No final de 2015, o SPW informava que, enquanto ativistas feministas estavam engajadas em esforços para conter regressões legais no Congresso, multidões feministas tomaram as ruas, pela primeira vez em muito tempo, para reivindicar a autonomia reprodutiva das mulheres. Coincidentemente, naquele mesmo período foram publicados pela imprensa as primeiras reportagens sobre a potencial correlação entre uma epidemia descontrolada de Zika vírus e uma alta incidência de bebês com microcefalia nascidos no Nordeste brasileiro.
A resposta institucional ao surto do Zika foi a primeira crise enfrentada pelo recém-nomeado ministro da saúde. E sua primeira declaração sobre o assunto foi deplorável. Quando, no final de novembro, o Ministério da Saúde divulgou um relatório inicial informando que 1.248 casos de microcefalia podiam ser atribuíveis ao vírus Zika, Dr. Castro comentou os dados, afirmando que “sexo é para amadores e reprodução é para profissionais” e que, portanto, a crise do Zika exigia que as mulheres evitassem a gravidez. Já nessa oportunidade, ouvimos as opiniões de feministas e outros especialistas e ativistas em relação a essa declaração. Passados quase três meses vales a pena reproduzir aqui a visão de Veriano Terto, pesquisador da ABIA, pois ela sintetiza as razões pelas quais a fala ministerial havia causado tanta indignação:
“Penso que é mais uma manifestação do pensamento conservador em relação à sexualidade que tomou conta do Estado brasileiro. A fala do ministro caracteriza o sexo como lugar de perigo, como uma função menos nobre do que outras – como a maternidade. Remete também a uma visão moral na qual as mulheres não têm direito ao prazer, reforçando estereótipos de gênero. Além disso, responsabiliza as mulheres que tiveram ou vierem a ter bebês com microcefalia, acusando-as de negligência e leviandade ao invés de trazê-las para um debate franco e aberto sobre o problema de saúde pública pelo qual o país passa. Não me surpreende a fala do ministro, embora deva ser repudiada e condenada.“
Em janeiro de 2016, quando o texto em inglês que está na origem deste artigo estava sendo preparado, o Zika vírus já havia se tornado um problema de saúde pública global. Embora a epidemia afete muitos países da África, do Pacífico, América do Sul e Central, foi no Brasil que se estabeleceu a primeira correlação entre a infecção Zika e a microcefalia. E esse é o aspecto da epidemia que está provocando o pânico global. Na terceira semana de janeiro, um caso de microcefalia foi descoberto no Havaí e a imprensa foi informada de que a mãe do bebê tinha sido infectada no Brasil. Logo após, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) emitiram alertas formais e diretrizes de comportamento em relação aos riscos para a fertilidade do Zika; e enquanto essa nota estava sendo escrita, a OMS declarou a Zika uma crise de saúde global.
Como é de amplo conhecimento, a crise de Zika revela, de maneira contundente, as más condições de saneamento e os problemas de funcionamento e eficácia do SUS. Concomitantemente, porém, abriu um amplo espaço para retomada do debate sobre as restrições legais da autonomia sexual e reprodutiva das mulheres.
Esse desdobramento era inevitável. Nos 75 anos que se passaram desde a adoção do Código Penal de 1940, a única reforma da lei do aborto ocorreu em 2012, quando a Suprema Corte, após oito anos de consideração, concedeu o direito ao aborto no caso de fetos anencéfalos . Desde então, o Judiciário tem se apoiado na decisão de 2012 para, em alguns casos, conceder o direito de acesso ao aborto em outros casos de anomalia fetal grave que não a anencefalia. Assim, mais cedo ou mais tarde, a escala da crise microcefalia, inevitavelmente, ampliaria as pressões para que as restrições legais ao aborto existentes fossem reexaminadas.
No começo de 2016, enquanto, no mundo da vida, muitas mulheres grávidas infectadas com o vírus da Zika estavam possivelmente ponderando sobre se ou não abortar e como fazê-lo sob as condições altamente restritivas e arriscadas impostas pela lei criminal, o debate público sobre Zika e aborto eclodiu (confira aqui os artigos publicados em Português).
Cláudia Collucci, no jornal Folha de São Paulo (10 de janeiro de 2016), relatou as opiniões dos especialistas sobre a possibilidade de a microcefalia constituir ou não motivo justificável para o aborto. Muitos dos especialistas entrevistados declararam que a microcefalia pode ser muito grave em alguns casos, e que o aborto deveria ser permitido nesses casos. Hélio Shwartzman, também na Folha, corretamente observou que, em face da crise de Zika, é lamentável verificar que o atual debate brasileiro sobre o direito ao aborto é predominantemente baseado em argumentos morais e religiosas absolutistas, muito mais ‘atrasados’ do que os argumentos jurídicos que sustentaram as reformas do Código Penal 1940. Em seu artigo de opinião para o Estado de Minas, a feminista negra Fátima de Oliveira expressou sua indignação frente a uma situação dramática na qual o governo brasileiro está empurrando milhares de mulheres para abortos clandestinos e inseguros.
Em 18 de janeiro, a edição francesa do Le Monde publicou um informe bastante completo sobre o assunto. Intitulado “A epidemia de Zika reabre o debate sobre o aborto no Brasil”, o artigo começa com o testemunho de uma grávida de 12 semanas, de classe média e com 32 anos, que, infectada pela Zika, recorreu a uma clínica de aborto clandestino em São Paulo a fim de terminar a gravidez. Uma versão mais curta do artigo publicada em português captou os pontos de vista de feministas e outros especialistas sobre o potencial impacto positivo da crise de Zika na política de aborto. Algumas dessas vozes sublinharam o clima geral de moralidade e controle como a principal barreira impedindo um debate mais amplo de acontecer; outras, no entanto, afirmaram que a epidemia tinha definitivamente criado novas condições para o debate sobre o aborto. E a imprensa continuou a debruçar-se sobre o problema, apontando o potencial aumento de abortos clandestinos e os riscos relacionados e dando espaço para vozes favoráveis à mudança na lei de modo a permitir que mulheres grávidas infectadas pelo Zika possam abortar. Até um juiz do estado de Goiás posicionou-se em favor dessa mudança.
Teve razão quem disse ao Le Monde que a epidemia estava criando novas condições para o debate. A política de aborto no Brasil foi decididamente transformada pela crise do Zika vírus. Por exemplo, se reativarmos as energias que se levantaram contra o PL 5069, conectando-as com o candente e expansivo debate sobre o aborto e Zika, as condições que presidem a reabertura das discussões no Congresso sobre o PL 5069 em fevereiro de 2016 serão alteradas. Sobretudo, a crise de microcefalia instaurou condições favoráveis para uma nova ação ser apresentada ao Supremo Tribunal Federal. Em uma entrevista ao Global Post, a antropóloga Débora Diniz disse: “Temos tudo na mão – a epidemia, a negligência histórica do Ministério da Saúde e temos as necessidade das mulheres sobre a mesa”. Em seguida entrevista à BBC Brasil ela ampliou e detalhou este argumento e, em artigo publicado na Folha Online em 3 fevereiro foi ainda mais precisa em termos das premissas constitucionais que devem orientar essa ação.
Enquanto essas dinâmicas intensas estavam em jogo, ao longo da última semana, a resposta das autoridades públicas do Brasil continuou decididamente débil. O Ministério da Saúde emitiu uma norma técnica específica para Zika. Mas, na realidade da vida cotidiana as mulheres não conseguem obter informação adequada e o sistema público de saúde não está tendo a capacidade necessária de resposta como pode ser verificado na entrevista da Dra. Adriana Melo, a especialista em saúde fetal de Campina Grande que originalmente detectou a correlação entre Zika e microcefalia:
“Não sabemos até quando vamos aguentar. Só o que aumenta é a epidemia. Temos 300 grávidas registradas com suspeita de zika e sequer podemos fazer o exame sorológico para saber se as mães tiveram mesmo a doença.”
No dia 27 de janeiro, o Governo Federal anunciou que vai fornecer uma “Bolsa Família” para as mães de bebês nascidos com microcefalia. Essa medida (embora muito atrasada) deve ser aplaudida, mas é totalmente insuficiente. Uma resposta sólida e efetiva à crise de Zika deveria a incluir campanhas extensas e bem planejadas de prevenção, distribuição de redes anti-mosquito e outras medidas contra a infestação do mosquito, mas também a implementação eficaz de uma abordagem integral e ampla da saúde sexual e reprodutiva das mulheres que necessariamente inclui a intensificação de triagem pré-natal e também a melhoria rápida ao acesso à contracepção, em particular informações sobre e acesso facilitado à contracepção de emergência. Isso para não mencionar uma solução objetiva e realista com relação ao acesso ao Misosprotol hoje absolutamente limitado por norma da ANVISA. Como observou Jacqueline Pitanguy, em um artigo publicado em O Globo (27 de janeiro de 2016), se o debate sobre o direito ao aborto não houvesse sido paralisado no país por concepções morais religiosas absolutistas, esta resposta também incluiria normas e serviços legais para assegurar que:
“as mulheres que hoje enfrentam o pavor de estarem gestando um feto com microcefalia poderiam, em nome de seu direito à autonomia reprodutiva e à integridade emocional sua e de sua família, optar por levar adiante ou interromper essa gestação. Fora dos parâmetros da condenação moral e da criminalização e no marco do respeito à sua dignidade humana.”
Em contraste com a situação brasileira — onde o que assistimos é uma combinação de declarações lamentáveis e a ausência de um compromisso efetivo com a saúde sexual e reprodutiva das mulheres – na vizinha Colômbia, onde o direito ao aborto foi ampliado por decisão da Corte Constitucional em 2006 – tão logo a escala do problema de má formação fetal relacionado com o Zika foi constatada o Vice Ministro da Saúde declarou que as grávidas com suspeita de contágio pelo Zika, quando existirem sinais de que o feto foi afetado pela microcefalia, poderão recorrer ao aborto segundo a lei e avaliação médica. Embora não tenha sido emitida uma decisão administrativa geral e os casos individuais devam ser avaliados, o Vice Ministro afirmou: “Esse é um direito que têm todas as mulheres”.
Como o Brasil está no centro do furacão global ocasionado pela crise de Zika é fundamental identificar, valorizar e alimentar conexões transnacionais no campo do debate sobre Zika e direitos ao aborto. É assim muito positivo que a proposição de constituir um novo caso exemplar relativo à autonomia reprodutiva para ser levado ao Supremo Tribunal Federal proposto por Débora Diniz na semana passada tenha tido ampla visibilidade global, inclusive na manchete do New York Times em 3 de fevereiro de 2016 (outras matérias estão na compilação feita SPW).
Também é decididamente assistir, ao longo dessa semana (1 a 6 fevereiro) um grupo importante de formadores de opinião – Míriam Leitão, José Temporão, Dráuzio Varela e Cora Rónai — expressando posições francamente favoráveis à eliminação das restrições à saúde reprodutiva que ainda prevalecem na norma penal brasileira. Temos pela frente, portanto, muitas tarefas. Uma delas é o caminho potencialmente virtuoso em direção ao STF. Mas também será crucial verificar se e como a espiral ascendente do debate sobre Zika e direito ao aborto vai alterar o clima nas salas do Congresso, reabertas desde ontem, dia 2 de fevereiro.
O SPW – Observatório de Sexualidade e Política fez uma compilação de notícias e artigos sobre essa tema:
“Déjà vu”: responsabilizando as mulheres pela reprodução sem garantir seus direitos