O cenário global da pandemia da COVID-19 continua mudando, mas a crise ainda está longe do fim. Poucos países estariam livres do vírus: Islândia, Jordânia, Nova Zelândia, Coreia do Sul, Taiwan, Uruguai e Vietnã. E as curvas de contágio parecem estar em declínio nos países europeus mais drasticamente afetados. Mas, enquanto isso, o epicentro da crise se deslocou para as Américas, onde está situada boa parte dos 20 países mais afetados. Os Estados Unidos e o Brasil são os piores cenários, mas as infecções continuam subindo na Argentina, Colômbia, México, Peru, Venezuela e Nicarágua, segundo monitoramento do dia 10 de julho. As taxas de contágio também têm crescido na Índia, Indonésia e Arábia Saudita, assim como na África do Sul.
Além disso, a vulnerabilidade diferencial de pessoas e grupos quanto à exposição e letalidade da COVID-19 tornou-se cada vez mais evidente, conforme demonstrado pelo maior número de infecções tanto entre pessoas negras e latinos negros nas Américas quanto entre os moradores de favelas em outras regiões. O padrão diferencial da epidemia também atinge especialmente as populações indígenas como, por exemplo, na região Amazônica e na reserva Navajo, no sudoeste dos Estados Unidos, e constitui uma tendência grave e preocupante. A situação remete à memória da exposição contínua de povos ameríndios às doenças letais ao longo da história colonial e pós-colonial.
Cabe destacar que as taxas de infecção sofreram uma retomada nos EUA, Irã, Austrália e no Reino Unido, além de outros localidades específicas da Europa. Isso indica que, na ausência de uma vacina, a doença vai continuar a eclodir periodicamente. E, mesmo quando se registre uma escala e ritmo sem precedentes no campo das pesquisas por uma vacina contra a COVID-19 (leia em inglês), a Organização Mundial da Saúde (OMS) enfatizou que ela não estará disponível antes de 12 a até 18 meses – período este, inclusive, considerado muito otimista por um grupo de especialistas reunidos pelo New York Times para discutir o assunto.
Isso significa que o estado de anormalidade criado pela COVID-19 não vai desaparecer facilmente e que o impacto do novo coronavírus continuará interseccionando as política de gênero e sexualidade. Dando sequência à primeira edição especial do SPW sobre a Política sexual em tempos de pandemia, essas interseções serão exploradas ao longo desta edição através de perspectivas econômica, política e biopolítica, tratadas não como domínios encapsulados ou isolados, mas sim como lados de um prisma de análise, que contribui para examinar os sentidos e efeitos da pandemia em sinergia. Este número do boletim também oferece informações sobre como as forças antigênero e antiaborto estão se comportando no contexto da COVID-19 e, não menos importante, oferece informações sobre os desdobramentos positivos em relação à sexualidade e direito ao aborto que, surpreendentemente, também foram registrados a despeito dos espectros sombrios da epidemia.
#Autores convidados – Antes de continuar, gostaríamos de convidá-l@s à leitura dos artigos escritos por Debjyoti Gosh, Lorena Moraes, Bárbara Sepúlveda e Lieta Vivaldi Macho, que analisam episódios emblemáticos ocorridos no cenário da pandemia da COVID-19. Também recomendamos as reflexões de David Paternotte sobre os limites da perspectiva do conceito “backlash” nas análises críticas das políticas antigênero. Agradecemos ess@s autor@s por suas generosas contribuições.
COVID-19 e economia – poucos feixes de luz e muitas sombras
Um prognóstico da OCDE prevê que na maioria das 47 maiores economia mundiais a queda do PIB será maior que 8% neste ano. Por outro lado, programas emergenciais de transferência de renda foram inesperadamente adotados por muitos países, tanto ao Sul quanto ao Norte do Equador, mesmo diante de franca resistência de cidadãos ou mesmo de autoridades políticas. Ainda mais positivo, debates sobre a renda universal básica foram retomados em nível nacional e internacional e podem trilhar caminhos produtivos no futuro. Nesta mesma chave, debates sobre a necessidade urgente de se garantir acesso universal à saúde também ganharam destaque.
Em maio, a Comissão Europeia propôs um pacote de recuperação pós-pandemia de 750 bilhões de euros, enquanto a Alemanha e a França lançaram um fundo conjunto de reconstrução de 500 bilhões de euros; propostas que investem na redistribuição e na economia verde. No início de julho, 80 indivíduos entre os mais ricos do mundo fizeram uma declaração pública pedindo por maiores impostos sobre grandes fortunas como uma saída para a crise. No que diz respeito às respostas biomédicas, a Costa Rica propôs, no âmbito da Organização Mundial da Saúde, uma iniciativa conjunta de patentes chamada “C-Pat” com o objetivo de coordenar pesquisas e socializar descobertas voltadas à criação de uma vacina para o SARS-CoV-2. Medidas similares também foram propostas no Parlamento Europeu. Essas tendências parecem confirmar as previsões de alguns poucos observadores otimistas sobre os efeitos potencialmente positivos da crise da COVID-19 nos debates sobre políticas sociais e econômicas.
Contudo, antes que tais proposições transformadoras tornem-se realidade, as distorções e voracidade do capitalismo tardio seguiram seu curso habitual. Em variados contextos, a crise do novo coronavírus tem servido como cortina de fumaça para ocultar padrões clássicos de exploração laboral e destruição ambiental. No Equador, por exemplo, um grande derramamento de petróleo – que coincidiu com o aumento exponencial do número de mortos da pandemia em Guayaquil – não teve a devida atenção midiática que em outros momentos teria tido, assim como também não tiveram atenção as dificuldades adicionais em relação à prevenção e ao tratamento de populações indígenas afetadas pela COVID-19 por conta do desastre.
Casos deploráveis de sobrepreço e corrupção foram registrados em relação à venda e compra de equipamento médico contra a COVID-19, assim foi alvo de reportagens como corporações estão vendo a crise como uma mera oportunidade para vender produtos e comprar ativos baratos (confira nossa compilação). Não menos chocante, a corrida desesperada por uma vacina – motivada pela busca de lucros exorbitantes e pela obsessão em reabrir economias nacionais – está tendo desdobramentos muito problemáticos. Um deles foi o caso da vacina da Moderna, companhia norte-americana cujas ações subiram vertiginosamente de valor quando foram anunciando dados positivos, mas não verificáveis, sobre o desenvolvimento de seu produto potencial. Poucas semanas depois, o Conselho Indiano de Pesquisa Médica reduziu os protocolos bioéticos para pesquisas clínicas com humanos a padrões mínimos de modo a acelerar os testes de vacina produzida no país. Mesmo quando a decisão tenha provocado críticas imediatas de pesquisadores, esse mesmo modelo minimalista poderá ser adotado por outros programas que estão desenvolvendo vacinas contra a COVID-19, potencialmente expondo milhares de pessoas (cujas vulnerabilidades são ampliadas por marcadores sociais de casta, raça, etnia, gênero e sexualidade) a riscos e coerção.
Enquanto isso, o número de artigos de imprensa e análises acadêmicas se mutiplicou no que diz respeito aos efeitos econômicos do novo coronavírus em termos de aumento das desigualdades e redução da qualidade de vida em regiões vulneráveis, nos países mais pobres e entre grupos sociais vivendo em estado de alta precariedade. A situação de imigrantes (em especial, os trabalhadores imigrantes sem documentação) é bastante dramática em termos de sobrevivência econômica, exposição ao vírus e falta de acesso aos serviços de saúde. Igualmente, enquanto setores inteiros da economia não estão sobrevindo ao lockdown e à quarentena, no vasto universo de empresas de call center, plataformas digitais de venda e comércio e serviços de delivery, as operações estão a todo vapor ou mesmo se expandiram durante a crise. Nestes setores, os empregos não foram perdidos, mas o trabalho sem proteção adequada – do qual as mulheres representam ampla porcentagem – e em jornada excessiva, está super expondo as e os trabalhador@s aos riscos da COVID-19. No LatFem (leia em espanhol), a pesquisadora feminista argentina Flora Partenio, examina o cenário latino-americano e discorre sobre como trabalhadores de plataformas digitais estão se mobilizando politicamente apesar das enormes restrições.
Por fim, os efeitos econômicos da pandemia sobre a vida das prostitutas não cederam. Desde abril, novos artigos foram publicados em relação às dificuldades econômicas vividas pelas pessoas trabalhando na indústria do sexo comercial no Brasil, Porto Rico, Tailândia e EUA. Avaliando o cenário como muito grave e urgente, a Aliança Global contra o Tráfico de Mulheres (GAATW) fez um apelo a instituições e ativistas para que abandonem o mantra que associa o tráfico sexual à “escravidão moderna” e se engajem na luta por mudanças estruturais nas economias. A Rede Global de Projetos de Trabalhadoras Sexuais (NSWP) e a UNAIDS também emitiram um chamado para que governos garantam o acesso de trabalhadoras sexuais aos programas nacionais de proteção social, prevenindo que sejam excluídas das medidas emergenciais de proteção a trabalhadores, especialmente nos países onde o trabalho sexual é criminalizado. Entretanto, uma coleção de notícias jornalísticas (leia em inglês) mostra que enormes barreiras vinculadas ao estigma moral e às exigências burocráticas injustificáveis têm impedido trabalhadoras sexuais de acessar o auxílio emergencial contra a COVID-19 no Canadá, França, Tailândia e Japão. Em contraste, o jornal britânico The Guardian noticiou, no final de abril, que na Nova Zelândia, um dos poucos países que derrotaram a COVID-19 – e onde o trabalho sexual é plenamente descriminalizado – prostitutas puderam acessar facilmente as medidas de proteção social emergencial.
COVID-19 – desdemocratização e contestação
Na Edição Especial que cobriu março e abril, a seção sobre política analisou brevemente como a pandemia estava espalhando uma semântica de “guerra” e oferecendo justificativas para que os Estados adotassem antigas e novas formas de vigilância e violência política. Desde então, como bem informa nossa nova compilação, o problema permanece e, em alguns casos, parece ter se amplificado (veja nossas compilações em inglês e português).
Começando pela China (onde as taxas de infecção parecem estar sob controle no momento) as pesquisadoras feministas Cai Yiping e Ai Yu analisaram de maneira perspicaz como a COVID-19 contribuiu para o emprego de novas e muito sofisticadas formas de vigilância digital estatal, levando a padrões ainda mais elevados de coerção e repressão. Esse ambiente nacional repressivo não pode ser desvinculado da dinâmica geopolítica global e regional da China. Também na Ásia, um grande número de críticos, incluindo a feminista Aruna Roy, vem denunciando como, na Índia, a pandemia tem implicado na crescente redução dos espaços democráticos. Manifestações e atos autoritárias no âmbito da resposta à COVID-19 também foram registrados em outros países asiáticos, especialmente Mianmar e Filipinas, mas também no Vietnã, onde a censura estatal compromete, de maneira grosseira, os impactos positivos de saúde pública das políticas de enfrentamento à pandemia no país.
Padrões semelhantes de coerção e arbítrio também se tornaram flagrantes no Burundi, Quênia, Uganda e Zimbábue, à medida que a COVID-19 se espalhou pela África Subsaariana. Na África do Sul – o país mais atingido da região – as condições democráticas foram preservadas e uma política de saúde pública não-coercitiva foi adotada. No entanto, episódios lamentáveis de despejo e violência policial extrema contra trabalhadores e imigrantes também se multiplicaram. No Norte da África e no Oriente Médio, a intensificação do estado de coerção e controle político também persiste. Na Argélia, por exemplo, o controle estatal da COVID-19 paralisou a insurgência em curso desde o início de 2019.
Na América Latina, as tendências desdemocratizantes turbinadas pelas respostas do Estados nacionais contra a COVID-19 tiveram continuidade na América Central (com exceção da Costa Rica) e também na Bolívia e Venezuela. Essas tendências autoritárias também podem ser rastreadas nas medidas adotadas por autoridades locais em muitos outros países. Os mesmos padrões são detectáveis no Leste Europeu – Hungria e Polônia especialmente – e Rússia e Turquia. Nessas regiões, líderes populistas autoritários ou atores estatais estão muitas vezes se valendo da pandemia para intensificar o controle sobre a sociedade ou simplesmente como desculpa para exercer a violência. Contudo, um comentário instigante sobre como o estado bósnio reagiu à COVID-19 sugere que também há circunstâncias nas quais os Estados respondem à pandemia usando a polícia como forma de mostrar que estão fazendo alguma coisa, e fazem isso simplesmente porque de fato não tem a “capacidade efetiva para cuidar dos/as seus/suas cidadãos/ãs”.
COVID-19 – contestando as respostas estatais
Se, por um lado, a arbitrariedade e o maior controle estatal tem persistido, por outro, desde abril, protestos contra as políticas de isolamento da pandemia também ganharam cada vez maior visibilidade, particularmente depois de irromperem nos EUA. Uma lista bastante incompleta publicada na Wikipedia mostra que, de fato, desde os primeiros dias da pandemia movimentos de insurgência aconteceram em todos os continentes. Em diversos países, a começar pela China, pesquisadores e profissionais de saúde contestaram a censura estatal em relação a dados da COVID-19 e/ou exigiram equipamentos de proteção e melhores condições de trabalho, como pode ser ilustrado pela greve de mulheres profissionais da saúde na Índia. No Sul Global, essas mobilizações tem envolvido, principalmente, trabalhadores, imigrantes e pessoas pobres protestando contra os efeitos econômicos e espaciais impostos pelos lockdowns e, em alguns casos, contra formas severas de coerção estatal e violência.
Em contraste, na Europa e nas Américas, o que eclodiu mais tarde foi muito diferente: um clamor contra o uso de máscaras, quarentenas, lockdowns e as “economias fechadas”. Em Berlim, no dia 16 de maio, manifestantes de extrema-direita e da esquerda radical protestaram conjuntamente contra a falta de liberdade e o “estado de exceção”. No mesmo dia, na Espanha, o partido de extrema-direita Vox foi às ruas usando linguagem parecida para protestar contra as políticas de combate à COVID-19 implementadas pelo governo socialista. No mesmo período, grupos anti-lockdown também se manifestaram no Reino Unido.
Nos Estados Unidos e no Brasil, as ruas foram tomadas por pessoas que apoiam o negacionismo de Trump e Bolsonaro em relação à COVID-19, a abordagem neo-darwinista social que adotaram para responder à pandemia e sua obsessão no sentido de rapidamente “abrir as economias”. Mobilizações semelhantes ocorreram, com menos impacto, no Canadá, México, Chile e Argentina. O cenário brasileiro revelou-se como o mais grotesco e politicamente arriscado, pois esse protestos se deram num clima de golpismo politico. Bolsonaro não somente incentivou manifestações perigosamente associadas com os ataques ao Congresso e à Suprema Corte, que clamavam escancaradamente por intervenção militar, como também chegou a participar de algumas delas.
Essas ondas de protestos em “nome da liberdade” e contra “a coerção e repressão estatais” são muito relevantes do ponto de vista das políticas do gênero e da sexualidade. Em quase todos os casos, forças antiaborto e antigênero fizeram parte desses protestos, quando não foram sua principal liderança. Além disso, as razões declaradas desses manifestantes se sobrepõem de maneira complexa e paradoxal às nossas críticas acerca do autoritarismo potencial que se esconde sob a arquitetura das democracias liberais. Por fim, assim como se deu nas campanhas antigênero deflagradas na última década, as formas de mobilização e a semântica dessas manifestações replicam e invertem os sentidos de nossos repertórios de protesto, como fica muito claro no slogan “meu corpo, minhas regras” usado por manifestantes contra o uso de máscaras nos EUA. O parceiro e colaborador do SPW, Alrik Schubotz, ao analisar essa cacofonia em Berlim, citou um artigo publicado na revista alemã Die Zeit que ressalta os paradoxos e complicações desse cenário pandêmico. Nesse texto, o autor sublinha que essas contradições desafiam tanto os liberais quanto a esquerda a esclarecer, com maior coragem e precisão, seus parâmetros éticos e epistemológicos em relação aos sentidos e efeitos da COVID-19, assim como em relação à política em geral.
COVID-19 se cruza com Black Lives Matter
Em junho, contudo, outra onda de protestos varreu a cena política global, que igualmente contestava a repressão estatal, embora com um sentido inteiramente diferente. Estamos nos referindo ao levante do Black Lives Matter contra a violência policial racista nos Estados Unidos, que deve ser situado contra o labirinto da pandemia como pano de fundo. Como se sabe, o assassinato brutal de George Floyd em Minneapolis, que provocou a revolta, está profundamente conectado às dificuldades econômicas pelas quais ele passava por causa da crise da COVID-19. O levante se sobrepôs e atropelou os protestos anti-lockdown e inspirou mobilizações em outros países, apesar das limitações impostas pela pandemia. A violência policial racista – que mais uma vez é alvo de movimentos negros americanos – é uma manifestação sempre visível da brutalidade estatal perpetrada pelos regimes democráticos liberais. Esta é a mesma violência que, em outros lugares, tem sido ativada ou facilitada pela pandemia. Por fim, e talvez mais importante, os efeitos combinados da COVID-19 e do movimento Black Lives Matter transformaram a cena política do país, criando condições para a possível derrota de Trump nas eleições presidenciais deste ano, um evento cujos significados e impactos não se limitarão ao território norte-americano.
Entretanto, sombras pairam no horizonte. Basta lembrar que, no ápice dos protestos, Trump e um senador do Partido Republicano pediram abertamente as Forças Armadas que reprimissem a multidão nas ruas, gerando críticas de vários setores, incluindo dos militares. Um recente artigo do The Nation examinou esses fatos, resgatando outros momento críticos da política contemporânea do país, tais como o 11 de setembro e as rebeliões de 1971 contra a Guerra do Vietnã, quando apelos para instalação do estado de emergência também foram feitos. O artigo sublinha, sobretudo, que as motivações de Trump para usar os poderes emergenciais da presidência dos EUA não estão exatamente controladas. Segundo ele:
Os Estados Unidos podem estar diante de uma tempestade perfeita tão perigosa quanto o 11 de setembro: uma pandemia descontrolada, um conjunto de poderes presidenciais inexplorados, um Congresso fraco e tribunais indiferentes. O único freio que nos resta contra a presidência de Trump é o povo – seja nas urnas ou seja nas ruas.
Essa é uma equação complexa que desafia tanto o Black Lives Matter quanto outras forças progressistas na sociedade americana, mas que pode, eventualmente, ser pensada para outros contextos: como equilibrar a urgência política de ir às ruas e o imperativo de proteção mútua em contextos em que as taxas de infecção pela COVID-19 continuam subindo?
COVID-19 como biopolítica- configurações e efeitos
Conforme apontado na primeira Edição Especial do SPW, a COVID-19 é uma crise biopolítica que reativa e amplifica a lógica da governamentalidade e de técnicas administrativas para a gestão populacional em larga escala, através da disciplina e vigilância dos corpos individuais e do corpo social (tal como teorizado por Foucault nos anos 70). Para ilustrar o que isso significa, na coleção de material que compilamos para esta edição, um artigo publicado pelo portal Global Voices analisa como a resposta estatal arbitrária do Zanzibar tem vínculos históricos com estruturas racistas e modalidades de vigilância e controle de pragas, de criminalidade e de dissidência política implementadas durante a era colonial.
Não surpreende, portanto, que tão logo a escala da pandemia foi reconhecida e políticas de contenção começaram a ser adotadas, inúmeras reflexões críticas muito instigantes sobre a biopolítica do novo coronavírus começaram a circular. Entre essas reflexões iniciais, um breve artigo de Giorgio Agamben que interpretava a pandemia como uma invenção destinada a justificar a “excepcionalidade de medidas estatais” provocou uma série de críticas e respostas. Essa controvérsia está longe de ter sido esgotada, mas certamente contribuiu para esclarecer os modos como a COVID-19 se manifesta como biopolítica.
Entre essas muitas e instigantes reflexões, é interessante destacar o exercício desenvolvido por Philipp Sarasin, que retoma e diferencia duas modalidades foucaultianas de governança social dos corpos para conter doenças e “fazer viver e deixar morrer”. Sarasin lembra que a primeira elaboração foucaultiana foi o “modelo da lepra”, ou seja, de confinamento estrito, isolamento, vigilância e punição. A segunda foi o “modelo da varíola”, que se baseia na observação estatística, mensuração da incidência da doença e inoculação, mas também incluiu a vigilância e, sobretudo, implica na demanda de adesão dos indivíduos e das sociedades a essas medidas. Em outras palavras, um modo de gerir uma praga mais alinhando com a lógica liberal de governamentalidade ou regulação estatal.
A perspectiva de Sarasin é analiticamente produtiva porque permite delinear cartografias mais nuançadas da pandemia da COVID-19 como biopolítica. Essa perspectiva permite verificar como, em muitos casos, a COVID-19 realmente tem levado à adoção de medidas verticais de contenção estatal e vigilância rigorosa, que quase imediatamente se traduzem em poderes excepcionais e, eventualmente, em violência estatal. Em outros contextos, no entanto, as respostas foram mais bem guiadas pelo “modelo de resposta à varíola”: mensuração epidemiológica agregada, modulação, confinamento e isolamento social “consensual”. Dito de outro modo, nesses casos, os estados sanitários de emergência não derivam automaticamente para “estados de exceção”.
Então, inspirada pelas reflexões de Roberto Sposito e Judith Butler, Sonia Corrêa sugeriu (no webinar #DawnTalks: Feminist Perspectives on COVID) que outra configuração deve ser adicionada a essa cartografia no exercício de melhor compreender o que está acontecendo no Brasil, EUA, Suécia e Nicarágua (entre outros poucos países). Nesses casos, prevalece a promoção de “imunidade de rebanho”, inclusive por meio da negligência deliberada. Atos de fala e práticas estatais reeditam concepções neo-darwinistas sobre a sobrevivência dos mais aptos, que estão associadas à competição capitalista e à lógica dos corpos trabalhadores dispensáveis. Os traços eugênicos dessa visão são também flagrantes, como bem denunciou o médico Arnaldo Litchenstein em sua afiada crítica da conduta de Bolsonaro diante da COVID-19.
Gênero e sexualidade – implicações e efeitos
Idealmente, para mapear o que a COVID-19 como biopolítica implica para gênero e sexualidade, os vários modos de governar a pandemia que foram descritos anteriormente deveriam ser sistematicamente examinados através dessas lentes. Infelizmente, esse é um exercício muito mais complexo do que podemos oferecer aqui. O que fazemos a seguir é apenas delinear uma visão panorâmica do que parecem ser os aspectos mais flagrantes da pandemia em termos de duas chaves características da lógica biopolítica: a espacialização e a estigmatização de “outros como vetores” .
Espacialização: violência e solidão
A primeira edição especial focou sua atenção na adoção de regras de segregação por gênero para conter o contágio do coronavírus. Nessa edição, priorizamos o confinamento e as restrições espaciais. Antes de examinar como isto está incidindo especificamente nos domínios de gênero e sexualidade, gostaríamos de lembrar noss@s leitor@s que, desde abril, um dos impactos potencialmente mais trágicos da COVID-19 está acontecendo nas prisões, particularmente nos países que são campeões de encarceramento. Essa potencial carnificina é um exemplo incontornável da necropolítica e, conforme amplamente conhecido, a vulnerabilidade diferencial das pessoas encarceradas é determinada por marcadores de raça, etnia, gênero e sexualidade.
Não existem dados globais sobre as taxas de infecção e mortalidade nas prisões, mas os as pesquisas feitas em alguns países são muito preocupantes. Por essa razão, no dia 16 de maio, agências da ONU fizeram um apelo para que medidas de desencarceramento e saúde pública fossem adotadas com urgência nos sistemas prisionais. De acordo com a Wikipedia, um grupo de países formalmente liberou presidiários, mas uma declaração recente da Human Rights Watch informa que essas medidas de política pública e decisões de tribunais tem enfrentado diversos obstáculos e que a porcentagem de presos liberados tem sido muito pequena (em torno de 5%).
Deslocando-se para os impactos de gênero e sexualidade das quarentenas e do isolamento social, nos últimos dois meses, acumularam-se as evidências de que a violência de gênero está crescendo devido ao confinamento doméstico, tanto assim que agora esse problema tem sido descrito como a “pandemia oculta”. Essa dura realidade não foi criada pela biopolítica da COVID-19, mas antes foi iluminada pelo efeitos efeitos da espacialização estrita e do confinamento doméstico (seja ele voluntário ou forçado). Além disso, a reclusão doméstica de mulheres por causa da COVID-19 demonstrou, mais uma vez e com muita clareza, que as relações generificadas de poder continuam extremamente desiguais e revelou que a vida familiar e doméstica não é o paraíso do amor e cuidado, como propalado por conservadores seculares e ideologias religiosas.
Quarentenas e isolamento social também estão produzindo violência e outros efeitos deletérios no caso das pessoas cujo gênero e sexualidade não estão em conformidade com a cishetero normatividade dominante (veja aqui uma compilação). Esses riscos e abusos foram tratados no início de abril pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e esse alerta foi replicado por organizações LGBTQI e pela mídia especializada. Contudo, o problema não alcançou a mesma visibilidade que a violência contra a mulher, ainda quando haja fortes indícios de que essa violência é também damática e letal, como sugerem sintomas preliminares de que os suicídios aumentaram entre jovens queer.
No webinar #DawnTalk mencionado acima, a feminista lésbica mexicana Gloria Careaga, membro do comitê executivo do SPW, sublinhiu que, para além da discriminação violenta e abusiva a que pessoas queer estão sujeitas em suas famílias, também são muito dependentes das redes de apoio social e, portanto, podem ter experiências negativas com o isolamento social, como pode ser ilustrado por um caso coreano. Em maio, um novo surto de COVID-19 surgiu em uma área boêmia de Seoul, gerando pânico social contra a comunidade LGBT. Um homem gay identificado como um dos transmissores do vírus, quando entrevistado pela imprensa, desculpou-se publicamente por ter quebrado as regras de isolamento social, mas também disse ter saído indevidamente de casa por causa da profunda solidão que sentia: um bar era o único lugar onde ele poderia encontrar companhia.
“Os outros como vetores”
O anúncio especial de março-abril também mencionou que a COVID-19 estava produzindo estigmas e alimentando acusações absurdas contra os supostos vetores humanos do vírus. Isso começou com o “vírus chinês” para muito rapidamente se transmutar no risco dos corpos dos mais velhos, da pessoas com doenças crônicas (incluindo pessoas vivendo com HIV/AIDS), das/dos profissionais de saúde, das/dos migrantes, das/dos imigrantes e refugiadas/dos, assim como das pessoas que vivem em áreas urbanas onde o isolamento físico é difícil ou mesmo impossível.
Desde então, ao mesmo tempo em que essas categorias continuaram povoando a atmosfera da pandemia, novos “outros a serem culpabilizados” entraram em cena. Nos EUA, uma autoridade de primeiro escalão do governo Trump afirmou que as taxas maiores de mortalidade por COVID-19 entre as pessoas negras são explicadas pela sua “raça”. Quando taxas maiores de infecção entre grupos indígenas ganharam visibilidade pública no Brasil, uma cidade no estado de Tocantins bloqueou a entrada de índigenas que vivem na região vizinha. E, como mencionado acima, um surto de COVID-19 em uma zona boêmia de Seul causou uma onda de homofobia.
Nesse cenário carregado, a acusação feita por nacionalistas hinduístas de que muçulmanos seriam os principais vetores da COVID-19 na Índia, é talvez a acusação mais problemática a ganhar visibilidade global nos últimos meses. Esse ataque biopolítico adicionou uma nova camada de brutalidade à xenofobia cruel e continuamente perpetrada pelo regime de Primeiro Ministro Modi (e pelo nacionalismo hinduísta num sentido mais amplo) contra a comunidade muçulmana indiana. Como é amplamente sabido, desde dezembro essa comunidade tem bravamente lutado pelos direitos plenos à cidadania, o que pode ser exemplificado pelo espaço de resistência organizado por mulheres muçulmanas em Déli, no Shaheen Bagh, entre janeiro e março de 2020.
De acordo com o IDS, embora a Índia seja o exemplo mais extremo, não é o único lugar onde minorias religiosas estão sendo tachadas de “vetores” do SARS-CoV-2. Tendências similares foram identificadas no Paquistão, Iraque e Uganda. Essas dinâmicas perversas podem ser lidas pelas lentes da liberdade religiosa ou, inversamente, da intolerância religiosa e da discriminação. Mas é importante lembrar que, historicamente, raça e religião tem sido constantemente sobrepostas como categorias taxonômicas (biopolíticas) de segregação e hierarquização, como foi o caso dos mouros e particularmente dos judeus no início da modernidade europeia. Além disso, dada a profunda imbricação entre religioso e política sexual, é importante não perder de vista essas dinâmicas perversas que vulnerabilizam a um só tempo comunidades religiosas e dissidentes sexuais.
COVID-19: política antigênero e antiaborto
Na edição de março-abril, citamos a análise da jornalista do openDemocracy, Clare Prevost, sobre como o estado de anormalidade desencadeado pela pandemia havia criado condições favoráveis para as forças conservadoras ampliares suas cruzadas para reforçar os papeis tradicionais de gênero, o dimorfismo sexual, assim como ataques ao feminismo, aborto e diversidade sexual. O que aconteceu desde então parece confirmar essas previsões. Nesta seção, analisamos como atores e instituições religiosas estão se comportando em relação à pandemia e quais têm sido as ações abertamente antigênero e antiaborto implementadas por atores estatais e seculares (lembrando que nos dias atuais nem sempre é tarefa trivial fazer tais distinções).
Como os cristãos conservadores estão se comportando
No período de março-abril, vozes religiosas conservadoras (paralelamente engajadas em campanhas antigênero e antiaborto) continuaram a contestar visões e dados científicas relativos à COVID-19, propagando visões que interpetam a pandemia como conspiração ou punição divina (leia aqui). Em relação aos efeitos políticos dessas narrativas, um artigo do The Guardian mostrou, de maneira muito preocupante, que a maioria dos norte-americanos religiosos acredita que a pandemia é realmente uma mensagem de deus. Além disso, nos EUA e no Brasil, disputas persistiram em relação ao fechamento de igrejas, levando à flexibilização de regras de isolamento social, do que são exemplos uma decisão da Suprema Corte dos EUA sobre a Califórnia e uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Os episódios acima mencionados referem-se a vozes e atores evangélicos, mas há que dizer que os católicos não estão nada silenciosos. Na Espanha, um bispo declarou que, como a vacina contra a COVID-19 fará uso de material genético fetal, deve ser abominada. No Reino Unido, outro prelado católico atacou a política de Estado que possibilita mulheres a realizarem aborto farmacológico em suas casas. E, no Quênia, bispos católicos renovaram seus ataques contra a educação sexual integral. Depois, foi a vez da Virgem Maria sobrevoar sobre os países afetados pela COVID-19. No final de março, a Força Aérea italiana voou com uma estátua da Virgem Maria pelos céus do país. Logo depois, a virgem padroeira La Negrita, fez um sobrevoo sobre a Costa Rica. Em maio, El Salvador e Colômbia receberam visitas aéreas da Virgem de Fátima (leia mais ao final desta compilação).
Na América Latina, esses vôos da Virgem evocam, explicitamente, a tradição marianista que sustenta velhas concepções católicas sobre as mulheres como mães e esposas obedientes. O fato de que uma Virgem portuguesa tenha sobrevoado a Colômbia e El Salvador também merece um comentário. Esses eventos religiosos podem, talvez, ser explicados pela presença nesses países de grupos ultracatólicos ferrenhamente antiaborto e antigênero: os Arautos do Gospel, ou uma outra ramificação da agora extinta organização brasileira ultracatólica Tradição, Família e Propriedade (TFP). Isso é assim porque, alinhada à tradição fascista portuguesa, a hagiografia da TFP concebe a Virgem de Fátima como um “escudo contra o comunismo”. Desde 2018, na medida em que a direita política chegou ao poder em vários países da região, essas vertentes ultracatólicas tem ganhando espaço e visibilidade política. Vale dizer que, tal como analisado pelo Fórum do Parlamentar Europeu pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos no relatório “Modern-Day Crusaders in Europe” (livremente traduzido para Cruzadistas contemporâneos na Europa), os braços europeus da TFP também têm sido muito ativos nos anos recentes, sobretudo na Polônia e em outros países do Leste Europeu.
Por fim, mas não menos relevante, no final de junho, o Vaticano divulgou seu novo Diretório de Catequese, que inclui algumas menções em relação a gênero e identidade de gênero. Uma delas, ainda que expressa em linguagem mais suave do que a usada em documentos anteriores, reitera a visão antiga da Igreja Católica que: “de acordo com esta posição, identidade de gênero não seria mais aquela original que a pessoa deve aceitar e preencher de sentido, mas ao contrário uma construção social decidida autonomamente, completamente dissociada do sexo biológico. O homem renega sua própria natureza e decide criar uma própria para si mesmo. Contudo, de acordo com o relato bíblica da criação, o ser humano foi criado por Deus como homem e mulher”.
Estados arbitrários e atores seculares
Conforme previsto por Prevost, a pandemia não está evitando que atores governamentais conhecidos por sua adesão à ideologia antigênero promovam novas leis e decretem políticas públicas para abolir a “discussão de gênero”.
Na Polônia, à medida que o país se encaminhava para eleições presidenciais, discursos oficiais contra o que o governo do PiS e seus aliados chamam “ideologia LGBT” se intesificaram. Como se pode ver em um mapa que circula amplamente na internet, um terço do território da Polônia é hoje considerado “zona livre de LGBTs”. Na Universidade de Silésia, um duro conflito eclodiu entre estudantes e um palestrante ferozmente antigênero. E, lamentavelmente, quando esta edição especial estava sendo finalizada, o PiS ganhou uma vez mais as eleições por uma estreita margem de votos.
Na vizinha Hungria, no início de maio, o Parlamento (seguindo caminho aberto pela Bulgária em 2019) votou contra a ratificação da Convenção de Istambul. Um pouco depois, aprovou lei definindo gênero a partir de bases cromossômicas e suspendendo direitos existentes em relação à identidade social de pessoas trans. A isso, se seguiu a aprovação de legislação similar pelo Senado da Romênia que, no entanto, ainda depende de sanção presidencial para ser decretada.
Enquanto o Leste Europeu permanece como campo principal das batalhas antigênero, uma campanha regional contra a Convenção de Istambul está sendo gestando e potencialmente poderá afetar outros países europeus. Além disso, no Reino Unido, onde até agora os ataques a “gênero” inexistiam, o debate sobre os direitos à identidade de gênero estão tomando uma direção muito problemática. Um duro debate também está em curso na Espanha, que demonstra como posições contrárias ao gênero e à identidade de gênero estão embaçando e confundindo as fronteiras entre direita e esquerda, assim como entre feministas e visões religiosas ultraconservadoras.
No caso das Américas, um pouco antes da Suprema Corte dos EUA tomar uma impactante decisão sobre identidade de gênero e discriminação no mundo do trabalho, o governo Trump emitiu uma ordem executiva retirando identidade de gênero da lista de situações injustificadas de discriminação nos serviços de saúde. No Brasil, em maio, quando a Suprema Corte julgou inconstitucional uma lei educacional antigênero no âmbito municipal (veja abaixo), Bolsonaro tirou fotos com um padre e crianças de escola declarando que uma lei antigênero seria rapidamente aprovada. Em seguida, um projeto de lei foi apresentado à Câmara dos Deputados cujo conteúdo não difere muito das legislações húngara e romena acima mencionadas.
O cenário global é igualmente problemático no que diz respeito ao aborto. O portal Ojo Público (em espanhol) analisa como, no México, à medida que as taxas de infecção por COVID-19 subiam – porque nenhuma resposta nacional consistente tinha sido adotada – o direito ao aborto tornou-se o principal alvo de forças conservadoras religiosas e seculares. Mais ao Norte, conforme informado amplamente pela imprensa, o governo dos EUA dirigiu novos ataques contra a OMS e a própria ONU. O diretor da USAID enviou carta ao secretário-geral da ONU pedindo que a recomendação para garantir serviços de direitos reprodutivos durante a pandemia fosse retirada dos protocolos das agência da ONU. Na mesma linha, em obediência a uma ordem dada por Bolsonaro no Twitter, o general e ministro interino da saúde no Brasil, Eduardo Pazuello, demitiu os coordenadores do Programa Nacional de Saúde da Mulher porque eles haviam assinado um protocolo técnico recomendando que os serviços de saúde sexual e reprodutiva fossem preservados na política nacional de resposta à COVID-19.
O Brasil é também, muito lamentavelmente, um lugar privilegiado para examinar como forças antigênero e antiaborto estão rumando abertamente em direção ao extremismo político. No final de abril, um grupo pró-Bolsonaro auto-intitulado “300 do Brasil” montou um acampamento na Esplanada dos Ministérios em Brasília. Uma de suas líderes era Sara Winter, a ex-integrante do Femen convertida em ativista ultracatólica que, desde 2014, tem sido uma voz conhecida nos movimentos antigênero e antiaborto no Brasil (e com uma razoável notoriedade internacional). Em entrevista à BBC, Winter disse que o grupo estava armado e sua fotografia com duas pistolas nas mãos ilustrou a reportagem. No final de maio, os “300 do Brasil” atacaram o Supremo Tribunal Federal com fogos de artifício. Logo depois, Sara desafiou publicamente o ministro responsável pela investigação sobre a conduta antidemocrática dos apoiadores de Bolsonaro. Em junho, ela foi presa e está atualmente em prisão domiciliar sob monitoramento eletrônico. Sua trajetória revela, de maneira muito contudente, como a ideologia antigênero e antiaborto pode, facilmente, se metamorfosear em neo-fascismo.
COVID-19, gênero e sexualidade: finalmente boas notícias!
Apesar das muitas sombras que espreitam o mundo, há boas notícias a serem reportadas no que diz respeito a direitos, gênero, sexualidade e aborto, a maior parte delas relacionadas a decisões de Supremas Cortes em países muito diversos.
No dia 27 de junho, quando o parlamento votou pela descriminalização da homossexualidade, o Gabão tornou-se o sétimo país a derrubar leis punindo relações entre pessoas do mesmo sexo na África Subsaariana nos últimos anos. Os outros são África do Sul, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Angola e Botsuana.
Um mês antes, no dia 27 de maio, a Costa Rica tornou-se o primeiro país centro-americano a aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O tema foi central nas eleições presidenciais de 2018, quando se tornou foco da campanha antigênero usada pelo pastor evangélico e candidato Fabricio Alvarado para atacar a Opinão Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema (consulta essa requerido pelo país). Na sequência, contudo, a mesma Corte emitiu outra decisão sobre objeção de consciência (em espanhol) que pode criar obstáculos para a implementação completa do casamento igualitário. Os resultados da decisão devem, portanto, ser monitorados de perto.
Em 15 de junho, a Suprema Corte dos EUA também tomou uma histórica decisão em favor da não-discriminação no mercado de trabalho, que inclui a orientação sexual e a identidade de gênero. Duas semanas depois, no dia 29, a Corte também declarou inconstitucional a lei do estado de Louisiana impedindo o funcionamento de clínicas de aborto, exceto em condições muito restritas. Ainda que tais decisões devam ser celebradas, vários analistas observam que os votos decisivos dos ministros conservadores da Corte, foram formais e não exatamente substantivos em favor dos direitos LGBT e do aborto.
Enquanto isso, no Brasil, o movimento Escola Sem Partido – que é também antigênero – sofreu várias derrotas depois que a Suprema Corte reafirmou a constitucionalidade da inclusão da questão de gênero na educação e votou unanimemente contra leis municipais das cidades do Novo Gama, Ipatinga e Cascavel. Essas decisões também estabeleceram que a abordagem sobre gênero e sexualidade na educação pública é dever do Estado.
Na Europa, a legislatura alemã aprovou no dia 8 de maio a proibição da propaganda e da prática de terapias de conversão sexual em menores. A Alemanha se une ao Brasil, Equador, Malta e Taiwan na lista dos países que baniram essas práticas. E, em 10 de julho, o Instagram e o Facebook também instauraram uma política global de remoção de conteúdo relacionado à conversão sexual. Nesse domínio particular, outro fato marcante a ser destacado foi o lançamento do Relatório Sobre A Suposta “Terapia de Conversão” elaborado por Victo Madrigal, especialista independente da ONU sobre proteção contra violência e discriminação baseada em orientação sexual e identidade de gênero.
Despedida
A pandemia de COVID-19 é, acima de tudo, um tempo de perda e luto. Portanto, nós lamentamos profundamente as mais de 500 mil vidas perdidas desde janeiro, 72 mil delas no Brasil. Nesta oportunidade, gostaríamos também de prestar um tributo especial à nossa parceira colombiana, Katherine Cuellar Bravo, jovem pesquisadora feminista que nos deixou em maio.
Sexualidade & Arte
O SPW apresenta o trabalho da artista brasileira Ventura Profana sobre raça, religião, sexualidade e gênero.
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Respostas à AIDS no Brasil: Aprimorando o Debate III – ABIA
Nós, os vulneráveis – Revista Radis Ed. 212 – Fiocruz
Guia ‘Mulheres com Deficiência: Garantia de Direitos para Exercício da Cidadania’ – Coletivo Feminista Hellen Keller
Coronavirus y Derechos Humanos: Acciones y Recursos para Proteger los DD.HH durante la Pandemia – CEJIL
Panorama del Reconocimineto Legal de la Identidad de Género en las Américas – OEA, Synergia-IHR & AECID
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Coordenação editorial: Sonia Corrêa
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