Estou acompanhando a campanha pela despatologização e, inclusive, foi falado que essa discussão não é nossa, que ela vem de fora. Essa discussão da despatologização não é nossa, ela vem de outros países para o Brasil. Mas nós já acompanhamos e temos vários encaminhamentos jurídicos nesta área, inclusive com o Ministério Público encaminhando essa questão. E por que? Qual é o grande problema da despatologização? É que essas pessoas não são doentes. No contexto brasileiro, num primeiro momento, elas se identificaram como doentes porque a política brasileira de saúde trata de pessoas doentes, e não trata da pessoa sã. A política brasileira trata de prevenção e promoção. Mas que prevenção e promoção? Da pessoa doente.
Se você pegar a grade do SUS, por exemplo, tem segmentos que só tratam de doenças. E, quando se trata de LGBT, nós só temos o viés da AIDS. Cadê a política que trata do psicológico das pessoas? Cadê a política psiquiátrica de saúde mental da pessoa LGBT? Nós não temos. Cadê a política que trata da hormonização e da questão da implantação de próteses de silicone em travestis e transexuais pelo SUS? Nós também não temos. Então, num primeiro momento, foi preciso que as meninas transexuais afirmassem uma patologia, a disforia de gênero, porque o SUS só poderia dar a permissão para fazer a cirurgia se tivesse uma patologia. Mas, agora, as meninas não precisam se anular nem se identificar como pessoas doentes, patologicamente acometidas, para poder garantir a sua cirurgia. Construíram isso inicialmente e foi vendido isso para sociedade, porque, se isso fosse uma construção só no meio acadêmico ou só no meio da medicina, não haveria problema algum. Mas, o grande problema, inclusive, é que, pós-cirurgia, ainda se carrega o estigma de estar “transexual”, e não “mulher”, não do “sexo feminino”, tendo a pessoa que dizer que vem de um processo cirúrgico e, mais, especificar a qual processo cirúrgico se submeteu (…).
Então, num primeiro momento, isso foi importante. Assim como num primeiro momento foi muito importante para o movimento LGBT se afirmar como movimento gay (…). Com a patologização da transexualidade foi da mesma forma. Então, hoje, tem que se trabalhar para desconstruir aquilo que as meninas antes aceitaram como patologia para garantir que o SUS lhes desse o direito de fazer a cirurgia. Esse processo da campanha é importante nesse sentido, e as discussões estão bastante avançadas.
De fato, despatologizar pode implicar na perda da possibilidade de fazer os tratamentos e intervenções cirúrgicas por via do estado. Mas tudo na vida tem dois lados, e assim também é a política. Isso é real, não podemos esconder. Por exemplo, uma menina que mora lá no interior da Paraíba, como eu tenho várias que me procuram para saber como fazer a cirurgia. Como vou dizer a essa menina que o SUS não garante mais a cirurgia porque ela não é doente? Ao mesmo tempo, quando chego para esta menina e digo “você vai se operar, vai fazer a cirurgia, porque você tem uma patologia”, ela me responde: “eu não sou doente”. Por que é preciso um psiquiatra para te dizer se você é ou não uma pessoa doente, é ou não uma pessoa capacitada com condições psicológicas para fazer uma cirurgia? E o direito ao corpo? Quem manda no meu corpo, quem decide pelo meu corpo? Ainda é a medicina e a justiça? Quer dizer, o nosso corpo não nos pertence. Pertence a dois poderes: jurídico e médico.
Nós temos que brigar para que o SUS trate dessas pessoas, já que trata de prevenção e promoção de saúde, através desse viés da prevenção e promoção. Se não tratar, está deixando que as pessoas adoeçam. Se meu psicológico não está em conformidade com o meu corpo, eu não posso ser uma pessoa sã. Uma pessoa sã é corpo são, mente sã. Se a pessoa não estiver em conexão integralmente, obviamente que irá ter uma patologia. E essa patologia, aí sim, poderá passar a acontecer à medida que o SUS não garanta a cirurgia, porque despatologizou a transsexualidade. Essa é uma discussão, é uma briga, mas no campo político. Porque, se o SUS é para todos/as, defina quem são esse “todos”. É o mesmo que está na Constituição: direitos iguais para todos/as, todos/as são iguais. Que todos/as?
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*Este depoimento foi extraído de entrevista com Fernanda Benvenutty, realizada por Jandira Queiroz, assistente de projetos do SPW, durante a V Conferência ILGA LAC, em janeiro de 2010.