Desde 05 de agosto, como se estivéssemos vivendo um carnaval prolongado, a vida cotidiana no Brasil e no Rio de Janeiro, em particular, ficou em suspenso. Para completar, tal como analisado por Fernando Seffner no artigo Rio 2016: os Jogos Sexuais?, a sexualidade estava solta por aí. Contudo, sob a superfície mediática dos corpos perfeitos, saudáveis e potentes nem tudo foi um paraíso tropical de prazeres.
Assim como também ocorreu na Copa do Mundo de 2014, antes e durante os Jogos, a imprensa e campanhas coordenadas por ONGs internacionais e nacionais circularam discursos e números inflados que provocaram pânico moral em relação ao tráfico para fins sexuais e a exploração sexual de crianças durante as Olimpíadas. Segundo os pesquisadores do Observatório da Prostituição da UFRJ — numa avaliação preliminar da pesquisa etnográfica realizada durante os Jogos — essas projeções uma vez mais estavam totalmente erradas.
Como se sabe, aconteceram dois episódios de violência sexual na Vila Olímpica. Os dois atletas – um marroquino e outro namibiano — foram rápida e eficazmente sujeitos a procedimentos policiais e judiciais draconianos, tendo sido um deles levado para Bangu. Tal ‘eficácia’, possivelmente destinada a demonstrar ao mundo a competência da polícia brasileira em relação a crimes sexuais, merecia ser melhor avaliada, pois as medidas tomada sugerem largueza excessiva na interpretação dos artigos do código penal sobre violação da dignidade sexual e evocam o artigo de Lucas Sado — publicado quando do estupro coletivo de maio de 2016 no Rio de Janeiro — em que ele analisa como o repúdio visceral à brutalidade sexual do caso levou a deslizes nos procedimentos policiais e de processo penal.
No que diz respeito especificamente à sexualidade feminina, Laura Molinari e Jimenez de Garay identificam os muitos paradoxos de gênero facilmente detectáveis sob a superfície sexualmente liberada dos Jogos. Por último, mas não menos importante, a questão dos marcadores sexual, identidade de gênero e intersexualidade não pode ser contornada nos Jogos do Rio porque em janeiro a Federação Internacional de Atletismo suspendeu as regras sobre os níveis de hormônios e exigência de cirurgia a que estavam sujeitas/os atletas trans e intersexo. Ainda assim, a mídia brasileira se mostrou incapaz e despreparada para lidar com o tema. As participações da mulher Lea T. e de outras mulheres trans na Cerimônia de Abertura mal foram mencionadas, e foi exígua a informação que circulou em português sobre a relevância da presença de Caster Semenya, sua medalha de ouro e o record de 800 metros rasos que ela quebrou no Rio. Por isso, convidamos Leonardo Peçanha do IBRAT para escrever sobre a presença/ausência trans nos Jogos.
Mas agora os Jogos acabaram e os árduos contornos da realidade brasileira estão de novo agudos e nítidos. A começar pela culminação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, na tarde do dia 31 de agosto, cujos desdobramentos, ainda que incertos em muito aspectos, serão, mais que possivelmente, muito negativos do ponto de vista das pautas de gênero, sexualidade e direitos reprodutivos.
Porém, de maneira mais imediata, o mais dramático é constatar que a cidade que durante duas semanas projetou globalmente a imagem de um Olimpo habitado por corpos perfeitos e sensuais, revelou uma vez mais sua face sombria como lugar em que, desde algum tempo, está em curso uma carnificina de mulheres por efeito do aborto ilegal e inseguro. Em 24 de agosto a imprensa informou que Caroline de Souza Carneiro, 28 anos, morta num desses procedimentos, teve seu cadáver descartado numa rua de Caxias. Repete-se, portanto, o cruel padrão de abjeção que caracterizou mortes anteriores por aborto nos casos de Jandira e Elisângela em 2014. Morta e largada numa rua escura, Caroline foi xingada, execrada e desumanizada nas redes sociais e seções de comentários dos jornais online. Em artigo da Folha de São Paulo, tão logo a notícia começou a circular, a jornalista Claudia Collucci perguntou: “Quanto tempo vamos estar recolhendo cadáveres das mulheres nas ruas?”, acrescentando:
Mas as mortes que chegam à imprensa são suficientes para revelar o sintoma gravíssimo de saúde pública que o aborto representa no país. Diante de uma população na maioria católica e evangélica, o debate público praticamente inexiste. Gestores e políticos, mais preocupados com interesses eleitorais, também pouco se importam com essas mulheres pobres que morrem desamparadas. Ou com aquelas que ficarão para sempre com sequelas físicas e emocionais. Claro. Com suas mulheres, suas filhas e suas irmãs, isso dificilmente vai acontecer, já que, caso elas decidam abortar, podem contar com a melhor assistência.
Significativamente, a notícia sobre a trágica morte física de Caroline, seguida da morte civil que significou o abandono de seu corpo e os xingamentos de que foi objeto, coincidiu no tempo com a apresentação de ação no STF (Supremo Tribunal Federal), pela Associação Nacional dos Defensores Públicos, para exigir a garantia de direitos de mulheres e crianças afetadas pelo zika vírus. Entre os pedidos, está o direito de interromper a gestação das mulheres infectadas que estejam com grande sofrimento mental. Se, por um lado, estamos adentrando tempos árduos e sombrios, essa iniciativa exemplar nos diz que as vozes que advogam pelos direitos sexuais e reprodutivos não estão silenciadas.
Esse texto é uma versão resumida do artigo The sexual games are over: whats next? de Sonia Corrêa
Para saber mais sobre a morte de Caroline