por Sonia Corrêa
Se junho e julho de 2013 ficaram registrados como o tempo da rebelião social, outubro e novembro de 2015 vão ficar marcados no calendário brasileiro como o tempo das ocupações feministas. Corpos, vozes, escritos e imagens feministas tomaram as ruas, as redes sociais, os espaços dos articulistas masculinos na grande imprensa e até mesmo a prova do ENEM. Foi como se o país tivesse sido atravessado por rastros de busca-pés — rápidos, ágeis, surpreendentes –, que levaram todo mundo a reposicionar-se no território, seja para admirar o trajeto virtuoso das luzes, seja para não se queimar.
Muito mais pode e deve ser escrito sobre essas dinâmicas sincrônicas que levaram as mulheres de todas as idades, raças e lugares sociais, a dizerem em alto e em bom tom — e das maneiras as mais diversas — que estamos fartas. Fartas do conservadorismo instalado no sistema político, que empurra goela abaixo da sociedade propostas legislativas vergonhosas; fartas dos assédios sexuais gravados indelevelmente nas memórias; fartas do racismo; fartas da falta de espaço nos veículos de imprensa que determinam o diapasão da esfera pública. O último momento a registrar desse ciclo foi a ocupação da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara Federal no dia 25 de novembro para entrega de uma petição assinada por quase 100.000 pessoas contra o fatídico PL5069.
Essa breve nota não pretende exaurir os muitos significantes e significados dessa rebelião mas apenas sublinhar duas ou três ‘coisas’ que imagino dela. A primeira delas é mais bem um sentimento. Como alguém que observa a cena feminista brasileira, inevitavelmente, a partir do ciclo longo me percebi, ao longo das últimas semanas, navegando ‘acontecimentos‘ no sentido da definição elaborada por Bensa e Fassin ( 2002)[1]. Uma vez mais me senti arrastada por eventos cuja gênese me escapava e que suspendiam, ainda que temporariamente, o lastro habitual dos contextos e estruturas.
Uma segunda ‘coisa’ é que há, sem dúvida, grupos, pessoas e redes a nomear como deflagradoras desses ‘acontecimentos’: Think Olga e outros blogs que insuflaram o #primeiro assédio; Manuela Miklos que inventou o #AgoraÉQueSãoElas e as muitas mulheres que ocuparam os espaços dos articulistas masculinos; Petra Costa que a partir do mote Meu corpo, Minhas Regras produziu um belo clip; redes feministas desde muito engajadas na luta pelo direito ao aborto – hoje agrupadas na Frente Nacional pela Legalização do Aborto – e a Rede Brasileira de Mulheres Negras. Contudo o que mais me encanta nas ‘ocupações feministas’ é a suspensão, ainda que temporária das estruturas. Seu traço forte foi o próprio acontecer. As ocupações feministas de 2015 aconteceram. Isso é o que importa, mesmo quando não saibamos exatamente o que virá depois.
Como não podia deixar de ser, nesse final de novembro, o Observatório de Sexualidade e Política (SPW) publica uma compilação bastante completa da cobertura desses ‘acontecimentos’. Nesse registro, uma última coisa a ser dita é que pelo lado do avesso desse ‘presente’ extraordinário que caracteriza as ocupações feministas de 2015 há muitos fios e tramas de longo curso que será preciso nomear ou rastrear. As trajetórias instáveis e dispersas, mas certamente persistentes do refletir, contestar, escrever, lamentar, silenciar, compartilhar e simplesmente estar que — não sem conflitos e incomunicabilidades — cruzou tempos e gerações e, paulatinamente, vai atravessando demarcações de classe, raça, etnia. Esse não é o lugar pra retraçar essas genealogias e, talvez, nem mesmo seja possível reconstruir plenamente esses percursos. Mas nunca é demais evocar seus rastros.
[1] Bensa, A. and Fassin, E. (2002) “Les science sociales face a l’evenement” . In Terrain (online) A 38, 2002. Accessed at http://terrain.review.org/1888 DOI: 10.4000/terrain 1888