Com dores decorrentes de um processo de abortamento, uma mulher de 26 anos buscou socorro na emergência do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, no Paraná. Após receber alta, não voltou para casa: foi levada direto ao cárcere da Divisão de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), onde permaneceu por três dias e só foi liberada com o pagamento de fiança, em 13 de fevereiro. A prática do aborto é considerada crime no Brasil, mas o atendimento humanizado e sigiloso é um direito. Mulheres que chegam ao hospital público com complicações de uma interrupção – voluntária ou não – da gravidez também devem ter garantido esse atendimento, conforme prevê a Norma Técnica do Ministério da Saúde (MS) “Atenção Humanizada ao Abortamento”. O hospital abriu sindicância para investigar se houve quebra de sigilo, que além de ser crime viola o código de ética dos profissionais de saúde.
Em nota emitida na última semana, o hospital afirmou que considera a quebra de sigilo profissional uma “atitude condenável”. “Já foi aberta uma sindicância para apurar o fato e, caso seja confirmado, imediatamente serão tomadas as providências cabíveis”. A paciente chegou à emergência do hospital em 10 de fevereiro e durante o atendimento teria revelado que havia feito a interrupção da gravidez com o uso do comprimido Misoprostol. Ela estava grávida de cinco meses e depois de tentar realizar o aborto sozinha, pediu ao namorado para que a levasse ao hospital.
O Conselho Regional de Enfermagem do Paraná (Coren-PR) acompanha o andamento da sindicância no hospital e investiga se a quebra de sigilo partiu de um profissional da categoria. “O delegado disse que a denúncia foi feita por um enfermeiro que ligou para a polícia. Se houver confirmação, vamos pedir a abertura de processo ético-disciplinar no Coren”, afirma a assessora executiva Maria Goretti Lopes.
Atuando numa atividade majoritariamente feminina, Maria Goretti diz que o Coren tem uma Comissão de Saúde da Mulher e compromisso “muito grande” com a assistência às pacientes. Ela lembra que diariamente centenas de mulheres buscam o serviço de saúde com complicações relacionadas ao pós-aborto. Só no ano passado, cerca de 200 mil procedimentos como curetagem e Aspiração Manual Intrauterina (Amiu) foram realizados no SUS. Estima-se, no entanto, que cerca de 800 mil mulheres recorram à prática todos os anos no país.
“A paciente foi acompanhada de seu companheiro, já tinha feito o procedimento de risco e precisava de atendimento para não morrer de hemorragia. O Coren espera que os profissionais de enfermagem acolham as mulheres em suas necessidades com um atendimento digno e humanizado. Criminalizá-las não compete ao profissional de saúde”.
CRM do Paraná defende denúncia
Enquanto o hospital investiga se houve quebra de sigilo, o corregedor-geral do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Maurício Marcondes Ribas, afirma categoricamente que não se tratou de violação do código de ética e da lei. Ele conta que, em conversa com a assistente social do hospital, identificou que os profissionais seguiram o protocolo utilizado em casos de violência contra o “concepto” ou de “violência presumida” (termo utilizado na antiga lei de violência sexual para classificar estupro de vulneráveis).
Segundo o conselheiro, que atua no hospital como pediatra, profissionais são obrigados a notificar ao conselho tutelar ou à polícia, pacientes que chegam em processo de abortamento – como ocorre em casos de atendimento de crianças com maus tratos.
“Podemos fazer uma analogia com uma suspeita de agressão em paciente pediátrico, caso em que avisamos o conselho tutelar. Todo caso de violência exige notificação. Não houve quebra de sigilo, porque o protocolo de violência presumida foi feito de acordo com os trâmites legais. Esse tipo de notificação está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no programa de atendimento às vítimas de violência sexual do MS”, afirma o pediatra.
Denúncias colocam em risco vida das mulheres
A advogada Beatriz Galli, integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem Brasil), enfatiza que a quebra de sigilo profissional é crime, previsto no artigo 154 do Código Penal, e desrespeita a regra de atendimento às mulheres em situação de abortamento. “O não cumprimento da norma legal pode ensejar procedimento criminal, civil e ético-profissional contra quem revelou a informação, respondendo por todos os danos causados à mulher”, diz a norma do MS.
Assessora de políticas para a América Latina do Ipas (organização internacional em defesa dos direitos reprodutivos), Beatriz explica que a maioria das prisões por aborto no Brasil é proveniente de denúncias feitas no sistema de saúde. “Esse tipo de denúncia está sendo muito recorrente no sistema de saúde. Profissionais violam o sigilo porque entendem que têm o dever de denunciar. Trata-se de mistura de falta de conhecimento, medo de serem criminalizados e despreparo em relação às normas do Ministério de Saúde. Deveria ser feita uma ampla campanha de sensibilização para entenderem que o papel deles não é de polícia”, pontua.
Para ela, a repercussão de casos como esse leva mulheres a não buscarem o serviço de saúde com medo de serem presas.
“Não tem cabimento a pessoa sair de um procedimento de emergência e ir direto para a detenção. Isso tem consequências sérias e traz repercussão muita grande para a saúde pública. Quando as mulheres chegarem ao hospital pode ser tarde demais. Essa postura de denúncia é muito grave. Pior é saber que parte do CRM não leva em conta essa questão de salvar vidas. A mulher tem direito a um atendimento pós-aborto com sigilo e privacidade”.
Prisão é ilegal
A presidenta da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PR, Sandra Bazzo, conversou com a acusada e ofereceu assistência jurídica. “Ela mora numa das cidades mais pobres da região metropolitana”, explica a advogada sobre a condição socioeconômica da mulher. Com base nos artigos 310 e 313, ela explica que mesmo que houvesse flagrante de crime de aborto, a paciente não poderia ser presa preventivamente.
“Nesses casos são tomadas as declarações e a mulher precisa ser colocada em liberdade. Nos crimes dolosos que forem punidos com pena privativa de liberdade só pode ocorrer prisão preventiva se a pena for superior a quatro anos”, explica.
O aborto provocado pela gestante ou com o consentimento dela está previsto no artigo 124 e tem pena de um a três anos de prisão. Mesmo em caso de condenação, geralmente a pena é cumprida em regime aberto.
Sandra, que também é consultora da Comissão de Violência Sexual e Interrupção da Gestação da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), diz que a afirmação do conselheiro é equivocada ao relacionar atendimento pós-aborto com “presunção de violência” – que só ocorre diante de caso de estupro de vulneráveis. Ela argumenta que tanto o ECA, quanto a Norma Técnica do MS “Prevenção e Tratamento de Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” não contemplam os direitos do feto.
“Não estamos diante de estupro desse feto, não é caso de presunção de violência. Os procedimentos de violência contra menores são voltados somente aos nascidos vivos”, afirma.
A advogada explica que a comunicação de crime à autoridade competente só é obrigatória em caso de ação pública condicionada e quando a paciente é vítima. “A paciente chegou em processo de abortamento, trata-se de uma emergência médica, não estamos falando do procedimento de aborto, mas sim de uma sequela de situação médica posterior”.
Procurado pela equipe do portal, o delegado Cassio André Dias que atendeu o flagrante não quis se pronunciar. A interrupção da gravidez não é considerada crime – quando feita por profissionais de saúde – em casos de estupro, gravidez que coloque em risco a vida da gestante e anencefalia fetal – conforme decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.