‘Ideologia de gênero’ como justificativa para arbítrio foi instalada no Disque 100
Em março de 2021, organizações da sociedade civil e um núcleo acadêmico enviaram ao Perito Independente das Nações Unidas sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero e Direitos Humanos um balanço das ofensivas antigênero em curso no Brasil. Compõem esse grupo de trabalho o Observatório de Sexualidade e Política (ABIA), a Ação Educativa, a ABGLTT, a ANTRA, o CLADEM-Brasil, IPAS Brasil, a CONECTAS e o NUH (Núcleo de Estudos em Sexualidade da UFMG). O balanço foi atualizado e publicado em português na forma do relatório “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social”.
O relatório examina um conjunto de diretrizes e ações de política pública adotadas desde 2019 em várias áreas da administração federal com o objetivo de instalar visões antigênero na gestão governamental. Identifica, por exemplo, entre as muitas diretrizes e ações adotadas e implementadas pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), um processo de higienização e distorção conceitual e semântica da taxonomia utilizada para organizar e qualificar as denúncias de violação de direitos humanos que chegam ao Ministério via Disque 100.
Em 2020, iniciou-se o processo para que as duas linhas existentes, o Disque 100 e o Disque 180, fossem fundidas em um único número (Disque DH). Nesse processo, as definições que enquadram e organizam as denúncias foram substancialmente alteradas. No novo “Manual para uma Taxonomia dos Direitos Humanos”, elaborado para orientar o trabalho da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (encarregada de supervisionar o funcionamento da nova linha direta), o termo “gênero” foi abolido por completo e junto com ele as terminologias homofobia e transfobia. Mais grave ainda, a depuração fixou a noção espúria de “ideologia de gênero” como categoria de classificação para descrever motivação da violação institucional. Essa inaceitável reconfiguração semântico-conceitual foi complementada por um investimento importante na formação de agentes estatais de outros níveis de governo, especialmente conselheiros tutelares, para incorporação dessas novas “concepções”.
Em novembro de 2021, uma professora e um professor foram objeto de denúncia e investigação policial após terem sido denunciados como propagadores de “ideologias”, inclusive gênero e comunismo. Os dois casos foram objetos de matérias da imprensa. O primeiro aconteceu em Salvador envolvendo uma professora de filosofia que leciona sobre gênero, racismo e diversidade no Colégio Thales de Azevedo. Algumas semanas mais tarde, o diretor de uma escola municipal de Resende (RJ) foi também intimado a depor na polícia para justificar “exposição de alunos a conceitos comunistas” e ‘ideologia de gênero”.
Investigação jornalística feita pelo O Globo sobre o caso de Resende trouxe a luz evidências inequívocas de o MMFDH mobilizou a Polícia Civil, após uma denúncia ter sido feita pelo Disque 100. A matéria comprova, portanto, que a categoria taxonômica “ideologia de gênero” está, de fato, sendo acionada como acusação de violência institucional contra professores que tratam de temas de gênero, racismo e desigualdades sociais nas escolas. No caso da Bahia embora ainda não haja evidência pública, vários sinais indicam que a denúncia também foi feita pelo mesmo canal. É importante mencionar aqui que que acusação de “comunismo’ implícita nas duas denúncias não é acidental. Como bem analisa Sonia Corrêa, em artigo publicado alguns meses atrás no portal Outras Palavras:
“Desde sempre, a fórmula “ideologia de gênero” esteve associada ao marxismo. Essa vinculação já estava presente no livro de O’Leary, Agenda de Gênero publicado em 1997 e no primeiro documento latinoamericano de repúdio à “ideologia de gênero” elaborado por bispos peruanos em 1998. Sua expressão mais evidente e recente é, contudo, o O livro negro da nova esquerda, de Agustin Laje e Nicolás Marquez (2016), amplamente lido no Brasil. O argumento central desses escritos é que gênero é uma versão mascarada de marxismo…”
Voltando aos casos, o recurso institucional a essa categoria não fundamentada de violência fere, abertamente, o conteúdo de decisões recentes do STF sobre legislações estaduais e municipais que visavam abolir o ensino de gênero e a “ideologia” na educação pública. Além disso os casos mostram que a categoria está sendo usada como instrumento de arbítrio, coerção e censura estatal. Em entrevista à Agência Pública, o professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marco Aurélio Prado, analisou mais a fundo esse significado e efeito:
“As perseguições acontecem há muito tempo, mas agora muda o cenário porque eles criaram um canal pré-jurídico. O caso de Resende exemplifica bem. O Ministério foi direto à delegacia de criança e adolescente de Resende. (…) Uma vez que você chama diretor e professora para dar depoimento em uma ocorrência aberta por uma denúncia anônima do Disque Direitos Humanos, acabou o debate de gênero naquela escola, né? Dessa vez eles conseguiram arrumar um fluxo institucional do próprio Estado para criminalizar professores. Isso mostra a ofensiva como política de estado.”
Adicionalmente, a reconfiguração da taxonomia do Disque 100 também tem impactos sobre racionalidade da coleta de dados. Por exemplo, a violência motivada por “Orientação Sexual” está agrupada no Manual com “Ideologia de gênero”, sem que fique claro como será feira a distinção entre elas. Isso terá impactos deletérios sobre política de coleta e análise de dados sobre violações de direitos humanos. Segundo o relatório enviado ao Perito Independente das Nações Unidas sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero e Direitos Humanos:
“Essas alterações prejudicam, ou mesmo impossibilitam, a comparabilidade dos dados coletados pelas linhas diretas antes e depois de 2020. (…) A alteração da classificação das violações de direitos humanos produzida pelo MMFDH tem efeitos nos níveis locais em termos de entraves potenciais para planejamento, articulação e implementação de ações de enfrentamento às mais diversas formas de violência e de violações de direitos humanos. Entre os efeitos imediatos nos territórios locais, estão a descontinuidade ou reelaboração de ações formativas das redes locais, especialmente no que se refere a compreensão das tipificações e categorizações de violências e violações de direitos humanos e também uma possível interrupção do diagnóstico e planejamento de ações, uma vez que a medida altera a organização de dados que compõem a série histórica de análise.“
Para concluir, a reformulação da categorias de classificação de violações, a depuração arbitrária de conteúdos legitimados conceitual e juridicamente e, sobretudo, a mutação da categoria acusatória de “ideologia de gênero” em instrumento de arbítrio constituem fatos gravíssimos. Exigem escrutínio por parte das instituições responsáveis pelo cumprimentos dos parâmetros constitucionais nas diretrizes das políticas públicas, em especial no campo dos direitos humanos. Muito positivamente, o caso de Resende levou a questão para o debate público amplo e a nova taxonomia foi objeto de repúdio em artigos de imprensa, em postagens nas redes sociais, num editorial de O Globo e em nota pública do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que:
“… reafirma a importância e a necessidade da garantia da pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas como valores fundamentais de um Estado Democrático de Direito e reitera a obrigação do Estado na prevenção de situações análogas, garantindo a valorização das/os profissionais da educação, o respeito à liberdade, o apreço à tolerância, bem como a vinculação entre a educação escolar, o trabalho, as práticas sociais e os direitos humanos”,
A seguir oferecemos uma compilação de análises e matérias sobre o caso da “Ideologia de Gênero “ no Disque 100.
Relatório “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social” – SPW
Professora da Bahia recebe intimação policial após queixa de aluna sobre conteúdo esquerdista – Folha de São Paulo
Disque 100: manual criado por ministério de Damares prevê denúncias ‘por ideologia de gênero’ – O Globo
Damares promove ataque a política de direitos humanos consolidada – Editorial O Globo
“Ideologia de gênero” no Disque 100 pode criminalizar professores, diz pesquisador – Pública
Professores relatam vigilância em aulas remotas na pandemia – Pública
Imagem: detalhe de pintura de Jean Michel Basquiat