Nicarágua e a dança de horrores no enfrentamento ao COVID 19
por Humberto Meza*
Apesar da festividade do título, este não pode ser um texto otimista. É Muito menos uma descrição de boas práticas no enfrentamento da atual pandemia. Pode ser lido como uma denúncia ou apenas como expressão da necessidade de expor uma sequência de erros criminosos que o regime Ortega, que governa a Nicarágua, um dos países mais pobres da América Latina, tem cometido desde o começo da disseminação do vírus SARS-CoV2.
Há pouco mais de dois anos, a Nicarágua voltou à pauta da mídia internacional em razão da brutal violência com que a ditadura, comandada por Daniel Ortega e sua esposa Rosário Murillo, respondeu às manifestações populares contra a reforma da Previdência. O Sistema Interamericano e as principais entidades de direitos humanos do planeta acusam Ortega e Murillo por crimes contra a humanidade, pois a repressão policial deixou como rastro ao menos 320 manifestantes assassinados e mais de 100 presos políticos que foram e são sujeitos a tortura solidamente documentada. Essa brutalidade incluiu o assassinato da médica brasileira, Rayneia Lima. Deve-se dizer que nenhuma das mortes que ocorreram em 2018 foi investigada ou se tornou objeto de ação judicial.
Trata-se de uma prática no mínimo paradoxal ao julgar pela narrativa e apostas políticas do regime desde seus primórdios. Daniel Ortega fora eleito presidente nas eleições de 2006, isto é, mais de uma década depois de extinta a Revolução Popular Sandinista. Já na campanha eleitoral, o seu partido Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) liderava no Congresso a reforma penal para criminalizar o aborto em todas as suas formas. Uma vez iniciado o governo, em 2007, Ortega aprofundou sua narrativa “pró-vida”, consolidada com os lemas oficiais do governo “cristão, socialista e solidário”. Narrativa que aprofundou as confrontações já acumuladas entre os movimentos feministas, ao ponto que diversas lideranças feministas foram presas durante a brutal repressão de 2018.
As pessoas e a sociedade em geral ainda não se recuperaram do trauma dessa violência ditatorial de dois anos atrás. Mas já é possível vislumbrar o circo de horrores que pode ocorrer por efeito das decisões equivocadas do governo para enfrentar a pandemia da COVID-19. Desde a primeira semana de março, quando se confirmaram os primeiros casos positivos na América Central (começando pela vizinha Costa Rica), o governo Ortega-Murillo optou por fazer exatamente o oposto do que a OMS recomenda.
A primeira decisão foi convocar uma manifestação pública, realizada em 14 de março, para festejar “a saúde e a preparação do bom governo” para o enfrentamento à pandemia. Milhares de funcionários públicos foram obrigados a participar de uma passeata nas principais ruas da capital Manágua sem nenhuma medida de proteção e sem que nenhuma autoridade pública de alto escalão estivesse presente.
Deve-se dizer, aliás, que há mais de um mês Daniel Ortega não foi visto publicamente, nem sequer para dar uma declaração ou participar de coletiva de imprensa para apresentar os planos do estado perante a crise. As únicas declarações do governo são transmitidas em comunicados oficiais ou nas locuções diárias da Rádio Nacional feitas por Rosário Murillo, vice-presidente e primeira dama, todo dia ao meio-dia.
Um desses comunicados oficiais informa que as fronteiras não serão fechadas, que as aulas em escolas e universidades ou atividades comerciais serão mantidas e que não vai haver quarentena. Após a passeata de 14 de março, foram tornadas públicas novas decisões como, por exemplo, o anúncio do “Plano Verão” para comemorar a Semana Santa e “receber turistas”, a convocatória a um ato massivo com “presença obrigatória” de docentes e alunos para festejar os 40 anos da Alfabetização e até mesmo a realização de um “Carnaval” na turística cidade de Granada e a eleição da “Garota Verão” em Manágua.
De acordo com um levantamento do Sistema de Integração da América Central (SICA), a Nicarágua é o único país que não cumpre as medidas básicas da OMS, particularmente as de quarentena, suspensão de aulas, restrições de eventos públicos, restrição de vôos e de ingresso de estrangeiros. O país apenas realiza atividades de vigilância nas fronteiras e protocolos epidemiológicos em nível nacional.
Para além dessas decisões equivocadas há uma série de condições precárias de saneamento nos bairros urbanos junto a um forte secretismo e falta de informações claras no Executivo sobre os planos de prevenção para enfrentamento da COVID no país. Durante mais de duas semanas, o governo não tinha confirmado sequer um caso positivo, mesmo quando a região já tinha contabilizado 259 casos e 4 mortos, com destaque para Panamá com 137 casos e a Costa Rica com 87.
Nas locuções diárias de rádio, nos dias 19 e 20 de março, Murillo informou que havia os primeiros e “únicos” dois casos positivos na Nicarágua. Ao fazer isso, expôs as condições de um dos infectados ao dizer publicamente que o tratamento “seria complicado”, pois o paciente é também soropositivo. O paciente falecera em 26 de março, mas por um lado do Ministério da Saúde ativou mais estigma ao afirmar que a morte fora particularmente pela sua condição de soropositivo. Dessa forma, Murillo e as autoridades da saúde não somente violaram a lei que proíbe as exposições de pessoas soropositivas, como tenta restar importância ao forte contágio e letalidade do coronavirus.
Já então, nicaraguenses que tem relações com profissionais da saúde difundiam nas redes sociais a notícia que de que o país teria, na realidade, muito mais do que os casos positivos informados pelo Estado. Circularam boatos de que uma diretora de um hospital público de Manágua fora demitida por divulgar diagnósticos de COVID, que enfermeiros e doutores são obrigados a não usar máscaras nem álcool gel para “não criar pânico” e que atestados de óbito estão sendo alterados para não haver registro de morte por COVID. Essas são informações nem sempre confiáveis que proliferam num cenário onde a informação pública, clara e segura é inexistente.
Como não há um plano governamental de resposta a COVID, o que resta é que cada uma, cada um cuide de si. A notícia de que um primeiro caso positivo havia sido confirmado levou as pessoas a desabastecer os mercados. E, nesse momento, cada pessoa ou família decide como vai se prevenir. Nesse cenário de horrores, não há como ser otimista. A pandemia pode ser catastrófica na Nicarágua. O que resta é a denúncia internacional, como a que foi apresentada há poucos dias perante a OMS por uma coalizão de movimentos sociais e partidos opositores a Ortega. Resta ainda a expectativa de que um dia o regime que não só elimina fisicamente opositoras e opositores, mas também coloca em risco vida dos seus cidadãos chegue ao fim, e que quem o lidera seja efetivamente punido.
*O autor é nicaraguense, cientista político e pesquisador da UFRJ
Saiba mais sobre a situação na Nicarágua:
Irresponsabilidad de Ortega podría acarrear catástrofe epidémica – Diario las Americas
Desde Nicaragua: un viaje al país del “aquí no pasa nada”. – Salud con lupa