Ainda dentro do Simpósio sobre Aborto realizado na Academia Nacional de Medicina sob a organização do Acadêmico José Gomes Temporão, Ministro da Saúde de 2007 a 2011, e expert no assunto foram debatidos os aspectos históricos da criminalização do aborto.
Para tal, foi convidada a Profa. Sonia Corrêa, pesquisadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch – [SPW], em inglês).
A pesquisadora afirma que as leis que criminalizam o aborto, por serem autoritárias, coagem as mulheres. Nenhuma mulher deveria ser obrigada a seguir com uma gravidez indesejada. Por outro lado, as leis que legalizam o aborto são democráticas porque possibilitam o exercício de um direito.
A Profa. Sonia Corrêa citou a criminalização do aborto como paradoxo da modernidade A doutrina religiosa se tornou um parâmetro tão determinante dos debates contemporâneos sobre aborto, especialmente após a publicação da Encíclica Humanae Vitae em 1968, que isso obscurece um traço crucial da criminalização da interrupção da gravidez: as leis penais hoje vigentes foram, de fato, adotadas pelos primeiro estados modernos e não são tributárias da doutrina religiosa, mas estão inscritas em lógicas seculares de disciplinamento das condutas sexuais e reprodutivas das mulheres. Sem dúvida, na trajetória ocidental das normas sobre sexualidade e gênero tem um peso milenar a doutrina e o imaginário cristãos acerca da sexualidade feminina e da maternidade. A doutrina Católica sobre o tema oscilou muito ao longo da história e o aborto só seria definido dogmaticamente como um pecado muito grave (quase imperdoável) na segunda metade do século 19. Àquela altura, regras de criminalização — adotadas após as ditas revoluções modernas e radicalmente seculares – estavam gravadas em leis das metrópoles europeias e haviam sido transportadas para as colônias e contextos pós-coloniais. Essas regras estavam, por exemplo, gravadas no Código Napoleônico de 1810, cuja inspiração foi a lei romana pagã (que também criminalizou o aborto) e que influenciou diretamente as leis penais adotados pelos países latinos americanos pós independência, inclusive o Código Penal de 1830 no Brasil. Mas é preciso se referir também ao Código Penal inglês de 1861 que se ramificou rapidamente através do império britânico na Ásia, África, Caribe e Oceania. O Código Penal imperial brasileiro – à diferença das Ordenações Filipinas (fortemente influenciadas pelo direito canônico) que o precederam – tipificou o crime de realizar o aborto em outrem, mas não incriminou as mulheres que praticam o auto –aborto. Já a reforma penal de 1890, elaborada por elites políticas firmemente laicas e, não raramente anticlericais, criminalizou as mulheres. Não o fez por razões de ordem religiosa, mas para responder as demandas dos novos cientistas da regulação social, especialmente os criminologistas vinculados ao campo jurídico e também à biomedicina. Esse é dos muitos paradoxos da modernidade. As revoluções e reformas de regimes políticos dos séculos 18 e 19 – pautadas pela laicidade e princípios liberais da igualdade e liberdade – impuseram restrições à habilidade das mulheres de tomar decisões razoáveis sobre sua vida sexual e reprodutiva. Um exame mais completo desse paradoxo exige uma discussão mais longa.
Aqui de maneira breve a Profa. Sonia Corrêa recorre ao historiador Thomas Laqueur, cujos estudos mostram como as descobertas e representações da biologia moderna produziram o modelo de “dois sexos”, radicalmente diferentes. A diferenciação moderna e essencialista dos gêneros fez das mulheres seres sexuais incontroláveis e, portanto, incapazes de participar da esfera pública, cujo papel e destino seria a gestão privada da reprodução. Nessa fórmula não há lugar para decisões razoáveis e autônomas sobre a vida reprodutiva. Contudo, como bem sabemos, os paradoxos e contradições são traços da experiência política e social das modernidades. Sendo assim, não muito depois de adotadas a normas que restringem e criminalizam o aborto (e em seguida tecnologia contraceptiva consideradas obscenas) seriam contestadas – na Europa e EUA por socialistas utópicos e pioneiras socialistas do século 19 e começo do século 20. As primeiras reformas legais de descriminalização do aborto ocorrem sob impacto dessas primeiras lutas pelo direito das mulheres a ‘controlar os nascimentos” (birth control): a reforma legal de 1920 na União Soviética em que a feminista anarquista Emma Goldman teve um papel central e a reforma legal de 1926 no estado de Yucatán no México, impulsionada pela passagem de Margareth Sanger pelo país. Faremos um salto histórico até os anos 1950, sem esquecer, porém, que entre um momento e outro a lei soviética foi praticamente suspensa quando Stalin chegou ao poder em 1924 e que no contexto do nazi-fascismo o aborto forçado foi utilizado como estratégia eugênica e campo de experimentação, uma história que não deve ser esquecida.
Assim, a Profa. Sonia Corrêa traçou o panorama histórico da criminalização do aborto. Devemos lembrar que o aborto é considerado crime contra a vida humana no código penal brasileiro desde 1940, prevendo inclusive detenção de um a três anos para a mulher que o fizer, salvo em caso de violência sexual e risco de morte para mãe. Em 2012, foi votada no Congresso a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, descriminalizando também o aborto em casos de feto anencefálico – descrito ali como “parto antecipado para fim terapêutico”.
Foi lembrado ainda, que o aborto inseguro (clandestino) é responsável por 25% das mortes maternas na América Latina, e a maioria das mulheres que morrem pertencem às classes mais pobres. “A criminalização do aborto é a criminalização da pobreza”, afirmou a pesquisadora.
O Uruguai e a África do Sul são países onde o aborto é uma prática legalizada. Nesses países, a taxa de morte de mulheres por consequência do aborto é quase zero. “A África do Sul está fazendo uma campanha para que a descriminalização aconteça em todo o continente. Onde o aborto é legal, se dá a oportunidade de escolha para a mulher. Faz quem quer”.
Foi citado ainda, que o recente e polêmico Projeto de Lei nº 5069/2013, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), é considerado um retrocesso para o País. Segundo os debatedores, este projeto agrava a criminalização do aborto e é inconstitucional.
Segundo a Pesquisadora Sônia Corrêa, este projeto viola tanto conquistas históricas das mulheres nos direitos sexuais e reprodutivos, como o direito ao atendimento à saúde.
A proposta prevê impedir a interrupção da gravidez em casos de estupro, inviabilizando um direito das mulheres garantido pelo Código Penal desde 1940, e também penaliza o profissional da área da saúde que tentar agir para preservar o bem-estar da mulher antes que as vítimas façam exame de corpo de delito e boletins de ocorrência para comprovar a violência sexual. O projeto também impede a divulgação de métodos abortivos.
Novamente, lembramos que a conclusão unânime é que para diminuir as mazelas do aborto clandestino, o mesmo deve ser descriminalizado.