REPRESENTAÇÃO LOCAL E POLÍTICA PARTIDÁRIA:
CANDIDATURAS TRANSEXUAIS E TRAVESTIS NO BRASIL[1]
Marco Aurélio Máximo Prado[2]
Em um momento em que os processos eleitorais colocam em xeque a própria democratização das sociedades não só no Brasil, mas também em vários outros países, os resultados eleitorais podem interpelar várias questões fundantes dos processos democráticos. Uma delas, nas últimas eleições municipais brasileiras, apesar da crise representacional na política, despontou com uma surpresa eleitoral para cargos de representação no âmbito das Câmaras de Vereadorxs: a quantidade de candidatas e candidatos transexuais e travestis em 2016 em uma amplitude ideológico-partidária bastante heterodoxa.
No Brasil, desde o surgimento das primeiras organizações sociais ativistas LGBT, o tema da participação em partidos políticos foi extremamente polêmico. Nos anos de início da abertura democrática no país, foram muitos os debates sobre se as experiências LGBT, interesses de minorias, demandas e propostas políticas encontrariam abrigo nos partidos políticos, mesmo considerando alguns partidos que pareciam mais abertos às experiências da diversidade de gênero e sexualidades.
Embora esta fosse uma polêmica que tenha dividido muitos e muitas ativistas nas décadas de 1980 e 1990, ainda assim, naquele momento, candidatas e candidatos gays e lésbicas a vários níveis de representação política emergiram em um momento que saíamos da forte repressão ditatorial brasileira. Não que eram muitas candidatas e candidatos gays e lésbicas, mas diante daquele cenário, quando ainda as discussões sobre visibilidade, políticas públicas e direitos legais da população LGBT engatinhavam, a existência de candidatos e candidatas gays e lésbicas era já a marca de um potencial político de democratização da participação, da visibilidade e do direito bastante evidente.
Para se ter uma ideia de uma experiência de candidatura daquele contexto, foi em 1982 a primeira eleição em que o Partido dos Trabalhadores participaria como partido político organizado, que acontece a aparição do candidato Edson Nunes ao cargo de Deputado Federal como ativista gay. Ele se tornaria o primeiro candidato com visibilidade homossexual a um cargo de representação política federal no cenário pós-ditadura brasileira.
Embora fosse polêmica a representação política partidária de gays e lésbicas naquele momento, foi em um certo crescente eleitoral que a cada eleição pudemos observar no país um aumento de candidaturas de gays e lésbicas, principalmente organizadas em partidos políticos no espectro da esquerda partidária. Muitos núcleos gays e lésbicos foram criados no interior de partidos, sobretudo a partir dos finais de 1990. A aparição de núcleos partidários, naquele momento, não se deu somente em partidos posicionados na chamada esquerda ideológica mas também em partidos de centro e centro-esquerda, embora essa classificação seja sempre insuficiente para definir ou posicionar ideias e posições partidárias. O que se pode observar é que de fato os partidos mais conservadores não tinham candidaturas representativas da diversidade sexual e de gênero, o que vai ser alterado completamente durante a primeira e segunda décadas do século XXI.
Importante destacar que muitas organizações ativistas de gays e lésbicas nunca tiveram um consenso sobre a partidarização das experiências LGBT, e esse tipo de posição político-estratégica sempre fomentou muitos debates internos ao movimentos sociais LGBT, o que culminou com várias candidaturas políticas em partidos distintos que não necessariamente representavam a expressão dos movimentos sociais LGBT, uma vez que este debate não ganhou consenso nem posições definidas, abriu um campo de adesão partidária que se vincula por relações mais locais, pessoais e menos por configuração ideológica.
No entanto, uma marca evidente é que embora tivéssemos candidaturas gays e lésbicas em diferentes partidos políticos e para distintos cargos de representação logo no período de abertura democrática no Brasil, não tínhamos candidaturas transexuais e travestis. Possivelmente, por várias questões históricas pode-se vislumbrar a impossibilidade e a dificuldade da participação político-partidária de pessoas transexuais e travestis em um contexto em que a principal luta política era conter a violência policial, a qual aniquilava a cada dia travestis e mulheres transexuais em todo o território nacional, bem como, um pouco mais tarde, a centralidade da luta contra a AIDS, a qual gerou uma participação política em organizações da sociedade civil de travestis e transexuais bastante densa no país.
De lá para cá, muitas movimentações políticas da população de travestis e transexuais aconteceram, não só através de organizações ativistas e sociais, as quais tiveram uma enorme expressão política, como também a partir dos finais do século XX e início do século XXI um aumento da visibilidade trans tanto em movimentos sociais como também em cargos de gestão pública. É notável que a organização política de mulheres transexuais e travestis teve uma maior incidência a partir da organização do ENTLAIDS (Encontro Nacional de Travestis e Transexuais de Luta contra AIDS) e das várias organizações ativistas trans no Brasil. Mesmo que este aumento de visibilidade não tenha, nas últimas décadas, significado um aumento no campo dos direitos civis, de garantias de cidadania e de recrudescimento da violências contra este grupo no país, como indicam vários dados nacionais e internacionais, o Brasil segue tendo um índice de assassinatos de pessoas trans e travestis bastante expressivo, sendo até considerado por alguns relatórios internacionais como um dos países com maior índice de casos de extermínio deste grupo.
Paradoxalmente, em 2016, vimos acontecer uma explosão emergencial de candidaturas de pessoas trans e travestis no âmbito das últimas eleições locais para o cargo de vereador/vereadora, o que emergiu como uma novidade importante mesmo em um contexto em que a representação política vem perdendo a cada dia valor expressivo no voto nacional. As últimas eleições foram marcadas por dois eventos que revelam um certo paradoxo: um aumento de candidaturas trans e travestis, e um crescimento do voto nulo/branco como uma expressão do descontentamento com a categoria política partidária nacional.
Apesar deste desinteresse da população em geral e pelo histórico alijamento da população trans da vida partidária brasileira, em 2016 tivemos 94 candidaturas de pessoas trans em 22 dos 26 Estados Nacionais. De Norte a Sul, de Leste a Oeste, vivemos experiências de candidaturas locais de pessoas trans se apresentando através de um enorme espectro partidário das várias nuances político-ideológicas. Partidos políticos de esquerda, centro e direita apresentaram candidaturas transexuais e travestis para os cargos de vereadores e para o cargo de prefeitas.
A lista de partidos que apresentou candidaturas trans e travesti pode ser observada no quadro abaixo:
Partido | Sigla |
Partido Solidariedade | PSOL |
Partido Socialista Brasileiro | PSB |
Partido dos Trabalhadores | PT |
Partido Humanista da Solidariedade | PHS |
Partido República | PR |
Partido Social Democrático | PSD |
Partido Verde | PV |
Partido do Movimento Democrático Brasileiro | PMDB |
Partido Social Democracia Brasileira | PSDB |
Partido Comunista do Brasil | PCdoB |
Partido Republicano Progressista | PRP |
Partido Trabalhista Cristão | PTC |
Partido Pátria Livre | PPL |
Partido Republicano Brasileiro | PRB |
Partido da Mulher Brasileira | PMB |
Partido Democrático Trabalhista | PDT |
Democratas | DEM |
Partido Renovador Trabalhista Brasileiro | PRTB |
Partido Trabalhista Nacional | PTN |
Partido Republicano da Ordem Social | PROS |
Partido Social Liberal | PSL |
Partido Progressista | PP |
Partido Trabalhista Brasileiro | PTB |
Partido da Mobilização Nacional | PMN |
Partido Comunista Brasileiro | PCB |
Solidariedade | SD |
Partido Ecológico Nacional | PEN |
Estados/Regiões com número de candidaturas trans
Estado | Região | Números Candidatxs |
Rio Grande do Sul | Sul | 09 |
Santa Catarina | Sul | 01 |
Paraná | Sul | 05 |
Goiás | Centro-Oeste | 02 |
São Paulo | Sudeste | 23 |
Mato Grosso do Sul | Centro-Oeste | 04 |
Rondônia | Norte | 01 |
Acre | Norte | 01 |
Amapá | Norte | 01 |
Rio de Janeiro | Sudeste | 03 |
Amazonas | Norte | 01 |
Roraima | Norte | 02 |
Pará | Norte | 04 |
Maranhão | Nordeste | 02 |
Piauí | Norte | 02 |
Sergipe | Nordeste | 02 |
Rio Grande do Norte | Nordeste | 05 |
Ceará | Nordeste | 04 |
Pernambuco | Nordeste | 02 |
Bahia | Nordeste | 08 |
Minas Gerais | Sudeste | 09 |
Paraíba | Nordeste | 05 |
A partir desses dados, pode-se perceber que localmente nem sempre os partidos políticos são percebidos como posições político-ideológicas, mas atuam sobremaneira com uma perspectiva mais personalista do que propriamente partidária, pois há partidos que nacionalmente apresentam pautas totalmente opostas aos direitos trans e travestis, mas localmente tiveram candidatas e candidatos trans e travestis. Dos 22 Estados que tiveram candidaturas trans, apenas seis tiveram candidatas eleitas, sendo o caso de Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraíba, Rondônia e Rio Grande do Sul (saiba mais aqui). E os partidos que tiveram candidatas trans eleitas foram: PSDB, PR, PRB, PSD, PP, PMDB. Portanto, quatro partidos pequenos e dois partidos grandes, sendo que nenhum deles poderia ser classificado como tendo um espectro de esquerda do ponto de vista ideológico e em sua maioria estão posicionados em pautas políticas mais próximas do que poderia ser denominado como direita. Curiosamente, os partidos que tiveram mais eleitas trans são dois partidos que posicionam mais a direita no cenário nacional atual, o PP e o PSDB, e que não possuem nenhuma experiência acumulada de pautas LGBT com visibilidade.
Um elemento interessante é observarmos as pautas políticas das campanhas das candidatas trans que foram eleitas. Temas LGBT aparecem em sua maioria, como formação e cursos para pessoas LGBT, violência contra mulher, liberdade religiosa, defesa de todas as formas de família, abusos e violências contra crianças, ética e transparência, preocupações da relação entre eleitores e políticos, causas relacionadas a cuidados com animais, turismo e diversidade. Observando as pautas das candidaturas eleitas e das não eleitas, percebe-se que os temas relacionados à diversidade e às experiências LGBT são os mais expressivos, independente de partidos políticos.
Embora nem sempre os temas pautados possam ser resolvidos ou materializados através da ação no âmbito da vereança, o que às vezes revela uma imprecisão de pautas e problemas a serem enfrentados, o que parece mesmo é que a pertença partidária não fez diferença na afirmação de pautas sobre a população LGBT, embora na materialidade das políticas públicas e de seus controles sociais o vínculo partidário faça toda diferença, como temos visto na experiência nacional. No entanto, o vínculo partidário fez toda diferença nas condições de eleição, uma vez que no Brasil o quociente eleitoral (QE) e partidário (QP) são muito distintos e buscam valorizar mais os partidos do que as candidaturas, ou seja, significa que o voto do eleitor é um voto que escolhe por determinado partido e posteriormente pelo candidato.
Assim, o que se define é a quantidade de vagas que um partido terá após a quantidade de votos que este mesmo partido acumulou, o que significa que uma grande quantidade de voto numa candidatura não implica sua eleição necessariamente, pois dependerá do QE e QP para o pleito final. Ou seja, embora os partidos políticos não sejam referências determinantes nem para as candidaturas e suas pautas nem para eleitores no âmbito local, as regras eleitorais, contrariamente a esta lógica, afirmam mais os partidos do que as candidaturas. Motivo pelo qual há várias candidaturas que foram eleitas com um número de voto bem mais baixo do que outras que apesar da quantidade de votos expressiva não alcançaram uma cadeira de representantes devido ao QE e QP.
A questão de extrema relevância nesse ano eleitoral foi de fato a quantidade das candidaturas trans e travestis diversificadas por partidos e regiões do país. Mesmo que menos de 10% das candidaturas tenham conseguido eleição e em sua maioria por partidos de perfil mais conservadores, só a visibilidade no processo eleitoral já demonstra um elemento importante e indicativo de por onde os movimentos sociais trans e travestis terão que agir.
Esta inovação, presente nesta última eleição, revela um interesse na participação política institucional de âmbito local por parte das travestis e transexuais, embora no país não existam políticas públicas de proteção aos direitos desta população nem tampouco ações programáticas e sistemáticas de contenção da violências e do extermínio da população trans, revelando um cenário com um número de assassinatos de pessoas trans e travestis dos mais elevados do mundo. Portanto, a visibilidade política destas candidaturas poderá deixar um saldo na cultura política bastante positivo.
Resta-nos saber se as representantes farão através de suas ações políticas como vereadoras pontes de coerência entre as pautas de suas candidaturas, seus manejos políticos como vereadoras e as demandas dos movimentos sociais trans e travesti. Esta possível coerência para a luta política dos direitos das pessoas trans e travestis no Brasil deverá ser observada e acompanhada de perto pelos movimentos sociais, pelas organizações políticas trans e travestis que em muito poderão incidir sobre a ação das novas vereadoras com as pautas dos direitos trans e travesti, a partir de 2017.
[1] Agradeço a colaboração generosa de Keila Simpson, travesti prostituta, atual presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) que cedeu dados do seu levantamento sobre as últimas eleiçoes e de Lohana Morelli, estudante de Psicologia da UFMG, que acompanhou as pautas trans durante o período das campanhas políticas.
[2] Coordenador do NUH – núcleo de direitos humanos e cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.