No Brasil
No dia 14 de março, a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), e seu motorista, Anderson Gomes, foram vítimas de um assassinato político uma semana após a marcha de mulheres por todo o país que marcou o Dia Internacional da Mulher no dia 8. Marielle foi a 5ª vereadora mais votada, apoiada por 46 mil pessoas no Rio de Janeiro e fez de seu mandato uma plataforma para as aspirações e necessidades das pessoas que vivem em favelas, das mulheres negras e para os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo os direitos LGBT. Na ocasião em que foi executada, ela acabara de ser nomeada relatora da Comissão Tripartite que supervisionará a intervenção militar no Rio de Janeiro e, desde então, continuava a denunciar abusos e assassinatos de autoria policial, em especial do 41º Batalhão da Polícia Militar em Acari.
Os assassinatos despertaram uma onda de manifestações de solidariedade e de protestos pelo mundo que demandam por uma investigação rápida e transparente. (Veja compilação) No dia seguinte, a frente de esquerda no Parlamento Europeu fez um ato de repúdio que culminou, por sua vez, num pedido emitido por Bruxelas pela suspensão da negociação do acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia e pela criação de uma comissão independente para supervisionar as investigações sobre a execução de Marielle e Anderson.
Atos de repúdio também aconteceram durante a realização da 62ª Sessão da Comissão do Status da Mulher em Nova York e da 32ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos em Genebra. Relatores Especiais e Especialistas Independentes da ONU emitiram uma declaração pública demandando uma resposta sobre os procedimentos policiais, preocupados com o quadro de violações de Direitos Humanos. (Leia no El País) Apelos do mesmo teor foram feitos pela Anistia Internacional, Human Rights Watch, OAB, além da iniciativa global #JustiçaParaMarielle organizada pelo vereador David Miranda (PSOL-RJ) e seu marido, o jornalista Glenn Greenwald, além do fundo para formação de lideranças políticas de mulheres negras lançado em conjunto pela Open Society Foundations, Fundações Ford, Ibirapitanga e Kellog.
Num protesto em frente ao Consulado brasileiro em Nova York, duas feministas que são membros do grupo diretivo do SPW se pronunciaram publicamente. Rosalind Petchesky relacionou o evento à cumplicidade entre a indústria de segurança e armas de Israel, que mata palestinos, com a política militarizada da segurança pública no Rio de Janeiro, que, por sua vez, mata pessoas negras e pobres. Gloria Carega relacionou o evento à deterioração do Estado de Direito e da Democracia na América Latina e ao atual debate pelo maior controle de armas.
Apesar dessa comoção e indinação no Brasil, as vozes de direita, incluindo uma desembargadora do Rio de Janeiro, iniciaram uma campanha viciosa de notícias falsas que associavam Marielle ao tráfico de drogas. Uma pesquisa feita pelo Datafolha revelou, entretanto, que o público em geral não comprou esse pacote de mentiras. Num artigo sobre essas fake news publicado na Ilustríssima da FSP, Pedro Abramovay e Manoela Miklos sublinham corretamente que essa onda de virulência não deve ser atribuída exclusivamente à polarização deliberadamente provocada na internet, mas sim analisada como mais um efeito nefasto da guerra contra as drogas. Vinte dias depois desse trágico acontecimento, não há ainda resultados da investigação dos crimes e da violência que prolifera no Rio de Janeiro e no seu entorno, como no caso dos assassinatos de sete jovens na Rocinha e de cinco jovens em Maricá, assim como assassinato de policiais, além de graves atentados e ameaças a ativistas durante o mês.
Esse cenário não deve ser dissociado da tensão política que subiu de tom no plano nacional. Como se sabe, às vésperas do julgamento do pedido de habeas corpus do antigo presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, o ônibus de sua caravana pelo Brasil foi alvejado por tiros no Paraná e, em seguida, o General Villas Boas emitiu tweets pessoais afirmando que as forças armadas se posicionam “contra a impunidade”, o que foi corretamente interpretado por vários atores como uma ameaça ao SFT, inclusive pelo Ministro Celso de Mello. No dia 4 de abril, quando este anúncio estava sendo finalizado, o STF confirmou a condenação de Lula à prisão em segunda instância e, em seguida, uma ordem de prisão foi emitida pelo juiz Sergio Moro, prosseguindo com a agenda de “moralização” da Justiça, como argumenta Eloísa Machado. O cenário parece ainda mais contraditório quando pensamos na recente decisão do STF que aprovou a Lei de Identidade de Gênero no dia 1º de março. No entanto, como Igor Campos Viana esclarece em seu artigo exclusivo ao SPW, essa decisão não foge às ambiguidades e contradições do cenário político conservador. Agradecemos a sua generosidade em tecer uma análise importante para entendermos os jogos de força e a economia política em torno desse evento.
Política sexual e política do religioso na América Latina
Enquanto o Brasil vê cada vez mais a atuação de atores militares e religiosos, uma notícia excelente nos chega da Costa Rica, onde o Partido de Acción Ciudadana (PAC) logrou eleger o seu candidato à presidência, Carlos Alvarado Quesada, e à vice presidência, Epsy Campbell Barr, derrotando o candidato evangélico do Partido de Restauración Nacional, cuja popularidade se ampliou depois de um ataque feito pelo candidato contra a opinião da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O SPW parabeniza Epsy Campbell Barr, deputada negra feminista do PAC por sua eleição como vice-presidente. Essa é a primeira vez que, no continente americano, uma mulher afrodescendente chega por via eleitoral a um posto tão alto no aparato governamental.
Já na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a inclusão da linguagem de gênero no texto do Plano Municipal de Educação Pública votada em 27 de março foi violentamente atacada por ativistas anti-gênero que ocuparam as galerias. A cena foi particularmente chocante, porque aconteceu no mesmo local onde a homenagem fúnebre a Marielle Franco e a Anderson Gomes foi realizada duas semanas antes. Apesar da diatribe, o discurso preparado por Marielle Franco para esta mesma ocasião foi lido em sua memória e em defesa da linguagem que estava sendo atacada: “Se você é a favor da vida, então você deve ser a favor da igualdade de gênero. A igualdade só pode ser promovida pela educação consciente e pelo debates com nossos filhos, a fim de garantir que eles sejam adultos melhores.”
Ainda no Brasil, uma investigação jornalística revelou que 564 pessoas eram mantidas em condições análogas à escravidão sob a igreja evangélica Comunidade Cristã Traduzindo o Verbo, espalhadas por diferentes empreendimentos administrados pela igreja e espalhados por diferentes estados do país.
Aborto
Da Argentina também nos chega uma ótima notícia. Projetos de lei para descriminalizar o aborto começaram a tramitar no dia 6 de março no Congresso da Nação. Entre os vários projetos sendo analisados, como nos infere Victoria Pedrido, o projeto de lei encaminhado pela Campanha Nacional por el Aborto Legal, Seguro y Gratuito é o que conta com o maior apoio parlamentar.
Na Polônia, onde uma tentativa de restrição radical dos direitos reprodutivos foi impedida pela Greve de Mulheres Polonesas em setembro de 2016, o Parlamento, dominado pelo Partida da Lei e Justiça, sob pressão da Conferência Episcopal da Polônia, começou a processar de maneira acelerada o projeto de lei “Acabem com o aborto”. Em resposta, outra manifestação foi convocada pela Greve no dia 23 – onde foi realizado um minuto de silêncio em homenagem a Marielle. O protesto foi convocado pela hashtag #CabideParaUmBispo (#HangerForABishop) a fim de lembrar dos riscos dos procedimentos inseguros de aborto. Um grupo de Relatores Especiais de Direitos Humanos da ONU emitiu uma nota contra essa proposta de legislação que criminaliza o aborto de maneira absoluta. (Saiba mais)
No estado de Ohio nos EUA, o direito ao aborto estão sendo radicalmente ameaçados pela Lei de Proibição do Aborto, que procura reverter todas as permissivas em relação ao procedimento. No plano federal, o Supremo Tribunal decidirá muito em breve sobre a legalidade das clínicas que atraem as mulheres para convencê-las de não prosseguirem com abortos.
O relatório “Abortion Worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access” (Aborto ao redor do mundo 2017: progresso assimétrico e acesso desigual, em tradução livre) foi lançado pelo Instituto Guttmacher e revela uma diminuição na taxa de realização de abortos no mundo. No entanto, a tendência, quando olhada por região, evidencia o quadro desigual – enquanto a taxa é decresente por conta de países desenvolvidos que já despenalizaram o procedimento, regiões em desenvolvimento, onde o aborto ainda é criminalizado, demonstram taxas estagnadas e incidência de gravidezes concentradas em mulheres jovens, em especial na América Latina. Neste ensejo, o SPW preparou o material Retrospectiva: um ano pelo direito ao aborto que compila a luta por esse direito no Brasil em 2017, assim como relaciona com o quadro internacional e os efeitos nefastos da criminalização, tendo também em vista a volta da ADPF 442 à pauta do STF em breve.
Direitos das mulheres
Paula-Mae Weekes se tornou a primeira mulher presidente de Trinidade e Tobago no dia 19 de março. De forma a aproveitar o ensejo progressista, a sociedade civil se organizou para lançar uma petição a fim de pressionar pelo fim das leis que criminalizam a homossexualidade no país.
A Geórgia rejeitou um projeto de lei que tentava equalizar a porcentagem de mulheres no Parlamento, que representam hoje somente 16%. A lei propunha cotas obrigatórias de gênero no parlamento e foi apoiada por 37 mil eleitores, assim como por grupos nacionais e internacionais de mulheres.
Prostituição
No Peru, uma grande vitória foi deflagrada depois de dois anos de luta intensa. Foi aprovada a criação do Sindicato Nacional das Profissionais do Sexo do Peru no dia 21 de março, que aproxima a conquista recente àquelas já presentes nos cenários da Colômbia, da Guatemala e da Nicarágua. A partir dessa medida, a negociação por direitos trabalhistas acarretará na maior qualidade de vida dessas profissionais.
A lei norte-americana contra o tráfico sexual FOSTA, aprovada em fevereiro de 2017, e SESTA, que ainda está no Senado, visam proibir sites de hospedar propagandas de serviços de sexo, assim como permitir o processo legal dos mesmos por vítimas de tráfico sexual. Desta forma, diversas plataformas já começaram a se adequar às normas, dificultando o trabalho de prostitutas no país. Essas normas trazem grandes danos às profissionais do sexo, especialmente às mais marginais, que encontram em sites uma forma mais segura e independente de trabalhar. Tais efeitos deletérios são confirmados por uma lei parecida no México.
Em Hong Kong, 99 prostitutas (92 cis e 7 trans) e dois homens que apoiavam suas atividades foram presos em uma grande ação repressiva contra “vícios”. Apesar da atividade ser legal, outras que rodeiam aquelas relacionadas à venda de sexo, como o uso de drogas etc, são reprimidas para afetar a prostituição.
No plano internacional, a eleição de San Francisco como cidade-sede da Conferência Internacional de AIDS de 2020 suscitou a preocupação de ativistas devido às políticas antagônicas atuais do governo Trump, que ameaçam profissionais do sexo, usuários de drogas, muçulmanos ou qualquer pessoa com antecedentes criminais, incluindo defensores de direitos humanos e direitos LGBT, levando-os a promover cartas de repúdio e boicote à decisão. (Leia a nota da Network of Sex Workers Project)
Direitos LGBTI
Em uma vitória significativa para os direitos humanos no Quênia, o Tribunal de Recursos decidiu que o uso de exames anais forçados é ilegal.
Na Argentina, o julgamento por justiça pelo tranvesticídio (primeira vez que essa tipificação é utilizada) da ativista Diana Sacayan, antiga diretora da ILGA, começou em 12 de março. (Leia aqui)
No dia 21 de março, o parlamento sueco tomou a decisão histórica de pagar indenização às pessoas trans que foram forçadamente esterilizadas entre 1972 e 2013.
O grupo feminista Movimento das Mulheres da Geórgia marcou o Dia Internacional da Mulher em 8 de março em protesto pelos direitos das mulheres transexuais. Elas foram recebidos por um contra-ataque homofóbico que jogou ovos e entoou “vergonha”.
O Parlamento neozelandês aprovou uma lei que apaga dos registros condenações de homossexualidade que antecederam a legalização no país em 1986.
Despedida
No dia 25 de março, nos despedimos da companheira de luta feminista Ana Maria Medeiros da Fonseca. Ana foi coordenadora associada do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp, secretária executiva do Ministério do Desenvolvimento Social (2004) e Analista de Políticas Sociais da Oficina do PNUD para a América Latina e o Caribe (2005-2006).
Recomendamos
Livros
Direitos Humanos e Cultura Escolar – Alameda
Artigos
As bases da nova direita – Antônio Flávio Pierucci
Uma arquitetura de comando e conflito: a intervenção no Rio como um laboratório das disputas de poder – Carolina Cristoph Grillo – Novos Estudos
A invenção da infância sem corpo – El País
“A parte civil da ditadura se manteve intacta” – Carta Capital
Especial_Roraima: Refugiadas transexuais venezuelanas relatam violação de direitos em Boa Vista – Agência de Notícias da AIDS
População trans vive processo de globalização interessante e perigoso – Tatiana Vergueiro em entrevista para NLUCON
Manifesto artificial contra a passibilidade estética – Revista CULT
Negros atuam em peso na política popular no Brasil, mas seguem subrepresentados no governo – Global Voices
A comunidade LGBTI continua sendo castigada 20 anos após a descriminalização da homossexualidade no Equador – Global Voices
Mitos e preconceitos dificultam combate ao feminicídio – Carta Capital
Quando as leis não bastam: o encarceramento de grávidas no Brasil – Le Monde
Publicações e recursos
O corpo na pesquisa social – Revista Política & Trabalho N. 47
Mulheres Chefes de Família no Brasil – Estudos Sobre Seguros – Edição 32
Dossiê Lesbocídios: as histórias que ninguém conta – Núcleo de Inclusão Social (NIS) e Nós: dissidências feministas
Dossiê: História das Mulheres, Gênero e Identidades Femininas na África Meridional – Cadernos Pagu n.49 2017
50 libros imprescindibles para entender la cultura LGBTTTI-Q en México – Eriko Stark
Os filiados aos partidos brasileiros: gênero, idade e distribuição – Nexo Jornal
Revista InformAção N. 42/fev 2018 – Médicos sem Fronteiras
Não perca!
A ONU recebe aplicações para a chamada de artigos ‘Superando Desigualdades em um Mundo Fraturado — Entre o Poder das Elites e a Mobilização Social’. Prazo: 20 de abril
Jornada Direitos Humanos em Debate: contexto e marcadores sociais da diferença – UFRGS
Conferência Internacional Intersexualidades / interseccionalidades: Saberes e Sentidos do Corpo – UNEB (Salvador, Bahia) de 5 a 7 de Setembro de 2018. Prazo para envio de resumos: 30 de maio de 2018.
Oportunidades na área de gênero – março/2018 – Pagu Unicamp
I Aquenda de Comunicação, Gêneros e Sexualidades – UFRGS – 1, 2 e 3 de agosto de 2018. Prazo para envio de resumos: 02 de maio de 2018.
Arte & sexualidade
Em ocasião do brutal assassinato de Marielle Franco, relembramos o trabalho fotográfico da artista Anna Kahn Bala Perdida.