por brunz*
No começo de setembro estive pela primeira vez num mega evento feminista internacional. A partir de um convite de Sonia Corrêa faço aqui o relato das minhas impressões.
Obtive a bolsa de ingresso e estadia do AWID com a missão de ajudar a monitorar a transmissão de áudio ao vivo das plenárias (feitas pelo corpo técnico do AWID e não por empresa terceirizada) e fazer parte do Espaço de Trocas Internet Feminista! Fui com as parceiras Loreto Bravo e Maite Ibarguengoitia, da Palabra Radio, um projeto de mulheres comunicadoras no México que fomenta a participação e apropriação técnica de mulheres nos meios de comunicação popular. Contribuímos no espaço de trocas (chamado carinhosamente de hub feminista) com a Rádio Concha e com uma sessão de sexting (mensagens de celular tipo SMS com conteúdo sensual) utilizando uma rede interna e autônoma de celular que foi montada no espaço. Como o processo foi todo muito intenso, penso ser interessante fazer aqui um passo a passo do que aconteceu.
Na terça-feira dia 6 de setembro, viajei para a Bahia direto do trabalho. Cheguei ao no centro de Salvador depois de meia-noite e na quarta-feira de manhã corri para a ladeira da Preguiça pegar um equipamento de transmissão experimental de rádio que estava emprestado para um coletivo de comunicação popular de lá. De um lado, acontecia o tradicional desfile militar do 7 de setembro, e, do outro, o resistente grito dos excluídos amplificado por manifestantes que gritavam “Fora Temer”. E, eu, entre esses dois pólos, me sentindo mais anacrônica do que nunca em busca de um ônibus que me levasse até o aeroporto para pegar o transporte oferecido pelo evento que me levaria ao resort Costa do Sauípe, onde aconteceu o AWID 2016.
Foi uma experiência muito intensa: conhecer tantas pessoas quanto projetos incríveis foi muito motivador e, ao mesmo tempo, estafante. Penso que o tempo dos feminismos, da sororidade e da construção coletiva é um tempo distinto do que se vive em grandes eventos como o AWID. Mas, ao mesmo tempo, entendo e valorizo o papel e a importância de espaços como este para se conhecer e expandir redes e potencialidades feministas, assim como pensar estratégias conjuntas e se sentir ‘empoderada’, motivada a seguir adiante.
Concebemos o espaço da rádio concha coletivamente e, desde o princípio, passando pelo processo da criação da identidade gráfica e pensando a programação para o AWID, a concha já ressoava em meus ouvidos como muitas possibilidades, o que tentamos demonstrar no cartaz (imagem abaixo). E, durante o evento, mesmo com muitas dificuldades estruturais – pois num primeiro momento não tínhamos nem energia elétrica em algumas das tomadas, muito menos internet — minha impressão é que, de alguma forma, houve uma forte presença da rádio no espaço do hub de internet feminista. E desde então planos para seguir com o projeto seguem ecoando e tomando forma.
Sempre temos muitas expectativas, ainda mais numa primeira intervenção como essa num fórum internacional. E é difícil que elas sejam todas realizadas. Mas acho que fomos exitosas, explorando algumas possibilidades (e indicando a extrema necessidade!) de ampliar os usos sociais dessa tecnologia, compartilhando o espectro eletromagnético sob uma perspectiva feminista. A experiência também foi divertida e sexy, especialmente quando no caso da experiência de sexting com a rede GSM (ver abaixo). É bom dizer que a concorrência por audiência era grande, pois a todo momento estavam acontecendo atividades muito interessantes e trocas envolvendo mulheres e tecnologia, inclusive projetos brasileiros como o Manda Nudes da CodingRights; as oficinas de segurança digital para feministas da Tactical Tech; editoras da Wikipedia promovendo editatonas a fim de ampliar os verbetes de mulheres nesta rede; o projeto Kefir que oferece ecossistemas digitais; e as mulheres do núcleo GenderIT da APC comemorando 10 anos do projeto Take Back the Tech e lançando o projeto Princípios de uma Internet Feminista (entre tantas muitas outras).
Certo? Bom, então acho que este é o momento de explicar melhor o que é espectro eletromagnético? Para mim essas palavras são comuns, mas geralmente provocam um levantar de sobrancelhas quando as pessoas as escutam pela primeira vez. Assim sendo, tentarei simplificar. O espectro eletromagnético é uma propriedade do ar, através do qual são propagadas as ondas eletromagnéticas (que incluem tanto as cores, as micro-ondas, como as de rádio, TV e telefonia celular, e inclusive as radiações gama). Como é muito sabido, no Brasil (e em parte da América Latina), infelizmente o uso deste meio para telecomunicações é restrito a poucas famílias/empresas. Mas advogamos que esta é uma luta feminista também, pois o acesso as comunicações como um direito humano é um direito que afeta direta e indiretamente as mulheres, e a representatividade das mulheres e das questões feministas nos meios de comunicação tradicionais ainda é muito pequena. Desta maneira, queremos ampliar o espectro do espectro eletromagnético a partir das perspectivas dos múltiplos feminismos. No Fórum AWID, por exemplo, fizemos experimentos de rádio e de rede de celular autônomas.
A rede de telefonia autônoma é um projeto da organização Rhizomatica, situada em Oaxaca, no México, e foi responsável pela conquista da primeira concessão de faixas do espectro eletromagnético para telefonia de uso social e indígena no país. No Fórum AWID, foi criada experimentalmente uma rede de telefonia celular interna no hub de internet feminista, e a utilizamos para uma sessão de sexting (troca de mensagens de conteúdo sexy) na qual cada pessoa cadastrava seu telefone na nova rede e trocava mensagens com quem estivesse no alcance da mesma. As mensagens trocadas foram projetadas, a fim de que todas as pessoas tanto se divertissem, quanto atentassem para a vigilância implementada das empresas que provêm serviços de telefonia, que têm acesso a todo o conteúdo que passa por suas infraestruturas (por isso, a necessidade de uso de criptografia para conseguir segurança da informação). No caso da rede autônoma, a identificação da pessoa era somente por um novo número adquirido no cadastro da rede interna (que sugeríamos que fosse colado nas costas de cada usuária a fim de que qualquer pessoa pudesse ver o número de forma mais discreta, sem que a outra pessoa visse), gerando uma brincadeira interessante de buscas pelos números e pelas pessoas por trás das mensagens. Quer saber mais sobre o sexting? Clique aqui para ler mais relatos (em inglês).
Concluindo: fiquei muito feliz e motivada ao saber que existem tantas feministas — altamente capacitadas em tecnologia – que estão pensando novos caminhos feministas para a Internet e novas formas de se utilizar as tecnologias para diminuir desigualdades de gênero e muitas outras.
*brunz é artista visual, ativista e comunicadora envolvida com tecnologias livres, feminismos e direitos humanos. Atualmente pensa junto a FMea, uma proposta de rádio livre feminista e pesquisa reprodução de hierarquias e descentralização de poderes no espectro eletromagnético, com a perspectiva da tecnociência feminista, em um mestrado na linha de pesquisa Tecnologias da Comunicação e Estética, na Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalha como assistente de comunicação do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual | GTPI, da ong ABIA | Assoc. Brasileira Interdisciplinar de Aids, no Rio de Janeiro.