Em meio à restauração conservadora, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal brasileiro (formada por cinco dos 11 juízes que compõem o STF) surpreendeu, no dia 29 de novembro, com um voto histórico a favor da descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação. Embora se trate de um voto pontual, que vale apenas para o processo em questão, ele abre um precedente histórico. A decisão é comemorada pelo campo democrático que defende os direitos reprodutivos, por outro lado, evidentemente, a reação conservadora se organiza na Câmara Federal.
Do que se trata – Em agosto de 2016, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu habeas corpus determinando a soltura de cinco profissionais acusados de prática ilegal de aborto numa clínica de Duque de Caxias, no estado Rio de Janeiro. O habeas corpus foi concedido no entendimento de que os réus são primários, têm bons antecedentes, trabalho e residência fixa, sem oferecer, portanto, risco para a ordem pública, a ordem econômica e a instrução criminal. Entretanto, o ministro Luís Roberto Barroso pediu vistas e apresentou, no último dia 29, um parecer ampliado, que tem reverberado em toda a mídia nacional. Seu voto foi acompanhado por Rosa Weber e Edson Fachin, mas não por Marco Aurélio Melo e Luiz Fux. De qualquer modo, houve maioria, e o voto foi aprovado pela Primeira Turma do STF.
Barroso, além de concordar com o relaxamento da prisão, teceu um arrazoado em defesa da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Sua argumentação coaduna-se com o marco dos direitos sexuais e reprodutivos e da autonomia das mulheres, que vem sendo elaborado e defendido pelo movimento feminista ao longo de décadas. Pela primeira vez o STF foi abrangente no debate sobre a descriminalização do aborto (até o momento julgou a favor da interrupção por anencefalia, em 2012, e a favor das pesquisas com células-tronco – quando reconheceu que o marco legal brasileiro não acolhe o “direito à vida desde a concepção”).
No cerne do voto de Barroso está o entendimento de que os direitos fundamentais das mulheres previstos na Constituição de 1988 tornam inconstitucional a criminalização do aborto presente no Código Penal de 1940, vigente até os dias de hoje. Para Barroso, os artigos do Código Penal que criminalizam o aborto no primeiro trimestre de gestação violam pelo menos cinco direitos fundamentais das mulheres: autonomia, integridade física e psíquica, direitos sexuais e reprodutivos, igualdade de gênero e igualdade social. O parecer do ministro aponta tanto para a desigualdade de gênero quanto para as discriminações étnica e social: “A criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnerabiliza o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites constitucionalmente aceitáveis”.
De acordo com Luís Roberto Barroso, a vida potencial do feto é “evidentemente relevante”, mas a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade.
A decisão não descriminaliza o aborto – Esta votação não significa que o aborto tenha sido despenalizado no Brasil. Mas configura uma jurisprudência que pode ser seguida por outros magistrados no país. Ela vale apenas para o caso específico examinado pelo STF. Entretanto, há quem entenda que esta manifestação por parte de três ministros do Supremo em favor da descriminalização do aborto indica que há abertura para que, no plenário do STF, ocorra uma decisão ampla e válida para todas as situações semelhantes, com possibilidade de que as proibições ao aborto previstas no Código Penal sejam derrubadas.
Reação no Congresso: Tão logo a notícia sobre a decisão circulou, a Câmara dos Deputados criou uma comissão cujo objetivo é enquadrar o julgamento da Primeira Turma como interferência no que é atribuição do Legislativo. Vale lembrar que essa é uma legislatura escancaradamente conservadora, onde alianças poderosas perfazem uma maioria que não apenas rejeita qualquer revisão liberalizante do Código Penal, como explicitamente, através de projetos de lei, quer retroceder, tornando o aborto crime hediondo e punível em qualquer circunstância, mesmo naquelas em que hoje ele é admitido pelo marco legal brasileiro. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que não é exatamente um conservador na matéria, pressionado pela bancada religiosa dogmática, cedeu, pois precisa do apoio desta bancada para se reeleger presidente da Câmara.
Em princípio, a comissão instalada vai usar a oportunidade de proposta de emenda constitucional sobre licença-maternidade (a PEC 58/11, do deputado Jorge Silva/PHS-ES) para tratar do tema. Esse grupo contrário ao aborto tem permanecido silencioso desde que seu líder, Eduardo Cunha, foi cassado e em seguida preso. Observadores da cena Congressual avaliam que, ao atacar a decisão do Supremo, esse setor está, de fato, abrindo uma janela para trazer de volta à pauta vários projetos que visam restringir o acesso ao aborto que estão em tramitação, como é o caso do nefasto Estatuto do Nascituro (saiba mais aqui e aqui). Por outro lado, o presidente do Senado Renan Calheiros (PMDB-AL), reagindo a proposta dos deputados conservadores, apoiou a decisão do Supremo, o que é insólito, quando se recuperam as cenas do senador Calheiros rezando frente a imagens de Nossa Senhora da Conceição para evitar sua cassação alguns anos atrás e, nesse momento, está envolvido em várias manobras para se proteger do alcance da operação Lava Jato.
É muito difícil prever os desdobramentos da batalha campal em torno do aborto que, nesse momento, divide os poderes da República. Seja como for, estamos frente a um novo capítulo da novela “O aborto é uma questão macro política” que se iniciou na eleição de 2010. E, mais importante, é tempo de, a exemplo do que já aconteceu na Espanha e mais recentemente na Polônia, tomar as ruas e abrir conversas horizontais nas casas, bares, esquinas, escolas e igrejas sobre o direito ao aborto como tema da democracia a ser reconstruída.
Trechos emblemáticos do voto:
Todo indivíduo – homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm o direito de interferir. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida?
A sexualidade feminina, ao lado dos direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina, ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos.
Por fim, a tipificação penal produz também discriminação social, já que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.
Opiniões:
Se realizado em condições seguras, não há risco na interrupção de uma gestação. Se há impacto à saúde das mulheres pelo aborto, os riscos estão na ilegalidade e clandestinidade da prática. É o cenário de crime que adoece as mulheres: elas temem ser presas, se arriscam com métodos que desconhecem a segurança, silenciam sobre suas histórias.
Débora Diniz – pesquisadora na Anis – Instituto de Bioética e integrante da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas, do Ministério da Saúde
O mais importante, parece-me, é que passamos a ter uma decisão da mais alta corte do país que afirma que a criminalização rompe com os direitos fundamentais das mulheres. O parecer do ministro Luís Roberto Barroso incorpora tanto a igualdade entre homens e mulheres quanto entre as mulheres de diferentes posições socioeconômicas. E deixa claro que a criminalização compromete a autonomia das mulheres.
Flavia Biroli – doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e vice-diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)Se é verdade que há uma polarização da opinião pública pró e contra o aborto, as pesquisas também mostram que, modo geral, a população entende a questão como sendo de foro íntimo da mulher. Que cabe a ela e não a um delegado de polícia, um promotor de justiça ou juiz de direito decidir sobre o prosseguimento da gravidez em fase inicial, como escreveu Barroso na sentença.
Rogério Jordão – doutor em letras pela PUC-RJ
Confira análises e notícias coletadas pelo SPW.
Decisão do STF encara a realidade sobre o aborto – Débora Diniz – Carta Capital
Pela descriminalização do aborto – Eloísa Machado de Almeida – Estado de São Paulo
STF destampa debate sobre aborto: voto é peça lapidar pró-legalização – Rogério Jordão – Yahoo
Nota Pública de Católicas sobre decisão do STF frente ao aborto – Católicas pelo Direito de Decidir
Especialistas consideram um marco decisão do STF sobre aborto – O Globo
A cada minuto uma mulher faz um aborto no Brasil – Débora Diniz – Carta Capital
Em 2015, quase meio milhão de brasileiras passaram por aborto ilegal – Fantástico
Funerais para fetos – Patrícia Campos Mello – Folha de São Paulo
De tripas e direitos – Hélio Schwartsman – Folha de São Paulo
Aborto no Brasil não deveria ser definido pelo Legislativo? – Luís Francisco Carvalho Filho
STF entende que criminalização do aborto viola cinco direitos fundamentais das mulheres – Catarinas
STF decide que o aborto até o terceiro mês não é crime: o que isso significa – Cristiane Segatto
O STF descriminalizou o aborto? Entenda – Carta Capital
Decisão do STF acirra debate entre internautas pró e contra o aborto – Folha de São Paulo
‘Decisão sobre aborto é para que se adotem políticas públicas’, diz Barroso – Estado de São Paulo
Mais de 55% das brasileiras com filhos não planejaram engravidar, diz estudo – G1
Maior parte dos projetos no Congresso sobre aborto prevê endurecer a pena – Estado de São Paulo
Aborto até o terceiro mês não é crime, entende turma do Supremo – Valor Econômico
Aborto até o terceiro mês não é crime, decide turma do Supremo – Folha de São Paulo
Renan defende decisão do STF sobre nova interpretação do aborto – Folha de São Paulo