Maioria dos países que já o permitem é europeia. Igreja defende “referência masculina e feminina de geração ou adoção”
Matias ouviu ontem as mães dizer-lhe que as famílias arco-íris tinham ganho e perguntou-lhes o que é que elas tinham perdido antes para agora terem ganho. O que ganharam, explicou-lhe a mãe Mariana Martins, foi o direito de adotar crianças enquanto casais. Uma reivindicação que passou pelo Parlamento cinco vezes até ser aprovada, fazendo que o país seja o 24.º do mundo a permitir a adoção por casais homossexuais. “Agora estamos do lado certo da história”, diz Isabel Advirta, presidente da Associação ILGA Portugal.
A aprovação da adoção plena de crianças por todos os casais foi conseguida com os votos da esquerda toda, do PAN e mais 19 deputados sociais-democratas (com duas abstenções também na bancada do CDS). Nas votações feitas ao final da manhã, a esquerda apresentou-se no essencial unida, enquanto no PSD se verificaram, conforme os casos, entre 15 e 19 deputados “dissidentes”, votando ao arrepio do sentido oficial definido pelo partido e juntando-se assim à esquerda.
No caso da adoção gay, os cinco projetos foram aprovados pelas bancadas de PS, BE, PCP, PEV, PAN e 19 deputados do PSD. Verificaram-se duas abstenções (uma deputada do PS, Isabel Oneto, e outro do PSD, Duarte Marques). No caso do projeto socialista, verificaram-se mais três abstenções: duas deputadas do CDS (Ana Rita Bessa e Teresa Caeiro) e a social–democrata Ana Sofia Bettencourt. As deputadas do PSD Teresa Leal Coelho e Paula Teixeira da Cruz (ex-ministra da Justiça) acompanharam os aplausos de pé das bancadas da esquerda e do PAN.
Esta transversalidade parlamentar mereceu elogios da ILGA. “Foi um passo histórico votado pela larga maioria dos deputados, incluindo um número significativo de elementos do PSD, o que prova que esta é uma questão de direitos humanos e não de ideologia de esquerda ou de direita. Trata-se de reconhecer os direitos das famílias e das crianças e isso foi visível na votação”, diz Isabel Advirta.
Agora, os projetos de lei que foram aprovados vão ser discutidos na especialidade e depois submetidos à votação final global, para aí passar a ser uma decisão definitiva e poder ser aplicada. Algo que Mariana Martins e a mulher Marta esperam que aconteça antes de Maria Mar nascer, daqui a dois meses. “Gostaríamos que quando ela nascer já seja possível fazer logo tudo e passarmos a ser as duas mães.” Já que isso não aconteceu com Matias, de 3 anos, que aguarda a nova lei para ver reconhecido no papel que tem duas mães. “É a primeira coisa que vamos fazer mal a lei seja publicada. Para nós e para a nossa família, quando isso acontecer será uma felicidade imensa”, adianta Mariana.
Depois disso só falta a barreira da procriação. Já que tanto a professora como a mulher tiveram de recorrer à inseminação artificial em Espanha para engravidar. Pois o acesso à procriação medicamente assistida em Portugal apenas é acessível a casais heterossexuais – o que deve mudar já na próxima semana, quando forem votados os projetos de lei dos partidos de esquerda nesse sentido.
Ao permitir a adoção plena, Portugal entra no leque reduzido de países que reconhecem este direito. A Holanda foi, em dezembro de 2000, o primeiro na Europa, que é também o continente com mais leis a favor. A Colômbia foi o país mais recente a entrar para este grupo, pouco antes de Portugal, a 5 de novembro, embora aí o casamento gay não seja permitido.
A decisão não agrada à Igreja
O facto de passar a ser legal não significa que a lei agrada a todos. Contra continuam não só a maioria dos deputados do PSD e do CDS, como demonstram as votações, mas também a posição da Igreja se mantém. “A adoção deve ser feita apenas por casais, e um casal é um homem e uma mulher. Essa é a linha da Igreja, do patriarca e do Papa”, frisou o porta-voz da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), Manuel Barbosa.
Remetendo para o discurso de D. Manuel Clemente na última reunião da CEP, no início deste mês. “Trata-se, em suma, de salvaguardar a vida humana em todas as suas fases, da conceção à morte natural; da valorização da vida familiar e da educação dos filhos, com referência masculina e feminina de geração ou adoção”, referiu o patriarca de Lisboa.
Sem diferença para as crianças
Do ponto de vista da vida das crianças que esperam ser adotadas, o sociólogo Fausto Amaro acredita que não se vão registar mudanças significativas – embora se criem condições para aumentar o número de adoções. Em primeiro lugar porque “não há muitos casamentos entre pessoas do mesmo sexo” e porque “a lei vai servir, para já, para legitimar situações de casais que já tinham filhos mas a lei não os reconhecia como sendo dos dois”.
Do lado dos serviços de adoção que vão aplicar a lei, o especialista em questões de família está confiante: “Os técnicos não estão isentos de preconceitos, mas estão lá para cumprir a lei e encontrar a melhor família para cada criança e se for uma família homoparental não vão deixar de o fazer.”
A própria Ordem dos Psicólogos no estudo que fez, em 2013, para o Parlamento sobre o impacto da adoção gay para as crianças defendia que não existem diferenças entre as crianças educadas por famílias heterossexuais e por famílias homossexuais.