por Marco Aurélio Prado
“Eu defendo que todos estes valores derivam de importantes origens judaicas, o que não é o mesmo que dizer que eles apenas derivam dessas origens. Mas, para mim, dada a história da qual eu venho, é mais importante, enquanto judia, falar publicamente contra a injustiça e lutar contra todas as formas de racismo. Isto não faz de mim uma judia que odeia a si mesma. Isto faz de mim alguém que quer reivindicar um judaísmo que não se identifica com um estado de violência, mas sim com uma luta de base ampla por justiça social” (Judith Butler)
Não resta dúvida, seja pela experiência, pela história ou mesmo pelo impacto cultural e político, que a Parada LGBT de São Paulo é uma das mais importantes formas de expressão política e cultural da comunidade LGBT brasileira. Muito embora desde o seu início, em 1997, a Parada tenha sofrido muitas mudanças de cunho político, cultural e financeiro, participar desse momento quando uma verdadeira multidão pára uma cidade como São Paulo para protestar e expressar a diversidade sexual e de gênero é uma emoção radiante e sem dúvida o evento tem um estrondoso impacto político.
A história da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo navegou por conjunturas políticas muito diversas. Na esteira das lutas pela derrubada da ditadura civil-militar, a emergência da Parada se relaciona diretamente com as lutas em favor da reabertura política e da construção da democracia no país – lutas essas em que a participação da comunidade LGBT cumpriu um papel importante. Não por acaso, a crescente organização e mobilização da comunidade LGBT cresceu em pleno vapor a medida em que se aprofundava e alargava o ciclo de lutas e ganhos no campo dos direitos sociais que vai da constituição de 1988 até a eleição de governantes de esquerda nos anos 2000. Ao longo desse trajeto, a própria Associação que organiza a Parada foi objeto de ameaças. Em 2000, Beto de Jesus que então era presidente da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo e recebeu uma carta-bomba ameaçando sua própria vida.
Em 2018, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo foi mais uma vez palco de polêmicas políticas agora de cunho transnacionais. Pela primeira vez na sua história o evento recebeu apoio do Consulado do Estado de Israel. Através de uma parceria econômico-financeira entre a Câmara de Comércio e Turismo LGBT, a rede hoteleira Accor Hotels e o estilista Alexandre Herchcovith, o Consulado Geral do Estado de Israel em São Paulo foi um dos grupos de apoio financeiro a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. Como contrapartida representantes da comunidade LGBT de Israel estiveram na Parada e desfilaram no trio elétrico “Tel Aviv” na Avenida Paulista.
Tão ou mais importante, contudo, é registrar que alguns dias antes, na Marcha por Jesus que toma o Campo de Marte na mesma São Paulo — conhecida como evento que se contrapõe as demandas por direitos LGBT– também contou com a presença do cônsul de Israel na cidade. As imagens do representante diplomático discursando e cercado por pastoras enroladas em bandeiras de Israel, teve ampla repercussão na mídia e nas redes sociais.
O movimento aparentemente paradoxal feito por Israel de apoiar com uma mão os direitos LGBT e com a outra acenar para os religiosos da Marcha não é trivial. Acontece no ano que marca os 70 anos de existência do Estado de Israel e não pode ser plenamente compreendido se não for situado em relação a economia política que vincula os dois países. No passado, o papel desempenhado pela diplomacia brasileira na ONU quando da criação de Israel que foi objeto de um artigo (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/nos-70-anos-de-israel-gilberto-gil-e-azulay-defendem-criacao-de-estado-palestino.shtml) recente de Gilberto Gil e Tom Jobs Azulay na Ilustríssima da FSP. No presente, os gestos feitos na Parada e na Marcha para Jesus coincidem com um acordo entre Brasil e Israel que, segundo representantes de seus governos, marca uma reviravolta na relação econômica entre os dois países. O acordo envolve trocas nas áreas de ciência e tecnologia, especificamente no que diz respeito a equipamento e logística para segurança pública e equipamentos militares, mas também investimentos científicos de pesquisas, por exemplo junto à Central Nacional de Alcântara para o lançamento de satélites de interesse do Estado de Israel. Segundo o Instituto Internacional de Estocolmo para a Pesquisa da Paz, o Brasil se consolidou esse ano como o quinto maior comprador de armas de Israel.
Na sua face política, esse acordo também foi proclamado pelo titular da pasta de ciência e tecnologia de Israel como pavimentando a possibilidade de que Brasil venha apoiar junto a ONU a causas de Israel contra a Palestina: “Espero que, por causa da melhora nas relações bilaterais e em nome desse futuro melhor que antevejo o Brasil também vote com a gente, por exemplo, na ONU, quando os palestinos pedem decisões contra Israel”[1].
Por outro lado, presença de Israel na Parada de São Paulo arrasta amplas zonas de sombra. Um pouco antes Israel, uma vez mais chocou o mundo ao iniciar um novo ciclo de ações brutais contra a população palestina nos Territórios Ocupados, inclusive com registros gravíssimos de assassinatos de crianças queimadas em pleno território palestino e centenas de vidas. Essa tragédia não impediu que a Parada de Tel. Aviv comemorasse alegremente os 70 anos do Estado de Israel com fortes apelos para participação internacional. Também não podemos esquecer que a restauração conservadora em curso no país tem favorecido, abertamente, os interesses de Israel e vice-versa. Em 2016, um certo capitão candidato voltou de seu batismo palestrando em associações judaicas sob protestos judeus progressistas. Em maio desse ano, enquanto Gaza se banhava em sangue e a nova embaixada americana era inaugurada em Jerusalém, a bancada evangélica foi ao planalto pressionar para que o Brasil também deslocasse sua representação diplomática.
Finalmente e, especialmente relevante para o significado da presença de Israel na Parada de São Paulo, pelo menos desde 2017, a direita israelense tem se imiscuído abertamente na política sexual brasileira. Circulou panfletos (em inglês) contra a visita de Judith Butler e ao menos uma bandeira de Israel flamejava na frente do SESC enquanto a efígie da filósofa era queimada. Em maio desse ano, como foi relatado pelo SPW, Sara Winter a atual voz brasileira contra o direito ao aborto chegou para um debate, o qual foi alvo de protesto do ativismo transexual, na UFF enrolada nesse mesmo lábaro.
Contra esse pano de fundo e por que, já algum tempo, a estratégia de pinkwashing usada pelo estado de Israel tem sido criticada no Brasil, a presença de Israel na Parada de São Paulo foi, inevitavelmente, objeto de controvérsia. PSOL, PCB e PSTU lançaram notas críticas dizendo ser inaceitável receber apoio de um Estado que tem historicamente massacrado cidadãos e cidadãs palestinas na região do Oriente Médio. Assim, não passou sem protesto a própria forma de organizar protesto da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo.
Indubitavelmente, o apoio do Estado de Israel à Parada do Orgulho LGBT de São Paulo não é nada consensual e bastante polêmico. Afinal, ao declarar seu apoio à diversidade, às causas LGBT em um país conhecido pelas inúmeras violações aos direitos LGBT, qual seria sua real intencionalidade? O apoio do Estado de Israel esconde várias facetas mais profundas da relação entre Israel e Brasil. Pode ser celebrada como uma vertente importante do “dinheiro cor-de-rosa”, a conhecida ação do “pinkwashing”, que em nome de apoios estratégicos busca limpar seu comprometimento com uma pauta interseccional no campo dos direitos LGBT. Mas seria pouco se fosse apenas uma ação de “pinkwashing”. Há também pelo que pode ser notado, um interesse qualificado de que as armas e as tecnologias de segurança sejam cada vez mais importadas e adotadas na sociedade brasileira sem que estejamos a par e conscientes do que significa festejar financeiramente a diversidade, mesmo a custo de armar o país.
Será que estamos frente a uma nova forma de relação com Israel de fato ou essa é mais uma parte de uma longa relação que agora maquiada pelo discurso vazio da diversidade, entope de estratégias logísticas pró-estado de Israel e contra o apoio internacional ao massacre ao povo palestino? Essa aproximação com o governo israelense é uma mancha na história de luta que a Parada representa. Não há nada de glorioso colocar a Parada ao lado dos que defendem os massacres da população palestina e os interesses das bancadas da bala e da Bíblia.
Marco Aurélio Máximo Prado é professor associado do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT na Universidade Federal de Minas Gerais.
Clique aqui para ler uma compilação de texto e artigos sobre a polêmica
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Notas
[1] https://www.valor.com.br/brasil/5359935/israel-e-brasil-buscam-acordo-na-area-de-seguranca
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