“Atrasem a gravidez” foi a recomendação do Ministério da Saúde sobre o número de morte materna ter mais do que dobrado de 2020 para 2021.
Em julho de 2020, grupo de investigadoras/es em saúde reprodutiva publicou artigo no International Journal of Gynecologists and Obsetricians (leia em português) sobre a elevada incidência de mortes maternas decorrentes da COVID-19 no Brasil, que então possuía uma média 3,4 vezes maior em comparação ao resto do mundo. Em abril de 2021, um estudo do Observatório Obstétrico Brasileiro COVID-19 (OOBr Covid-19), divulgado pela Folha de São Paulo no dia 14 de abril, informa que nas primeiras 43 semanas de pandemia em 2020 foram registradas 449 mortes no Brasil, aproximadamente 10 mortes a cada semana. Já nas 13 primeiras semanas de 2021, registraram-se 289 óbitos, que significou um crescimento de mais de 100% (em torno de 22,2 mortes por semana).
Quase um terço dessas mortes maternas podem ser atribuídas à falta de assistência adequada, em particular pela falta de leitos em UTIs e intubação. Esse quadro é especialmente deletério considerando as desigualdades regionais. No Pará, por exemplo, quase metade (46%) das grávidas que morreram por COVID-19 não tiveram acesso a cuidados intensivos. E registram-se situações dantescas, como a administração criminosa de hidroxicloroquina inalável em grávidas e puérperas, que pode ter levado à morte de algumas, no Instituto da Mulher e Maternidade Dona Lindu, em Manaus. A “técnica experimental”, mais bem comparada a um experimento nazista, foi realizada por um casal de médicos que apoiam o “tratamento precoce” e violou todas as normas éticas e boas práticas nacionais e internacionais. Segundo apuração da Folha de São Paulo, somente duas pacientes assinaram termo de consentimento, das cinco que foram submetidas à nebulização, e quatro morreram. Ainda mais aterrorizante é o fato de que vídeo de uma das pacientes durante a nebulização está sendo utilizado como propaganda do tratamento precoce mesmo após a sua morte por membros do Executivo nas redes bolsonaristas. O ministro da Secretaria-Geral da Presidência Onix Lorenzoni foi um dos principais disseminadores da peça, que já teve mais de 132 mil visualizações.
Frente a essa obscenidade, o Secretário de Atenção Primária à Saúde Raphael Câmara, – conhecido por suas posições racistas, contra os direitos sexuais reprodutivos, o repúdio ao termo ‘violência obstétrica’ – não fez senão repetir o que havia dito Marcelo Castro, Ministro da Saúde do governo Dilma, quando eclodiu a epidemia de zika no Brasil em 2015 e as relações entre o vírus e a microcefalia haviam se estabelecido: que as mulheres se virem para não engravidar.
Na oportunidade, Dr. Castro declarou que “sexo é para amadores e reprodução é para profissionais”. Sonia Corrêa, em artigo sobre a relação entre a crise sanitária então instalada e os direitos reprodutivos, observou que essa declaração infeliz obliterava as péssimas condições de saneamento e os problemas de funcionamento e eficácia do SUS – que, em grande medida, explicavam a escala e efeitos do surto de zika – e, ao mesmo tempo, reiterava a ideologia clássica que, de um lado, atribui às mulheres a responsabilidade exclusiva pela reprodução e, de outro, restringe a sua autonomia sexual e reprodutiva.
Corrêa também apontou para o contraste flagrante entre essa declaração e a posição manifestada pelo Ministro da Saúde da Colômbia em relação aos efeitos reprodutivos da zika e o direito à interrupção da gravidez no contexto da crise. Essa discrepância seria posteriormente confirmada pelo estudo coordenado pela London School of Economics, cujos resultados foram publicados no artigo “Analysing the intersection between health emergencies and abortion during Zika in Brazil, El Salvador and Colombia”. Essa pesquisa informa que não houve investimento substantivo do Ministério da Saúde ou das Secretarias estaduais e municipais de saúde para ampliar o acesso a contraceptivos nas áreas mais afetadas durante a epidemia de zika no Brasil. Tampouco se registrou um debate institucional decente sobre a possibilidade de interrupção da gestação numa situação de emergência sanitária reprodutiva. Todos os registros e debates sobre a defesa da autonomia das mulheres foram promovidos por organizações feministas.
É evidente que esse padrão deletério não apenas se repete hoje como se vê muito agravado. O número excessivo e crescente de mortes maternas registradas no Brasil desde 2020 deve ser contundentemente atribuído à política de negligência deliberada na resposta à COVID-19 que foi adotada pelo atual desgoverno e, pelo menos em alguns casos, o óbito foi causado pela política criminosa do ineficaz “tratamento precoce”. Contudo, pouco sabemos sobre quais têm sido os impactos da pandemia sobre o número de abortos clandestinos e inseguros e seus efeitos sobre a saúde e vida das mulheres. O caso da menina de 13 anos, vítima de estupro e grávida de 31 semanas – em condições decentes poderia ter tido acesso a um aborto legal – que morreu em Medicilândia (PA) por complicações da COVID-19 é, nesse sentido, apenas a ponta de um iceberg que começamos a explorar.
Imagem: Isma Gul Hasan, Quarantzine 03