a tramitação da Lei Zan contra crimes de ódio ao seu estágio inicial, numa dinâmica política complexa em que tanto os movimentos antigênero como o Vaticano desempenharam papeis cruciais. Examinando criticamente este evento, o que você pode nos dizer sobre a política de gênero do Vaticano ?
Prearo: Eu estudo o Vaticano não como um vaticanista, mas através da lente do movimento antigênero. A partir dessa perspectiva, posso dizer que Francisco I está conseguindo fazer o que talvez se esperasse do papado de Bento XVI, mas que não foi inteiramente alcançado. Meu ponto de partida é o longo curso da elaboração feita pelo Vaticano do conjunto de discursos que deu origem à “ideologia do gênero”, uma “teoria” que inclui e desafia muitos tópicos, num arco que vai dos direitos LGBTTIA+ aos direitos da mulher, daí ao aborto e também envolve a educação.
Como sabemos, nos últimos anos, esta agenda foi deslocada da Igreja para arenas políticas pelo que eu denomino o “neocatolicismo” ou o novo movimento católico. Para o Vaticano, pode ser algo inesperado ver o seu “trabalho teórico” desdobrar-se num campo de batalha política, numa questão política ou num programa político. Hoje em dia, em muitos países do mundo, e eu diria particularmente na Europa, os partidos políticos estão desenhando e implementando programas baseados na luta do Vaticano contra a “ideologia do gênero”.
Olhar essa dinâmica do ponto de vista do debate italiano sobre homofobia e transfobia é útil porque, no centro desse embate, está a própria definição de gênero. Francisco e a hierarquia do Vaticano tiveram um papel importante, mas não impediram sozinhos o processamento da Lei Zan, porque alguém mais fez isso por eles: o novo movimento católico, ou seja, as organizações que, há mais ou menos uma década, surgiram especificamente como “antigênero”, e os seus aliados políticos. Pelo menos na Europa Ocidental, esta é uma situação bastante nova porque abre ao Vaticano a possibilidade de voltar a ser um ator político legítimo, tanto em nível nacional como internacional. Claro que, enquanto Estado, o Vaticano sempre foi um ator político. No entanto, durante o papado de Bento XVI, o discurso religioso da Igreja foi se tornando, de alguma forma, ilegítimo nas arenas políticas. Contudo, ao mesmo tempo, quando pensado a partir do enquadramento da “ideologia do gênero”, o discurso religioso também se transformou permitindo que o Vaticano assumisse um novo papel político. Através de um novo discurso político sobre a família ancorado na luta contra a “ideologia do gênero”, o Vaticano, neste novo contexto histórico e secularizado, pode apoiar o movimento neocatólico, sem se envolver diretamente nos processo políticos, digamos, sem “sujar as suas mãos”.
SPW: Você publicou um livro sobre o movimento neocatólico. Como você define essa nova formação?
Prearo: O motor central do movimento neocatólico é a luta contra a “ideologia do gênero” usada para defender e promover uma ideia “natural” e tradicional da família. Mas isto não é assim tão novo. Então, o que há de novo no novo movimento católico? O que é novo, ao meu ver, é o projeto de reconstrução da ação política católica, um novo agenciamento católico ajustado a um contexto muito diferente, em comparação com o que acontecia nos tempos do Partido Democrata-Cristão. No livro, defino essa mudança como um novo projeto e posicionamento político católico. Não quero sugerir que uma nova religião católica ou uma nova identidade católica tenha surgido. É bem mais uma hipótese “suave” que nos permite observar e compreender melhor as mudanças que estão remodelando este campo e as estratégias dos atores que o habitam. Talvez, esta hipótese funcione apenas no contexto italiano. Seria interessante fazer comparações.
A segunda observação é que, na Itália, como em outros lugares, podemos encontrar, nesse campo, muitos atores que vêm do passado, como os grupos “pró-vida” e outras organizações a eles associadas. Na verdade, desde o início da mobilização antigênero (2012-2013), havia antigos atores católicos envolvidos que queriam fazer algo de novo. A sua ambição era forjar novos instrumentos, novas ações, novas formas de mobilização que se encaixassem melhor num mundo que eles percebem como muito diferente do passado. Para eles, a democracia neoliberal é algo muito novo, pois trouxe à tona novos problemas e questões como os direitos LGBTTIA+. Claro que a homossexualidade sempre foi um problema para o catolicismo, mas os direitos LGBTTIA+ não são apenas uma questão de moralidade, são algo muito diferente, uma pauta que produz mudanças sociais eficazes.
Muitos anos atrás, quando começaram a se organizar contra a lei sobre uniões civis do mesmo sexo, tiveram que descobrir como fazer isso. Muitos atores continuaram a atuar como faziam antes, um modo político, religioso e católico de mobilização. Por exemplo, organizando a Marcha pela Vida, que é uma manifestação católica muito forte e radical. Mas as mobilizações antigênero europeias, em particular o modelo de “La Manif Pour Tous”, ofereceu-lhes uma caminho diferente: reformular o seu discurso político, deixando para trás referências religiosas e adotando argumentos antropológicos, biológicos e filosóficos, de alguma forma, científicos.
Adicionalmente, começaram a colaborar e a intercambiar ideias com os partidos políticos de direita. Os antigos atores católicos sempre trabalharam politicamente, mas não estabeleciam trocas com partidos, de fora para dentro. Eram pessoas de dentro da política, ocupando posições em instituições de alto nível. Mas o movimento antigênero passou a agir como um movimento social contencioso, reivindicando e trocando recursos políticos com partidos de direita.
Através deste trabalho político e institucional, o movimento antigênero se empenhou numa espécie de “mainstreamization” (penetração nas correntes principais da política). Embora se associem a organizações católicas tradicionalistas, o que queriam era tornar-se a corrente dominante no campo político, evitando a marginalidade à que os tradicionalistas são frequentemente relegados, porque se mantêm fora das arenas políticas e sem ligações fortes com os partidos.
O movimento antigênero é também menos problemático para o Vaticano do que as correntes tradicionalistas que, na Itália, são os ultracatólicos que querem regressar à missa rezada em latim. Estas duas correntes colaboram, claro, especialmente quando se trata de tomar as ruas, mas não têm a mesma posição em relação ao Vaticano. Enquanto os tradicionalistas contestam o Vaticano e Francisco em muitas áreas, o movimento antigênero não confronta oficialmente o Vaticano. Eles dizem, eventualmente, que Francisco é demasiado moderado, porque parece estar aberto a flexibilizar posições doutrinárias, o que para eles é muito problemático. Mas, oficialmente, nunca se confrontam com Francisco e, ao final do dia, dizem: “O Papa Francisco é a nossa referência porque somos católicos e respeitamos o Papa. Mas fazemos um tipo diferente de trabalho, que é político”.
SPW: Como Francisco gere politicamente esta diferença? Os ultracatólicos rígidos e contestadores do papado, por um lado, e as forças antigênero mais flexíveis, por outro?
Prearo: Há várias coisas a dizer sobre isso. A primeira é que, na Itália, diferentemente de outros lugares, os setores tradicionalistas são bastante marginais, estão presentes, mas periféricos. Os ativistas neocatólicos em geral são também, frequentemente, muito críticos em relação ao Vaticano e a Francisco, mas os líderes do movimento fazem o seu melhor para não serem ofensivos em relação ao Vaticano, mesmo quando a sua base ativista é muito mais agressiva. Assim, a sua política varia consoante o ponto de vista: mais crítica na base ou mais respeitosa, se tomarmos o ponto de vista dos líderes.
A segunda é que para o Vaticano um problema surge quando estes movimentos se tornam “demasiado” contestatórios. Por exemplo, quando o Congresso Mundial das Famílias foi realizado, em Verona, em 2019, isto tornou-se um problema para o Vaticano porque o evento contava com a presença de demasiados atores tradicionalistas. O Vaticano expressou claramente que não apoiava estas correntes, ou estes “métodos”, como o Secretário de Estado do Vaticano, Parolin, declarou na ocasião.
Por outro lado, os movimentos neocatólicos têm sido muito bem sucedidos no seu envolvimento com a arena política. O Vaticano os apoia porque estão a fazer o que o Vaticano sempre sonhou fazer, sem que a hierarquia tenha que se envolver diretamente. Isto é muito diferente dos anos 2000, quando na Itália começamos a discutir (seriamente) o projeto de lei da união civil. Nessa altura, a reação veio dos bispos, da Conferência Episcopal Italiana e de muitas outras instituições do Vaticano. Todos os dias, na imprensa, declaravam que a lei era perigosa para a Itália, para a família, para a Igreja, para todos.
Nos últimos dois anos, no entanto, enquanto a Lei Zan estava sendo debatida, não vimos muitas declarações dos bispos. Isto foi assim porque o trabalho político estava sendo feito pelos movimentos, pelos leigos e não pelos clérigos. Mesmo assim, dias antes da votação da lei no Senado, a Congregação para a Doutrina da Fé divulgou uma nota deixando claro que o Papa Francisco I é contra a “ideologia do gênero”. Este é um episódio muito interessante para analisar a forma como isto funciona: embora a nota tenha sido escrita pelo Vaticano, não foi uma iniciativa do Vaticano. Em julho, uma organização neocatólica, ProVita & Famiglia, pediu ao Vaticano que emitisse um parecer sobre a seção específica da lei que aborda a identidade de gênero, o Vaticano respondeu positivamente e tornou pública a nota dois dias antes da votação no Senado. Isto não foi acidental.
Deixe-me explicar: ao examinar os processos políticos, costumamos olhar para a instrumentalização de cima para baixo: dos partidos ao movimento, do Vaticano aos leigos e assim por diante. O que tentei explicar no meu livro é que, se invertermos o ponto de observação e olharmos para a instrumentalização de baixo para cima, vemos de forma diferente e podemos compreender melhor os processos. Meu ponto é este: o que acontece hoje em dia com o uso político da religião. Durante o ano passado, vimos o movimento neocatólico instrumentalizar o Vaticano e não o contrário. O Vaticano está contente com o movimento porque ele faz este trabalho político, e o movimento está feliz por saber que o Vaticano está sempre aí e pode ser chamado quando se necessita que um poder superior intervenha no processo político, como aconteceu com esta nota de última hora.
Isto nos ajuda a compreender por que o Vaticano respeita tanto o movimento neocatólico. As organizações e movimentos tradicionalistas estão, de alguma forma, fora do campo da Igreja. Em contraste, o próprio núcleo do movimento antigênero dominante está dentro do perímetro da Igreja, especialmente considerando que a maioria dos seus líderes faz parte de um movimento eclesial oficial: a Via Neocatecumenal. Quando falam com os bispos ou outras instituições do Vaticano, fazem-no através deste canal interno. Francisco não pode dizer que não vai lidar com eles e elas porque, na verdade, “são a Igreja”.
SPW: Você pode falar um pouco mais sobre sobre a lei e a sua tramitação? Por que e como é que a sua aprovação foi “bloqueada”?
Prearo: A Lei Zan tem como objetivo a criminalização dos crimes e discursos de ódio relacionados com sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero, mas também deficiência. Antes de ser apresentada, várias outras propostas foram discutidas pelo Parlamento, mas nunca chegaram a uma fase final. O processamento começou muito bem na Câmara Baixa, porque estabeleceu-se um compromisso no bloco de centro-esquerda e entre a centro-esquerda e alguns elementos da centro-direita, e a lei foi aprovada. Mas tinha que passar pelo Senado.
Durante o debate na Câmara Baixa, contudo, surgiu uma questão inesperada: o conceito de identidade de gênero foi contestado. Para mim, foi surpreendente como isso se deu. O “problema da identidade de gênero” tinha evidentemente sido assinalado pelo movimento conservador religioso antigênero, que também levantou outros problemas em relação à lei (nomeadamente a liberdade de expressão e de religião). Mas, realmente, não esperávamos que correntes dos movimentos feministas italianos também interrogassem os conceitos de gênero e identidade de gênero. Mas, nos debates parlamentares, as feministas críticas ao gênero argumentaram que “gênero” negaria a diferença sexual e “apagaria as mulheres”.
Embora isso tenha sido levantado nos debates da Câmara de Deputados, não prejudicou a aprovação da lei. Podemos, talvez, levantar a hipótese de que a lei foi aprovada simplesmente porque os parlamentares achavam que não sobreviveria ao passar para o Senado. Muitos/as deles/as podem ter pensado que o Senado nem mesmo começaria a debater a lei. Mas isso não aconteceu. Ao final dessa segunda fase, no entanto, como se sabe, o projeto de lei foi remetido de volta pelos senadores para uma revisão substancial na Câmara Baixa. Isto significa que muito tempo vai passar antes que um novo texto amadureça para ser novamente discutido e, eventualmente, aprovado. Claramente, uma estratégia de procrastinação.
SPW: O que aconteceu exatamente durante os debates no Senado?
Prearo: Durante o debate no Senado, a identidade de gênero tornou-se o principal problema político, debatido não só no Parlamento, mas na Itália em geral, em particular devido à sua ligação com a educação. Um aspecto chave do debate nesta nova fase é que as posições levantadas pelas feministas da diferença sexual – tal como as feministas críticas do gênero se definem a si próprias na Itália – são vistas, naturalmente, como um ponto de vista de esquerda e não como um ponto de vista conservador. Mesmo quando estas correntes feministas não pertencem ao mesmo campo político que o movimento antigênero mais amplo, acabaram por utilizar a mesma linguagem “antigênero”. Eu não diria que pertencem exatamente à mesma ecologia, mas partilham a mesma episteme crítica de gênero, por assim dizer.
Esta é, a meu ver, uma das principais vitórias da mobilização antigênero, originalmente deflagrada pelo Vaticano mais de duas décadas atrás: ela reformulou os termos do debate. Hoje em dia, as feministas críticas de gênero não criticam o conceito de identidade de gênero apenas porque “apaga as mulheres”. Elas circulam os mesmos tropos utilizados pelo Vaticano, embora não se situem no mesmo campo ideológico político. Isto também acontece com todos os partidos políticos que se posicionaram contra ou a favor da lei. À certa altura, todos eles estavam envolvidos com o problema da “teoria do gênero”. O debate público foi decididamente “contaminado” e remodelado pelas mobilizações antigênero sustentadas desde o início dos anos 2010.
SPW: Como se comportou o Vaticano ao longo deste processo?
Prearo: É preciso dizer que a nota de última hora emitida pela Congregação para a Doutrina da Fé não influenciou muito o debate no Senado porque chegou muito tarde. Mas o Vaticano tinha, de fato, intervindo no processo mais cedo. Isto aconteceu uns meses antes num momento muito crítico, quando a Comissão de Justiça do Senado começou a examinar o projeto de lei e foram realizadas audições públicas para permitir que peritos e organizações da sociedade civil expressassem os seus pontos de vista. Foi aí que o Vaticano expressou a sua preocupação com a Lei Zan.
Antes de examinar esta intervenção do Vaticano, vale a pena mencionar que um dos senadores da Comissão de Justiça, filiado à Lega, é também um dos fundadores do movimento antigênero. Ele fez um acordo com outros senadores e juntos propuseram uma lista de quase 150 nomes a serem ouvidos que pertencem a instituições religiosas católicas ou fazem parte do movimento “pró-vida” e antigênero. Várias feministas críticas de gênero também participaram nas consultas. Contudo, apenas 15 ou 20 pessoas que apoiavam o conteúdo da lei participaram dos debates. Foi muito desequilibrado e, do ponto de vista do movimento antigênero, uma clara demonstração de força.
A preocupação que o Vaticano levantou, nessa altura, foi a de que a aprovação da Lei Zan infringia, potencialmente, o Acordo Itália-Vaticano, conhecido como o Acordo Lateranense, assinado em 1929 entre o Vaticano e o regime fascista de Mussolini. Os apoiadores do Vaticano, no Senado, também argumentaram que a Lei Zan violaria a própria Constituição, porque o acordo está consagrado no texto constitucional. Isto teve um forte impacto no debate, pois deu àqueles que eram contra a lei um argumento sólido a brandir.
SPW: O Vaticano explicitou qual conteúdo específico do Acordo de Latrão seria infringido?
Prearo: Fundamentalmente, o lugar e o papel do catolicismo na Itália, que é garantido pelo acordo, bem como a liberdade de religião. Dito de outro modo, a criminalização do discurso do ódio violaria potencialmente o direito da Igreja Católica de expressar a sua opinião sobre orientação sexual e identidade de gênero. Esta intervenção teve um grande peso. Mas, para compreender plenamente por que a lei foi devolvida às gavetas, por assim dizer, é importante voltar à questão da educação.
A primeira parte do projeto de lei abordava os crimes de ódio e a segunda instituía o 17 de Maio como o Dia Nacional contra a Homofobia e a Transfobia. A questão levantada tanto pelo movimento conservador antigênero quanto pelas feministas críticas ao gênero é que essa comemoração poderia significar a imposição da “ideologia do gênero” ou “teoria do gênero” às crianças. Este foi um forte ponto de convergência entre estas duas correntes.
Finalmente, é importante mencionar que, quando o Senado decidiu enviar a lei de volta à primeira fase, todos os senadores que eram contra a lei celebraram a vitória. Foi um escândalo assistir à esta demonstração de alegria porque uma lei contra a violência e a discriminação tinha sido bloqueada. As pessoas LGBTTIA+ estão indignadas.
SPW: Podemos ler a derrota da Lei Zan como um sintoma de que Francisco mudou a sua estratégia em relação à “ideologia do gênero”? Ele começou o seu papado falando raramente sobre o tema. As menções eram fortes, mas esparsas. Depois, em 2019, foi lançado o documento sobre gênero e educação que reitera substancialmente a doutrina do Léxico de 2003, mas foi escrito num tom de diálogo, não num estilo bélico. Parece, contudo, que estamos agora de volta a uma era de batalhas ferozes. Podemos pensar que a derrota da Lei Zan deve ser lida como um ponto de virada a esse respeito?
Prearo: Sim, por um lado, concordo plenamente. Por outro lado, no entanto, sabemos que é sempre muito difícil interpretar o que o Vaticano diz e faz. Isto é sempre um problema! Mas avaliando o processo do ano passado, ou melhor ainda o que houve nos últimos anos, tanto na Itália como em nível global, temos fortes sinais de que, de fato, isso pode ser assim. Não é propriamente trivial que o Vaticano tenha recorrido a um acordo assinado com o regime fascista para desmascarar uma lei sobre crimes de ódio devido ao conteúdo relativo à identidade de gênero. Ou então assistir à Congregação para a Doutrina da Fé responder substantiva e rapidamente ao pedido de uma organização antigênero para que ela emitisse uma opinião. A Congregação não só respondeu positivamente como agradeceu à organização pelo trabalho que realizam “defendendo a vida e a família”.
Isto é muito revelador de sintomas que começamos a observar em 2013-2015. Desde então, estudamos, sistematicamente, estas dinâmicas tentando compreender e mostrar que a Igreja tinha uma posição clara sobre o gênero. É evidente que esta posição não mudou, mesmo que agora se manifeste de forma diferente no campo político. Talvez tenha, de fato, se tornado mais radical.
Quero terminar comentando uma cena que aconteceu nos primeiros momentos da pandemia: a imagem do papa sozinho na Cidade do Vaticano. Imagino que a maioria das e dos leitores a tenha visto. Na cena em questão era como se Francisco estivesse muito solitário e sombrio rodeado pelo apocalipse, mas ainda assim cumprindo seu dever pastoral. Era uma imagem fotograficamente bonita, mas também muito sugestiva, do ponto de vista político.
Tenho pensado muito nesta imagem e no poder que ela projetou de Francisco como uma figura forte. No início do seu papado, não sabíamos exatamente quem ele era, ou o que iria fazer. Àquela altura era um pouco como se ele fosse uma alma procurado a si própria como papa. Mas depois dessa imagem do ano passado, que se espalhou pelo mundo afora através de todos os canais possíveis, Francisco surge como um papa muito forte, com poder para defender a Igreja neste momento particularmente conturbado do mundo, inclusive contra o “gênero” e demais questões relacionadas com o gênero, especialmente a identidade de gênero e os direitos LGBTTIA+.
Massimo Prearo é cientista político, membro e coordenador científico do centro de pesquisas PoliTeSse – Política e Teorias da Sexualidade da Universidade de Verona (Itália). Ele tem publicações na área de estudos dos movimentos LGBTQI+, como Le moment politique de l’homosexualité. Mouvements, identités et communautés en France (PUL, 2014) e La fabbrica dell’orgoglio. Una genealogia dei movimenti LGBT (Edizioni ETS, 2015). Com Sara Garbagnoli, ele foi co-autor do livro La croisade anti-genre. Du Vatican aux manifs pour tous (Textuel, 2017, também disponível em italiano em Kaplan, 2018).
Imagem: La Parole des Autres, Leon Ferrari, acessada em https://dantebea.com/2021/01/16/leon-ferrari/