por Fábio Grotz
A audiência pública da ADPF 442, promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para debater a ação que questiona a constitucionalidade da criminalização do aborto no Código Penal, ocorreu em Brasília nos dias 3 e 6 de agosto. Antecedida por clima tenso e pela tradicional retórica inflamada e enfurecida – desta feita, com ameaças de morte — dos setores contrários à pauta, os debates representaram um importante capítulo nas jornadas que há décadas se organizam, por distintos caminhos democráticos, pelos direitos reprodutivos das mulheres.
Foram mais de 60 expositores. Entre os favoráveis à descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, a professora Débora Diniz (UnB), também diretora da Anis – Instituto de Bioética, organização que assina a ADPF junto com o PSOL, destacou que o aborto é uma prática comum e disseminada entre as mulheres brasileiras. De acordo com Diniz, que trouxe o exemplo de Ingriane Barbosa, 30 anos, morta em maio em Petrópolis (RJ) por complicações de aborto inseguro (veja uma compilação), a prática “não é uma questão de prisão, mas de cuidado, proteção e prevenção”. A professora da UnB citou a Pesquisa Nacional de Aborto de 2016, cujos dados mostram que a cada minuto uma mulher aborta, não raro em condições insalubres que levam à morte. “Ela morreu com um talo de mamona no útero. É mãe de três filhos e o que se sabe é que ela já tinha feito um aborto. Nós perdemos, como Estado, uma oportunidade de prevenir o segundo aborto e certamente de ter Ingriane viva. É na rota crítica de uma mulher que faz aborto que podemos e devemos apresentar medidas de prevenção. A criminalização do aborto matou Ingriane e deixou seus filhos órfãos”, afirmou Débora Diniz.
O caso de Ingriane traz à tona não apenas os conhecidos efeitos deletérios da criminalização sobre as mulheres e a sociedade brasileiras, mas também, e talvez sobretudo, ilumina os enormes obstáculos que cercam o tema e, muitas vezes, impedem que a legislação seja encarada com lucidez e à luz de princípios constitucionais incompatíveis com o tratamento penal.
O plenário do Supremo Tribunal Federal é, ele próprio, ilustrativo das sinuosas rotas que a política do aborto tem percorrido. Há alguns anos, o debate sobre o direito ao aborto deteriorou-se no Brasil com o fortalecimento de setores dogmáticos e radicais nos espaços político-institucionais, sobretudo o Congresso, e com as condições cada vez mais adversas de debate democrático sobre ao assunto. O crescimento dessas forças, consolidado com a restauração conservadora, tornou ainda mais improvável o tratamento legislativo do tema a partir de uma perspectiva de direitos humanos. Diante de um Congresso hostil e desprovido de fôlego progressista para tocar projetos já existentes de descriminalização do aborto, bem como de um Executivo igualmente avesso, o caminho do litígio judicial pelo direito ao aborto tornou-se, portanto, a rota possível. No final de 2016, mesmo com a restauração conservadora em plena vigência, a 1ª Turma da Corte, tratando da concessão de um habeas corpus para acusados de praticar ilegalmente aborto, produziu uma opinião em favor da descriminalização da prática. Embora com efeito apenas para o caso em julgamento, a opinião representou uma inflexão nos termos do debate. O STF já tinha se posicionado, em 2012, favorável às demandas dos direitos das mulheres, quando reconheceu o direito à interrupção da gestação nos casos de feto anencéfalo. Antes disso, em outra decisão histórica, de 2008, liberou a pesquisa com células-tronco, discordando da suposição de que a vida inicia-se no momento da concepção. Para a Corte, o direito à vida aplica-se a partir do nascimento.
Os setores contrários sustentam a defesa da vida desde a concepção. É certamente um olhar que merece ser considerado do ponto de vista da pluralidade do debate, mas que pode e deve ser interrogado. Primeiro, porque a Constituição de 1988 não define a vida desde a concepção. Segundo porque os movimentos de defesa da descriminalização do aborto não questionam a existência do embrião e do feto, cujos interesses são legítimos: o que está em jogo é a limitação da autonomia da mulher sobre seu corpo, que desconsidera exatamente a sua trajetória biográfica.
É importante ressaltar que demandar ao STF que opine sobre a matéria é um caminho genuinamente democrático, pois cabe à Corte observar e proteger a Constituição, que é clara na consagração do direito à dignidade, liberdade, privacidade e intimidade de toda e qualquer cidadã (e cidadão). Ao contrário do que alegam setores antiaborto ao examinar a contradição entre a lei penal vigente e esses princípios, a Corte não estará usurpando as atribuições do Poder Legislativo. Conforme observou a advogada Cristina Telles, da Clínica de Direitos da UERJ em artigo publicado na Folha de São Paulo:
“A separação de Poderes e a compreensão do regime democrático no Brasil, assim como na maior parte do mundo, não são contrárias ao exercício do chamado controle de constitucionalidade de leis por um Tribunal Constitucional ou Corte Suprema. Entende-se, em suma, que esse controle é peça-chave para conter abusos ou falhas na representação política, assim como para garantir direitos fundamentais de grupos historicamente subordinados.”
Em contraste com argumentos razoáveis como esse, afetos enfurecidos, palavras de ódio e impropérios compõem a retórica dos setores que se intitulam “pró-vida” nas suas intervenções no debate. Vale lembrar aqui que pessoas ou grupos alinhados com essas forças vêm, desde de maio, ameaçando de morte a professora Débora Diniz (veja uma compilação). Dito de outro modo, essas forças clamam pelo direito à vida do embrião vociferando ameaças de morte. Contra esse pano de fundo, a audiência pública dos dias 3 e 6 de agosto constituiu um chamado à sensatez, sobretudo com a exposição de dezenas de vozes pautadas em argumentos realistas, qualificando a discussão numa perspectiva que contesta e desqualifica as notícias fake e distorções sobre o tema turbinados pela comunicação e redes sociais digitais.
Por outro lado, no curso da audiência, chamou atenção as diferenças de pontos de vista entre representantes religiosos que falaram do tema. Embora a maioria dos expositores religiosos tenha se manifestado contrária à descriminalização, houve dissenso. De um lado, essa diferença de visão foi manifestada por vozes dissidentes das igrejas cristãs como a pastora luterana Lusmarina Garcia, que não só defendeu ardorosamente a laicidade como fundamento da liberdade religiosa, como sublinhou com veemência o caráter androcêntrico e patriarcal das normas religiosas que condenam radicalmente o aborto (clique aqui para assistir à fala da pastora), seja manifestado por vozes não cristãs, como as visões apresentadas pelo rabino Michel Schlesinger e o imã mulçumano Mohsin Ben Moussa, as quais nos dizem que doutrinas judaica e islâmica com relação ao aborto são muito mais flexíveis que o dogmatismo extremo e, quase sempre virulento, levado à audiência pelo catolicismo e evangelismo (Clique aqui para assistir outras lideranças religiosas que também se manifestaram favoráveis à descriminalização).
Em resumo, o que a ADPF 442 propõe, e seu caminho ainda é longo e mesmo imprevisível até a decisão final do plenário do STF, é olhar para o tema com serenidade. Para tanto, a argumentação sustenta a violação dos direitos fundamentais das mulheres, sobretudo a autonomia e a integridade física e psíquica. Além disso, chama atenção para os efeitos que a desigualdade provoca, na medida em que a interdição legal, num país com abissal disparidade social, coloca em vulnerabilidade as mulheres de camadas mais pobres, sem dinheiro para métodos seguros e salubres, conforme o caso de Ingriane Barbosa reitera. Aquelas com algum recurso financeiro conseguem interromper a gestação com razoável segurança. Ingriane é mais uma mulher a ingressar no obituário que, entre 2000 e 2016, registrou 4.445 mulheres mortas por abortamento inseguro, conforme dados do Ministério da Saúde. De 2008 a 2017, mais de duas milhões de mulheres foram internadas por complicações de abortamento, ao custo de R$ 500 milhões (veja uma compilação sobre o caso).
A ADPF 442 é, portando, uma aposta razoável num cenário de regressão autoritária e polarização: um recurso pacífico e democrático, que busca garantir direitos e proteger a vida das mulheres. A opção preferencial pela lei penal e ameaças de morte não contribuem para uma vida democrática. Tendo em vista os ataques sistemáticos feitos contra a legitimidade do STF para aferir a constitucionalidade dos artigos do código penal que criminalizam o aborto, é fundamental reafirmar que esse é, sim, um caminho legítimo, não apenas porque três países revisaram suas legislações punitivas por decisão de cortes – EUA, Canadá e Colômbia – mas porque, em muitos outros casos, tribunais superiores revisaram e reconheceram a constitucionalidade de reformas que deixaram para trás criminalização da interrupção da gravidez indesejada por demanda das mulheres até uma certa idade gestacional (em geral 12 semanas). Os dados, argumentos, realidades levados à audiência pública pelas vozes que defendem a descriminalização oferecem ao STF uma base ampla e consistente para que a Corte tome uma decisão refletida e razoável sobre a matéria atualizando uma norma adotada há quase oitenta anos atrás, durante o Estado Novo.