por Nana Soares
Quatro meses depois da indicação do presidente Jair Bolsonaro, André Mendonça foi finalmente autorizado a ocupar uma cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) – onde deve permanecer até 2047. “Terrivelmente evangélico”, Mendonça demonstrou total alinhamento com as pautas do governo Bolsonaro. Foi sob seu comando, por exemplo, que o Ministério da Justiça produziu um dossiê contra 579 servidores antifascistas e três professores universitários. Mendonça também defendeu, durante a pandemia, que estados e municípios não poderiam proibir a realização de cultos religiosos presenciais.
O ex-ministro da Justiça e ex-advogado geral da União se opõe firmemente ao direito ao aborto, que classifica como “afronta ao direito à vida”, e é contrário ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, fazendo largo uso do termo “homossexualismo”. É favorável, no entanto, à redução da maioridade penal e ao armamento da população. Neste combo não falta, é claro, o combate à “ideologia de gênero”.
Tais visões foram amenizadas por Mendonça na sabatina que confirmaria sua nomeação, quando enfatizou respeito à Constituição e chegou a afirmar que defenderia “o direito civil constitucional do casamento civil das pessoas do mesmo sexo”. Mas tão logo foi confirmado, já voltou a acenar aos evangélicos e à bancada religiosa. Sua declaração ao fim da sessão, de que aquele era “um passo para um homem, um salto para os evangélicos” não deixa dúvidas disso. Com essa indicação, Bolsonaro cumpre sua antiga promessa de indicar um evangélico para o STF.
Mendonça foi o segundo Ministro da Corte indicado por Bolsonaro (o primeiro foi Kássio Nunes Marques) e agora deve ser um aliado do presidente e de seu projeto ultraconservador também nessa instância. Processo semelhante aconteceu nos Estados Unidos durante a gestão Trump, quando a Suprema Corte (SCOTUS) passou a ter maioria conservadora e de forte influência cristã. Trump pôde indicar três nomes, que agora ocupam o cargo de forma vitalícia. Como muito bem resumido no DemocracyNow, há um “exército jurídico cristão” travando uma guerra no país.
É sob esta composição que começou a ser julgado um dos casos mais importantes para o direito ao aborto no país norte-americano desde o emblemático Roe vs Wade de 1973, que descriminalizou o procedimento. Desde o dia 1 de dezembro, a SCOTUS avalia a constitucionalidade de uma lei do estado do Mississipi que veta o aborto mesmo em casos de estupro a partir da 15a semana de gestação. A lei é de 2018, mas tem sido sucessivamente contestada por ir contra as decisões da Suprema Corte que permitem o aborto irrestritamente antes da “viabilidade do feto”. Este conceito varia de estado para estado, um dos motivos pelo qual o caso de Mississippi pode abrir precedentes perigosos em todo o país.
O resultado do julgamento está previsto para junho, mas quatro dos seis juízes da ala conservadora já indicaram que devem votar pela constitucionalidade da lei. Como indica Yolanda Monge em reportagem no El País, o julgamento também vai pôr à prova se os juízes nomeados por Trump cumprirão a promessa do ex-presidente de derrubar o Roe vs Wade. Na visão da colunista Moira Donegan, do The Guardian, as previsões de que o direito ao aborto será mantido no país agora parecem “incrivelmente otimistas”.
Vale lembrar que o direito ao aborto nos EUA já estava sob ataque: apenas em 2021 foram promulgadas mais de 90 leis estaduais restringindo esse direito, segundo levantamento do Instituti Guttmacher. A mais importante delas até então é a do Texas, sobre a qual já produzimos uma compilação em setembro. A nova lei proíbe a interrupção da gravidez após seis semanas, mesmo em casos de estupro e incesto. Ainda em setembro, a SCOTUS rejeitou uma ação de inconstitucionalidade contra a nova lei e, em novembro, começou a debater a decisão final sobre ela, que foi contestada diversas vezes. Essa deliberação também está em curso e também pode enfraquecer ainda mais o Roe Vs Wade.
Tais ofensivas estão muito bem articuladas e financiadas, como mostra nova investigação da OpenDemocracy. Vários grupos destinam milhões de dólares às investidas em solo norte americano e na América Latina. A Alliance Defending Freedom (ADF), por exemplo, foi quem propôs o modelo de legislação adotada pelo estado do Mississipi e foi quem financiou o advogado por trás da lei recentemente aprovada no Texas. A organização, envolvida em dezenas de casos judiciais contra direitos reprodutivos e casamento igualitário, gastou mais de 15 milhões de dólares em suas investidas no exterior somente em 2019. E 28 grupos da direita cristã estadunidense gastaram, entre 2007 e 2018, 280 milhões de dólares no mundo todo para promover a agenda antiaborto. E, como sublinha a matéria os recursos que financiaram os casos do Texas e do Mississipi também tem chegado a América Latina, por exemplo para se contrapor a ação movida por Causa Justa que demanda a descriminalização do aborto na Colômbia.
Em conversa com o SPW, Salomão Ximenes, advogado e professor de direito e políticas públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), fez o seguinte diagnóstico sobre o que significam esses eventos para a laicidade ou secularidade dos estados barasiliero e norte-americano. Salomão sublinha, entre outras coisas, que a indicação de Mendonça ao STF é, inegavelmente, um sintoma degradação do estado laico no Brasil:
“De um lado, os evangélicos conservadores reivindicam acessar os espaços de poder máximo no Judiciário e os privilégios que sempre foram cedidos aos católicos ou mesmo à comunidade judaica, grupos que sempre tiveram “seus” representantes no STF. Na lógica da disputa por hegemonia no campo religioso, não deixa de ser uma reparação, uma medida de justiça religiosa aos evangélicos cujo resultado é justamente aprofundar a ruptura com as premissas da laicidade. De outra parte, esses grupos somam uma peça poderosa no jogo de longa duração que quer conter e reverter conquistas de direitos em matéria de gênero, sexualidade e orientação sexual. É um movimento consciente de bloqueio àquela que tem sido, na prática e ainda que de forma inconstante e contraditória, a única via de afirmação de direitos fundamentais de minorias no Brasil, justo no momento em que se poderá pautar a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação”.
Um movimento similar de longo curso aconteceu nos EUA, “onde a tática de longa duração da direita conservadora logrou construir uma maioria na Suprema Corte, pautar a constitucionalidade de uma lei proibitiva do estado do Mississipi e com isso reabrir o debate sobre o direito ao aborto estabelecido desde 1973, no caso Roe versus Wade”, complementa o doutor em Direito do Estado pela USP.
Para aprofundar a análise e trazer mais insumos sobre os ataques à laicidade representados por tais movimentações nas Supremas Cortes brasileira e estadunidense, reunimos abaixo uma pequena compilação sobre esses eventos, bem como suas implicações para a política sexual nacional e regional.
Confira abaixo:
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A indicação de André Mendonça ao STF
Quem é André Mendonça, advogado e pastor ‘terrivelmente evangélico’ indicado por Bolsonaro ao STF – BBC Brasil
Veja a posição de André Mendonça, indicado ao STF, sobre aborto, armas, drogas e outros temas – O Globo
André Mendonça e o ‘salto para os evangélicos’ no Supremo – Nexo
Mendonça: É um passo para um homem e um salto para os evangélicos – Correio Braziliense
O salto evangélico é alto – José Henrique Mariante (Folha)
Como nasce o nacionalismo cristão – parte 1 – Ronilso Pacheco (UOL)
‘Religião, direito e neoliberalismo’: Congresso glorifica Mendonça no STF – UOL
O aborto em xeque nos EUA: a análise da lei do Missisipi (EUA)
Suprema Corte dos EUA indica que pode abrir caminho para restringir direito ao aborto – Folha
Suprema Corte decidirá sobre o direito ao aborto nos EUA – El País
Política Sexual em tempos de pandemia: agosto – outubro 2021 – SPW
Em espanhol:
Grupos en guerra contra el aborto en EEUU gastan millones de dólares en el exterior – OpenDemocracy
El aborto se discute en la Corte Suprema de EE. UU., ¿qué está en juego? – NYT
Em inglês
From Abortion Bans to Anti-Trans Laws, a Christian Legal Army is Waging War on America – Democracy Now!
The Supreme Court Looks Ready to Overturn Roe v. Wade – New Yorker
Justices signal they’ll OK new abortion limits, may toss Roe – AP
Sotomayor Says Abortion Case Imperils LGBTQ Rights – Bloomberg
The End of Roe – The Atlantic
The End of Roe Is Coming, and It Is Coming Soon – NYT
Inside the Economic Argument Over Abortion – NYT
Roberts Searches for Middle Ground in Abortion Case – NYT
Justice Sotomayor Expertly Exposed the Bullshit of Mississippi’s Attack on Abortion Rights – Mother Jones
Kavanaugh Implied the Supreme Court Can Be “Neutral” on Abortion. That’s Ridiculous. – Mother Jones
The supreme court is signalling that it’s ready to end Roe v Wade – The Guardian
Five takeaways from US supreme court’s Mississippi abortion rights case hearing – The Guardian
Abortion rights advocates vow to fight on after supreme court hearing – The Guardian
The Mississippi Abortion Case and the Fragile Legitimacy of the Supreme Court – New Yorker
Planned Parenthood CEO: If SCOTUS Restricts Abortion Access, Marginalized People Will Be Hurt Most – Democracy Now
How Mississippi ended up with one abortion clinic and why it matters – Washington Post