Texto do colaborador Daniel Cardinali*.
O STF – Supremo Tribunal Federal – , órgão máximo do judiciário brasileiro, deu início no dia 19 de novembro ao julgamento do Recurso Extraordinário nº 845.779, que trata do direito de transexuais a serem reconhecidos pelo gênero de autoidentificação, independentemente daquele atribuído ao nascer, especialmente no tocante ao uso de banheiros abertos ao público. É a primeira ação sobre o tema dos direitos transexuais a chegar ao tribunal que, em 2011, foi responsável por reconhecer de forma unânime a união homoafetiva, abrindo portas para o reconhecimento pelo Conselho Nacional de Justiça do casamento civil dois anos depois.
O caso analisado diz respeito a uma mulher transexual que foi retirada de forma constrangedora do banheiro feminino de um shopping pelos seguranças e, diante do nervosismo da situação e pela falta de outro espaço onde pudesse fazê-lo, terminou aliviando-se nas suas próprias roupas. Abalada com o episódio, processou o shopping por danos morais, tendo o juiz de 1ª instância considerado o pleito pertinente para determinar que lhe fosse paga uma indenização de quinze mil reais. O shopping, entretanto, recorreu e o Tribunal de Justiça (2ª instância) entendeu que a indenização não seria devida, sob o argumento de que não teria ocorrido dano moral, e sim “um mero dissabor”. Insatisfeita, a autora recorreu e o caso chegou, então, ao STF.
Em primeiro lugar, é importante compreender a relevância do julgamento. Mais do que decidir este caso específico, o STF vai formular um entendimento que deverá ser seguido pelos outros juízes e tribunais do Brasil. Para tanto, o STF irá elaborar uma tese jurídica geral que expressa a conclusão a que chegou sobre o tema e que vai guiar as decisões judiciais dali para frente em processos que tratem do mesmo tema. Assim, em última análise, o que está em jogo neste julgamento é o direito de todos os transexuais do Brasil a serem tratados socialmente de acordo com o gênero com o qual se identificam.
Para quem acompanhou o caso ao vivo pela TV Justiça chamava a atenção o fato de que na legenda que fica na parte do baixo do vídeo, em que se informam o número e as partes do processo que os ministros estão julgando, constasse somente o nome masculino de registro da autora. Ou seja, já de início o tribunal, que começava a se debruçar sobre o que poderia ser a sua primeira decisão reconhecendo os direitos de pessoas trans, o fazia com a violência de se referir a autora por um nome que expressa uma identidade que não é a sua. Seria o prenúncio de que as coisas não seriam assim tão simples como alguns poderiam pensar.
O relator do caso (responsável por apresentar o caso ao Tribunal e proferir o primeiro voto, que costuma assumir grande importância no resultado do julgamento) é o Ministro Luís Roberto Barroso, conhecido pelas suas posições progressistas. Antes de entrar no STF, por exemplo, o ministro foi o advogado responsável por levar ao tribunal temas como a união homoafetiva e o aborto de fetos anencéfalos, e, já na corte, por ter votado pela descriminalização do uso de maconha.
O seu voto, como seria de se esperar, foi a favor da mulher transexual, com passagens memoráveis em que reconheceu amplamente os direitos das pessoas trans, a sua situação de especial marginalização e estigmatização social e o papel primordial que tem o judiciário na garantia dos direitos fundamentais das minorias, que nem sempre encontram eco no legislativo (o que no Brasil de Eduardo Cunha é patente). Concluiu, portanto, que a autora tinha, sim, direito à indenização pelos danos morais sofridos. Por fim, e ainda mais relevante, o ministro propôs a seguinte tese jurídica: “Os transexuais têm direito a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público”.
Após o voto do ministro Roberto Barroso, o ministro Luiz Edson Fachin proferiu voto em que também se manifestou a favor do direito da mulher trans e das pessoas transexuais em geral. Se as credenciais progressistas do Ministro Fachin foram colocadas em xeque após a sua sabatina pelo Senado Federal, em que proferiu a afirmação pouco auspiciosa de que “não se deve heterossexualizar a homossexualidade”, aqui o ministro não decepcionou. Além de acompanhar o relator na defesa dos direitos das pessoas transexuais, o ministro Fachin votou no sentido de inclusive aumentar o valor da condenação para 50mil reais e – talvez tão relevante quanto – no sentido de corrigir as informações do processo para que delas constasse o nome social da autora, mostrando-se visivelmente incomodado com a presença exclusiva de seu nome de registro masculino.
Nem todos os ministros, entretanto, ficaram confortáveis com o andar da carruagem. Os ministros Lewandowski e Marco Aurélio, que representam parte da ala mais conservadora do tribunal, mesmo sem ter votado, deixaram claro que a decisão não seria unânime.
Primeiro, o ministro Marco Aurélio suscitou a discussão sobre a aparência da autora (se ela teria “aparência de mulher”), sob a premissa de que, se o tivesse, dificilmente teria sido incomodada por funcionários do shopping. Não fosse suficiente, o ministro sugeriu que o fato de ainda constar do processo o nome de registro masculino da autora, bem como a circunstância de ela ainda não haver alterado seu registro civil indicaria que o relato do ocorrido dificilmente seria verdadeira – e, em alguns momentos, até mesmo que a autora não seria uma mulher transexual. A postura de extremo desconforto do ministro Marco Aurélio pôde ser percebida ao longo de toda a sessão de julgamento. Em determinado momento, o ministro se referiu à cirurgia de transgenitalização como “mutilação” – sendo repreendido pelo ministro Luiz Fux quanto ao caráter “discriminatório” do termo. A posição do ministro Marco Aurélio sobre este caso é relevante, pois permite indicar os rumos de um outro caso importante apresentado ao STF e tratando dos direitos de pessoas transexuais. Isto porque o ministro Marco Aurélio é relator da ação que trata da possibilidade de alteração do nome e sexo registrais, independentemente de cirurgia de transgenitalização. Tal circunstância foi lembrada pelo ministro na sessão do dia 19 de novembro, que antecipou “vocês devem imaginar minha posição sobre o tema”. Mais um sinal de que a garantia dos direitos trans pelo STF não é tão certa assim.
Tornando a situação ainda mais desconfortável, o Ministro Luiz Fux indagou à advogada da autora se sua cliente havia se submetido à “cirurgia de redesignação” – sugerindo, assim, que a circunstância da autora ter um pênis pode ser levada em consideração no momento de decidir se ela teria o direito a ser reconhecida enquanto mulher.
Em seguida, o ministro Lewandowski pontuou que tinha medo de que a decisão do STF pudesse colocar em risco mulheres e crianças que utilizam o banheiro feminino, ponderando que a corte deveria se preocupar também com os direitos à intimidade e privacidade destas pessoas. O ministro Barroso refutou tal argumento imediatamente, destacando que o Direito já prevê mecanismos para coibir e punir pessoas que cometam condutas abusivas, já tendo destacado em seu voto que não se poderia negar direitos fundamentais às pessoas transexuais por um mero desconforto das outras pessoas.
Vale destacar que o argumento da necessidade de proteger as crianças de pedofilia e as mulheres do ataque de “homens com roupa de mulher” (a expressão foi utilizada mais de uma vez) é tão sensacionalista quanto eficiente. Foi com base nele que a cidade de Houston, no Texas, repudiou recentemente um projeto de lei que visava garantir direitos às pessoas trans. Deve-se lembrar, ainda, a imbricação da pedofilia com homossexualidade como recurso retórico para negar direitos aos homossexuais ao longo de décadas e o mito do negro como predador sexual para justificar as leis de segregação racial nos EUA. Nada de novo no front.
Apesar das discussões que tomaram forma nesse primeiro momento do julgamento, apenas estes dois ministros tinham votado. Após o voto do ministro Fachin, o ministro Luiz Fux pediu vista dos autos – ou seja, requereu que o julgamento fosse finalizado em momento posterior, pedindo “mais tempo” para elaborar seu voto e estudar o caso. O ministro justificou seu pedido de vista destacando a necessidade de “se ouvir a sociedade” diante de um “desacordo moral razoável”, tendo sido “aconselhado” pelo ministro Barroso a levar em consideração nessa sua reflexão que os direitos fundamentais de grupos minoritários não podem ficar submetidos à posição das maiorias, já que a democracia não se limita ao princípio majoritário. Na prática, isso significa que o término do julgamento pode levar, ainda, bastante tempo (a exemplo do julgamento sobre o financiamento privado de campanhas eleitorais, que ficou suspenso por mais de um ano em razão de pedido de vista).
O julgamento até aqui, entretanto,permite algumas reflexões importantes.
A primeira é a de que não se deve confiar que o judiciário ou o STF serão sempre os “heróis” das minorias diante de um legislativo “vilão”. A complexidade do mundo não comporta tais maniqueísmos. Os movimentos sociais que representam os direitos das minorias, diante de um legislativo marcado por Felicianos, Bolsonaros e Eduardo Cunhas, têm se voltado ao judiciário como espaço privilegiado de atuação política para a garantia de seus direitos, e o STF tem respondido de maneira bastante positiva a várias dessas demandas. Não se deve ter a ilusão, entretanto, que o STF tem uma capacidade e uma vontade inesgotável para garantir direitos fundamentais de grupos tão estigmatizados e para “meter a mão em arapucas” como é a questão do reconhecimento de gênero de transexuais – especialmente quando toca o tema do uso dos banheiros adequados.
O que se viu na sessão de julgamento foi uma verdadeira avalanche de senso comum e preconceito transfóbico, com raciocínios moralizantes e o uso de termos como “homem vestido de mulher” e “mutilação”. O desconforto em ter que lidar com temas “pouco dignos” como banheiros e transexuais e a falta de tato e domínio do tema foram evidentes. Embora possa parecer um truísmo a percepção de que os ministros do STF sejam homens e mulheres como quaisquer outros, inseridos numa sociedade altamente preconceituosa, ficou um alerta para qualquer um que busque sebastianismo judicial.
A capacidade do STF em tutelar grupos estigmatizados, ademais, é modulada pelo nível de estigmatização desses grupos. Proteger os direitos dos homossexuais, principalmente quando os direitos pleiteados são o de poderem formar uma família monogâmica e matrimonializada é coisa bem diferente de se proteger o direito de pessoas trans. Seria otimismo demasiado achar, portanto, que o nível de resistência as duas demandas seria o mesmo.
Não havendo segurança de que o STF irá atuar para proteger os direitos das pessoas trans nesse caso, o que resta fazer? A arena judicial é um importante espaço de luta política para a garantia de direitos, mas não deve jamais ser visto como a única esperança, já que ela pode falhar. Não se deve desconsiderar jamais as potencialidades e a importância das outras arenas, como a política tradicional dos parlamentos e partidos. Apenas a ampla mobilização é capaz de real transformação social, e a estratégia de reivindicação de direitos e mudanças jurídicas devem acometer simultaneamente todos os canais possíveis.
Num tom menos amargo, não é pouco reiterar o papel simbólico de legitimação que possui a circunstância de que os direitos de pessoas trans estejam sendo debatidos na mais alta corte do país, tendo sido objeto de algumas considerações bastante positivas por partes dos dois ministros que votaram e dos advogados que se assomaram à tribuna. A denúncia feita perante uma instância oficial do Estado, transmitida ao vivo na televisão, das diversas violações de direitos que acometem diariamente as pessoas trans, por si mesma, já possui um valor pedagógico que não deve ser desconsiderado.O processo, entretanto, ainda está em tramitação e, apesar dos sobressaltos de hoje, existe uma chance relevante de que o mesmo tenha um desfecho feliz.
O alerta para não confiar demais em uma única estratégia, entretanto, já está feito.
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* Daniel Carvalho Cardinali é advogado, mestrando em Direito Público pela UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O autor agradece enormemente a Wallace Côrbo pelas sugestões e comentários para a melhoria deste texto.