Dia 25/8/09 – tarde
A última sessão do Diálogo Latino-americano, coordenada por Gloria Careaga, foi iniciada com a apresentação do texto panorâmico Sexualidade, Religião e Política na América Latina, elaborado por Juan Marco Vaggione, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) e professor de sociologia na Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina. O texto foi comentado por Luiz Antonio Cunha, professor titular do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Observatório da Laicidade do Estado.
Juan Marco destacou, inicialmente, que tanto a sexualidade quanto a religião são dimensões cruciais para entender as políticas contemporâneas. Embora a modernidade, enquanto projeto ideológico, tenha buscado confiná-las na esfera privada, isso não ocorreu. De fato, tanto a religião quanto a sexualidade foram crescentemente politizadas. Seja no passado, seja no dias atuais,instituições e discursos religiosos intervêm nas dinâmicas políticas nacionais e internacionais, exercendo influência sobre os mais diversos temas, inclusive aqueles relacionados à sexualidade. Já no caso da sexualidade, não só sua regulação foi sempre uma preocupação de estado, como hoje ela é um tema central do debate sobre direitos e cidadania na América Latina. Assim, sexualidade, religião e política estão tão interconectadas que é sempre difícil analisar uma dessas dimensões sem considerar a outra.
De modo a deslindar essa imbricação, Juan Marco fez uma breve revisão da literatura sobre sexualidade, religião e política na América, ponderando que, mesmo com o crescimento de pesquisas nesse campo, muito resta a ser feito e persistem indagações teóricas sobre o que já foi produzido. Também sublinhou que a interseção entre essas três dimensões pode ser analisada de maneiras diversas. A mais conhecida delas contrapõe as políticas emancipatórias da sexualidade às “políticas do religioso”, ou seja a religião seria o principal obstáculo frente a definições plurais e diversas da sexualidade. Historicamente, esse papel foi desempenhado pela Igreja Católica, que continua a ser muito influente. Mas Vaggione lembra que hoje já é muito significativo o papel das igrejas evangélicas, em particular as igrejas pentecostais que propõem como explicação para a homossexualidade a presença de forças sobrenaturais (demonização) sobre os indivíduos, das quais eles precisam ser libertos a partir da oração, do exorcismo e da “cura”.
Essa influência religiosa sobre as normas e práticas da sexualidade opera em dois níveis. No plano subjetivo produz dissonâncias cognitivas entre a filiação religiosa, por um lado, e os desejos e as práticas dos indivíduos, por outro. No plano político, identificam-se ações e intervenções sistemáticas sobre o aparelho de estado e a opinião pública. Nos dias atuais, não só a hierarquia católica opera, como sempre fez, no âmbito das relações com o poder para influenciar políticas de Estado. As identidades religiosas, sejam elas católicas ou evangélicas, se tornaram uma dimensão do ativismo cidadão contra os direitos sexuais e reprodutivos e se manifestam como vozes legítimas do debate público e também por via eleitoral.
Sem negar a relevância do “chamado retorno do religioso” como um enorme obstáculo para a pluralidade sexual, Vaggione sugere, porém, que é preciso identificar mudanças em curso no campo religioso, ou seja, buscar aí grupos e vozes que estão abertos à liberdade e à diversidade sexual. Neste sentido, propõe uma ruptura com a definição do religioso como instância necessariamente repressiva com relação a questões de sexualidade, a fim de buscar e dialogar com novas perspectivas que enfatizam a possibilidade de transformações emancipatórias nos dois campos:
“Sem negar que as religiões constituem um obstáculo para as políticas emancipatórias da sexualidade, é preciso reconhecer a heterogeneidade religiosa. Reduzir o religioso a posturas heteronormativas e/ou patriarcais é simplificar o leque de possibilidades, pois existem indivíduos, instituições e discursos religiosos que compatibilizam as identidades religiosas com uma concepção ampla e plural da sexualidade, pluralismo que não só se dá entre distintas tradições religiosas, como também no interior das mesmas”.
Retornando ao campo das relações entre sexualidade, religião e política, Vaggione assinala que se hoje as forças religiosas dogmáticas buscam exercer sua influência sobre o estado e a sociedade, usando novas estratégias, os atores e atrizes da política sexual, de seu lado, têm reativado os debates sobre laicidade ou secularismo como horizonte normativo das democracias (liberais) para conter esse avanço conservador. Experimentamos, portanto, politização religiosa reativa, de um lado, e manifestações de laicidade ou secularismo estratégico, de outro. Essa pauta se traduz na defesa do estado laico como um regime cuja legitimação se baseia na soberania popular e não em princípios religiosos, pois este deve garantir a liberdade e a diversidade sexual, baseando-se no princípio geral de respeito à liberdade de consciência e privacidade dos cidadãos e cidadãs.
Mas, segundo Vaggione, é preciso sublinhar que a defesa da laicidade e o estado laico não esgotam os desafios que se colocam para a ampliação da agenda de direitos sexuais e reprodutivos na região. Por exemplo, mesmo sendo o estado efetivamente laico, juizes/as, legisladores/as ou as pessoas, em geral, continuaram sendo fiéis às suas convicções religiosas particulares. E essas convicções têm, como sabemos, um peso enorme nas percepções e decisões acerca da sexualidade e da reprodução. Por essa razão, hoje, pesquisadoras/es e teóricas/es que tratam do tema têm repensado a questão do lugar e papel das crenças religiosas na esfera pública. Muitas delas/es defendem a posição clássica de que as fronteiras entre estado e religião devem ser nítidas e que as pessoas devem despojar-se de seus valores religiosos quando atuam como agentes públicos. Já outros/as consideram que as visões religiosas devem circular livremente nos debates públicos e legislativos, mas que as leis não podem estar fundadas em princípios de doutrina religiosa. Finalmente, há aqueles/as que consideram que as linhas de demarcação devem se dar em termos de razões e argumentos privados, por um lado, e argumentos públicos, por outro.
Para Vaggione, nas condições atuais, a construção de marcos analíticos e normativos mais complexos em relação à sexualidade exige que revisemos, criticamente, as concepções de laicidade que estabelecem fronteiras rígidas entre religião e política, ou religião e direitos. Isso porque, de fato, as fronteiras entre política e religião são mais porosas, dinâmicas e flexíveis. Posturas que se apegam à defesa da laicidade ou secularismo, no seu sentido clássico, não resolvem essa complexidade, mas apenas deslocam o problema. Nesse sentido, o pesquisador faz uma proposição “forte” – que é como ele mesmo a qualifica – de que pensemos as interseções entre religião, política e sexualidade numa perspectiva “pós-secular”:
“Numa região como a América Latina, onde por séculos a igreja católica tem exercido poder hegemônico sobre as construções legais da sexualidade, um programa político baseado na separação entre religião e política, autonomia do estado e defesa do público como exclusivamente secular eram considerados como condições para o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos. (…) A questão religiosa é agora inescapável, mas esta urgência se dá num tempo no qual nem o secularismo nem a secularização nem a esperança do desaparecimento do religioso servem de base, racional ou irracional, para as análises e políticas (…) O desafio é, então, propor marcos teóricos e estratégias políticas baseadas numa compreensão do religioso como parte legítima do político”.
:: COMENTÁRIOS ::
Luis Antonio Cunha iniciou seus comentários pontuando que tinha tanto concordâncias quanto discordâncias em relação a posições desenvolvidas no texto panorâmico. Por um lado, considerou que o trabalho de Vaggione trouxe contribuições muito importantes para o debate acerca da religião no sentido de revelar o caráter contraditório do campo religioso que, ao mesmo tempo em que tem expressões muito intensas de conservadorismo, também tem sinais de transformação. Para ele, o texto apresenta ilustrações muito significativas acerca de movimentos de politização da esfera religiosa que são pautados pela reivindicação da liberdade. O comentarista considera ser este o ponto forte da análise apresentada.
No entanto, segundo Luis Antonio, o reconhecimento da pluralidade e das contradições no campo religioso não deveria implicar na afirmação que o laicismo e o secularismo são pautas ultrapassadas e que deveriam ser superadas e descartadas. Isso porque o comentarista compreende que superar significa ir além, e não simplesmente descartar. Sobretudo, ele acredita ser possível e necessário caminhar no sentido desse “ir além” porque, na América Latina, ainda resta muito a ser feito, mesmo no que diz respeito ao elemento mais primitivo da construção da laicidade que é a separação estado – igreja. É exemplo disso a Constituição argentina, segundo a qual o estado é responsável financeiramente pelo clero. Dito de outro modo, a proposição de uma perspectiva pós-secular para pensar a América Latina deveria ser verificada com muito cuidado nos contextos nacionais.
Ele observou adicionalmente que o texto usa, com freqüência, os termos laicismo e secularismo, como sinônimos, o que considera problemático, pois nesse campo debate é sempre vital fazer uma distinção conceitual entre secularização da cultura e laicidade do estado. Tomando como exemplo o caso brasileiro, Luis Antonio Cunha lembrou que, no século XIX, estabeleceu-se no Brasil uma laicidade de elite, autoritária, inspirada na maçonaria e no positivismo, assim como ocorreu em outros países da América Latina, que trazia implícita premissas de redução do campo religioso. Mas esse estado laico caiu com a ditadura dos anos 1930 e, nos dias atuais, o país experimenta, na opinião de Luis Antonio, um processo acelerado de secularização da cultura e construção de uma nova laicidade. Isso ocorre sem que se registre a redução do campo religioso, como pode ser ilustrado pelo congraçamento religioso que se registra no reveillon na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em que milhões de pessoas se reúnem sem que ocorra nenhuma violência, ou pelo aparente orgulho que a população brasileira têm em relação à tolerância e sincretismo religioso que prevalecem no país. Sobretudo, é um movimento que se dá ao mesmo tempo em que a Igreja Católica faz uma ofensiva para retomar o controle do estado, nesse que é considerado o maior país católico do mundo, uma operação que tem, sem dúvida, um objetivo geopolítico.
Para ilustrar essa ofensiva, Luis Antonio mencionou que naquele mesmo dia 25 de agosto de 2009, enquanto o Diálogo acontecia, o Congresso brasileiro poderia estar votando um acordo, ou melhor, aprovando a primeira concordata entre o estado brasileiro e o Vaticano. Significativamente, segundo ele, esse debate vem desencadeando manifestações por parte da população religiosa, incluindo vozes católicas, mas também de ateus/as e agnósticos/as contra o acordo e a favor de um estado laico. Reação essa que se vê materializada, inclusive, num anúncio pago contra o acordo e em favor do estado laico, publicado na edição do jornal O Globo daquele mesmo dia, assinada pelo Conselho dos Pastores do Brasil.
Finalizando, o comentarista sugeriu a formação de coalizões, reunindo religiosos/as, ateus/as, ativistas, acadêmicos/as, dentro e fora do estado, para defender a laicidade, que deveria ser incorporada à análise panorâmica. Isso porque se trata de um fenômeno novo que sinaliza para a reconstrução de democracias laicas nos países da região. Isso permitiria, entre outras coisas, examinar mais de perto e numa perspectiva comparativa, os processos de laicização do estado e secularização da cultura, que nem sempre são convergentes e podem estar se dando em ritmos distintos nos vários contextos. Luis Antonio, sobretudo, considera que um passo nesse sentido reforçaria os pontos fortes do texto panorâmico, abrindo mão do que é mais débil, como por exemplo, o apelo a uma posição pós-secular ou pós-laica que, segundo ele, é impossível visualizar, pois os processos ainda estão em curso.