No começo de outubro de 2020, o papa Francisco I publicou uma nova encíclica. Nomeada Fratelli Tutti (todos irmãos em português) e a nova carta papal foi amplamente aclamada por vozes situadas nos mais diversos pontos do espectro politico, assim como pela grande imprensa. Dois meses mais tarde, no começo de dezembro, foi anunciada a criação do Conselho para o Capitalismo Inclusivo com o Vaticano, uma plataforma que reúne um grupo significativo e bastante plural de corporações e algumas instituições filantrópicas como as Fundações Ford e Rockfeller (compilação de notícias em inglês).
Esses dois fatos que certamente merecem uma análise muito mais aprofundada, são apenas mencionados aqui para ilustrar a hiperatividade do Vaticano nos últimos meses num momento bastante singular.[1] Uma análise do El País, publicada no final de novembro, informa que Francisco, após ter criado 73 novos cardeais, finalmente detém o controle do colégio cardinalício que elegerá seu sucessor. Além disso, tanto a Encíclica quanto o novo Conselho para o Capitalismo Inclusivo devem ser situados em relação aos resultados eleitorais americanos que deram a vitória ao primeiro presidente católico dos EUA desde John Kennedy.
Mas isso não é tudo. Entre um fato e outro, no dia 21 de outubro, irrompeu a notícia de que o papa teria feito uma declaração a favor da união civil entre pessoas do mesmo sexo no documentário Francesco, do diretor russo Evgeny Afineevsky, exibido no Festival de Roma. A notícia, como previsto, também teve ampla difusão e efusiva recepção nos meios de comunicação e no campo dos ativismos LGBTTI e também feminista. Treze dias mais tarde, contudo, o Vaticano jogou um balde água fria nesse vasto entusiasmo. O Vaticano informou oficialmente que a declaração registrada no documentário havia sido citada “fora de contexto” e que não deveria ser lida como uma inflexão doutrinária.
A essa altura, vários veículos de imprensa já haviam revelado que o trecho do filme em que o papa se refere à união civil entre pessoas do mesmo sexo havia sido editado usando respostas a perguntas distintas feitas ao pontífice em momentos diferentes. Mais especialmente, soube-se que em seguida ao comentário de Francisco de que “precisamos criar uma lei de união civil” havia outra frase — “falar em casamento entre pessoas do mesmo sexo é algo incongruente” — que foi suprimida da edição final. A explicação corretiva do Vaticano sugere que o diretor extrapolou os parâmetros estabelecidos para o documentário pela Secretaria de Comunicação da Santa Sé. Mas, aquela altura, tanto a publicidade do documentário quanto mais uma onda de popularidade do papa já estavam devidamente asseguradas. E, de fato, autoridades eclesiais começariam a reproduzir o contestado discurso papal, como foi o caso do Cardeal Carlos Aguiar, arcebispo da Cidade do México.
Comentado o episódio, o cientista político Massimo Prearo, publicou no Facebook uma nota que foi posteriormente transformada em artigo para o SPW. Nesse texto, Prearo analisa a fala papal a luz da política sexual italiana, lembrando que essa não é a primeira vez que as entrevistas papais surpreendem e tem efeitos insólitos. Segundo ele, o que se assistiu em outubro foi mais um capítulo de uma corrida ofegante para situar a igreja num mundo cada vez secularizado. Sobretudo, Prearo sublinha que os sorrisos de Francisco para jornalistas e ativistas devem ser sempre situados no contexto político mais amplo no qual o movimento neocatólico – amplamente engajado em cruzadas de oposição ao direito ao aborto e ao gênero – transita, sem maiores constrangimentos, em arenas político institucionais.
Outro evento que aconteceu alguns dias depois que a opinião do papa sobre união civil entre pessoas do mesmo (agora duvidosa) se tornou viral, talvez ilustre bem o que Prearo quer dizer com isso. Em 24 de outubro, a Missão de Observação Permanente da Santa Sé – em parceria com o Instituto Lumens Christi, a revista jesuítica América Media e o Instituto Kellog de Estudos de Relações Internacionais – realizou um webinário público para debater perspectivas católicas sobre os 75 anos do Sistema ONU.
O evento contou com a participação do chefe da Missão do Vaticano na ONU, o arcebispo e embaixador Gabriele Caccia, mas também da professora de Harvard Mary Anne Glendon. Glendon foi porta voz do Vaticano na Conferência Mundial das Mulheres (Pequim, 1995) e, mais tarde embaixadora do governo George Bush na Santa Sé. Na ocasião do webinário, coordenava a Comissão dos Direitos Inalienáveis (CDI), estabelecida pelo governo Trump no Departamento de Estado. Segundo Kurt Mills, em artigo publicado na Open Democracy, o relatório que a Comissão produziu e que foi lançado em julho de 2020:
…oferece uma justificativa histórica (ou talvez a-histórica) e teórica para priorizar um conjunto reduzido de direitos humanos compatíveis com uma agenda religiosa e econômica conservadora. Embora muitos dos que são considerados como “novos” por essa agenda – incluindo os direitos LGBT – não sejam explicitamente mencionados como passíveis de rebaixamento para um status de direitos alienáveis (e dada a proeminência da agenda dos direitos LGBT, é bastante curioso que isso não seja mencionado nem uma vez), a mensagem do texto é clara: existem alguns direitos básicos “inalienáveis” que são centrais para o ideal americano – liberdade religiosa, direitos de propriedade e direitos relacionados à participação democrática.
No debate, Glendon não falou desse ambicioso projeto da direita religiosa e secular norte americana no sentido de reconfigurar substantivamente os direitos humanos tal qual os conhecemos. Mas enfatizou que, desde a adoção da Declaração Universal, em 1948, a Igreja tem tido apreço mas também expressado muitas reservas quanto ao papel e agenda das Nações Unidas. Para exemplificar citou a expressiva observação feita por João Paulo II, em 1989 de que a Declaração carece das bases antropológicas e morais necessárias para sustentar os direitos humanos que nomeia. O arcebispo Caccia, não fez por menos. A uma certa altura do debate disse que uma de suas expectativas é que as “Nações Unidas sejam cada vez mais católicas”. Em seguida a essa provocativa afirmação, fez uma pausa sorridente e acrescentou: “ou seja, verdadeiramente universal” .
Quando situada em relação a essa conversação, o novo ato de fala papal sobre união entre pessoas do mesmo sexo pode ser lido como uma isca colorida que atraiu a atenção do grande publico, enquanto o Vaticano se movia de maneira muito intensa em esferas institucionais de alto nível. Entre outros eventos esse seminário no qual se debateu o destino da ONU e dos direitos humanos com uma das lideranças mais proeminentes do que Prearo denomina movimento neocatólico. Isso sugere que se 2021 sinaliza para desdobramentos ou deslocamentos imprevisíveis da geopolítica sexual do Vaticano. Só o tempo dirá.
Diante desse horizonte incerto pensamos que é produtivo revisitar, ainda que de maneira breve, os gestos e discursos de Francisco que, desde 2013, aludiram a homossexualidade, direitos LGBTTI, matrimônio igualitário e temas correlatos, pois eles foram sempre, ambíguos quando não decididamente enigmáticos. Acesse aqui o está arquivado em nossa biblioteca.
Por Sonia Corrêa para o boletim SPW de novembro de 2020