Por Manuela L. Picq*
Uma discussão sobre aborto suspendeu a votação do novo código penal no Congresso do Equador esta semana. A parlamentar Soledad Buendía, do partido ALIANZA Pais (o mesmo do presidente Rafael Correa), liderou movimento para que o artigo 149 da Constituição tornasse legal o aborto em caso de estupro. A iniciativa foi apoiada por outras parlamentares, como María Alejandra Vicuña, Blanca Arguello e Paola Pabón, que propuseram que a lei passasse a permitir a interrupção da gravidez resultante de estupro até a 12ª semana. A proposta desatou protestos no Congresso, suspendendo a sessão. O presidente Rafael Correa ameaçou renunciar caso o Congresso aprovasse tal previsão sobre o aborto, chamada por ele de “eutanásia pré-natal”. Depois, acusou de “traidoras” as parlamentares de seu partido.
O Código Penal Equatoriano data de 1938 e autoriza o aborto apenas em caso de gravidez gerada por estupro contra mulher com transtornos mentais ou em caso de grave risco à vida da gestante. Criminaliza a interrupção da gravidez em qualquer outra situação, incluindo casos de estupro. Os movimentos de mulheres têm pressionado pela descriminalização em casos de estupro na América Latina, onde a violência sexual é um desafio diário aos direitos humanos. De acordo com dados, o Equador registrou 3.864 vítimas de violência sexual em 2010.
O impasse atual não significa um retrocesso legal, tendo em vista que a jurisdição de 1938 mantém-se intacta. No entanto, a situação demonstra os limites das mudanças sociais da Revolução Cidadã proposta pelo governo Correa. As coisas não têm piorado para as mulheres; elas se mantêm na mesma. E, por isso, as feministas estão insatisfeitas. A incapacidade de descriminalizar a prática revela que o governo é “mais do mesmo”, que forças conservadoras, como a Igreja Católica, continuam a exercer significativo poder sobre as políticas de justiça social da nova esquerda. A organização Human Rights Watch enviou carta à presidente do Congresso, Gabriela Rivadeneira, pedindo que ela reconsidere a reforma de modo a assegurar o acesso das mulheres ao aborto seguro, uma vez que a criminalização contribui para a clandestinidade da prática e coloca em risco as mulheres pobres.
Além disso, o debate revela a incoerência de um código penal que condena o feminicídio, mas endorsa políticas patriarcais que negam a autonomia das mulheres sobre seus corpos. Também revela que mulheres no poder não têm poder, de fato. Mulheres parlamentares têm sido eleitas, mas seus votos são vigiados pelo partido que as colocou no poder. Sob tal ameaça, elas são obrigadas a se dobrar ao presidente. Qual a razão de se ter mulheres no poder que não podem sustentar seus votos?
Poucas parlamentares foram corajosas em defender direitos fundamentais das mulheres, mas foram imediatamente punidas por seus partidos e impossibilitadas de manter suas posições. A situação do aborto no Congresso equatoriano mostra que a América Latina talvez seja a região com mais mulheres na política, mas cuja presença permanece meramente decorativa.
*Manuela L. Picq é professora de relações internacionais da Universidade de São Francisco de Quito (Equador) e membro do Instituto de Estudos Avançados (USA).