Por Andrea Moraes Alves
Em artigo de opinião publicado pela FSP em 08/12/2021, a Secretária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Gandra, revela em poucos parágrafos a visão de mundo que norteia as práticas do Ministério e o lugar que a “família” ocupa na arquitetura do governo Bolsonaro. Mesmo no singular, nessa visão a família é entendida como muitas coisas distintas: antídoto para comportamentos de risco, meio para reduzir o gasto público, alicerce da sociedade civil, promotora da tríade liberdade, autonomia e responsabilidade. Além de todas estas coisas juntas e misturadas, o artigo ainda sublinha que o papel do poder público é “oferecer as condições para que a família” seja tudo isso. O Estado deve fazer “políticas que custem pouco e façam muito”, que sejam “a favor da família” e “baseadas em evidência”. O texto ainda chega a um requinte de crueldade quando celebra o “papel essencial” que a família teve no enfrentamento da pandemia de covid-19 no Brasil.
O que será que pensam as famílias dos mais de 600 mil mortos pela covid-19 quando lêem tal afirmação? O que será que pensam as mulheres que ao procurar auxílio na rede de enfrentamento à violência se deparam com serviços inexistentes? O que será que pensam as mães e pais que tiveram que resolver, de acordo com suas próprias possibilidades materiais, se mandavam ou não os filhos para a escola, no meio de uma pandemia, sem que o Ministério da Educação garantisse uma saída coletiva e responsável para esse dilema? O que pensam as famílias que observam uma queda brutal de sua renda, a ausência de trabalho digno? Será que ficam felizes com esse título de “sólido alicerce social”? O que pensam os idosos, cuja renda proveniente da aposentadoria sustenta com dificuldade lares inteiros, ao serem tratados como corpos descartáveis durante a pandemia? A lista de incongruências é infinita. Para quem quer fazer política pública baseada em evidência é crucial 0lhar para além das suas próprias convicções. Famílias são feitas por pessoas concretas em relação umas com as outras. Não são abstrações para justificar um modelo idealizado e uma política de desresponsabilização do Estado.
A tendência ao familismo nas políticas sociais não é uma invenção recente. Desde o advento das políticas neoliberais, a focalização nas famílias tomou corpo como parâmetro da intervenção social, sobretudo no campo das políticas de assistência. Não é, tampouco, uma característica exclusiva do Brasil, estando presente nas ações dos estados latino-americanos desde os anos 1990, por exemplo. A inovação contemporânea é projetar um familismo turbinado pela moralização: casamento perfeito entre neoliberalismo e higienismo. O que eu chamo de “um familismo 2.0”. Esta nova versão do familismo também se apoia na antiga focalização das ações de intervenção pública nas famílias, mas reduzindo seu sentido para o singular, “A Família” como esfera da moral renovada. Moral no sentido durkheimiano do termo: como fonte de coesão e estabilização das relações sociais. Moral no sentido que produz uma unidade responsável pela elevação da coletividade. Não é à toa que esta agenda do familismo contemporâneo adota o idioma dos direitos humanos, pois tem deles uma visão bem própria: são humanos os direitos que visam a criação desta unidade perfeita da Família com o Estado[1]. Este “familismo 2.0” casa bem com os valores cristãos do casamento e da reprodução. Ao acionar estes valores, as ações familistas dos governos de extrema direita encontram ressonância neste público religioso.
As famílias imaginadas pela política de extrema direita hoje são pensadas como unidades fechadas em si mesmas, voltadas para a manutenção de relações idealizadas e que se organizam em torno da autoridade centrada nos adultos produtivos da rede familiar. Neste desenho, o trabalho é a chave para o exercício da autoridade e “ajuste da família”. Não importa se é um trabalho precarizado, o relevante é trazer renda pra casa e vigiar para que os mais jovens não fujam ao controle dos adultos e os mais velhos fiquem resguardados dentro de casa. As mulheres casadas adultas ocupam um lugar central neste arranjo idealizado: como trabalhadoras se responsabilizam pela renda da família, como esposa pela força moral ao marido, muitas vezes desempregado, e como mãe pela contenção das crianças e jovens. Se tem pais vivos, mas dependentes, e reside com eles, ela é a cuidadora principal. Tudo isso em nome do rótulo da família como “alicerce social”. Esta é uma aposta perversa e que só tem como consequência a superexploração do trabalho das mulheres e um desgaste das próprias relações familiares, na medida em que este ideal de coesão será sempre frustrado.
Andrea Moraes Alves é Antropóloga, Professora titular da Escola de Serviço Social da UFRJ
Imagem: Mira Shendel, Objeto Gráfico
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Notas:
[1] Desde que se criou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tem havido esforços do governo federal no sentido de estabelecer relações com a Polônia, um dos países do Leste Europeu que mais solidificou ações em torno da agenda política conservadora. Viagens e encontros oficiais entre o MMFDH e o governo polonês já fpram noticiados por parte da Imprensa brasileira. Ver por exemplo, Parceria pró-vida e família de Brasil e Polônia vira alvo da esquerda , Filha de Ives Gandra faz a ponte entre governo Bolsonaro e ultraconservadores na Polônia (diariodocentrodomundo.com.br), As relações da secretária de Damares com ultraconservadores na Polônia. Além da Polônia, a República Tcheca, a Eslováquia e a Hungria são países expoentes da defesa de políticas anti imigração e adotam um discurso centrado na ideia de uma unidade étnica da região que deve ser protegida a todo custo. Esta aliança anti globalista ganhou peso a partir de 2015 com a exacerbação da crise dos refugiados na Europa.