O Observatório da Prostituição (LeMetro/UFRJ) está preparando relatório sobre os efeitos dos Jogos Olímpicos Rio 2016 sobre o trabalho sexual. Os resultados da pesquisa, que sucede estudo similar realizado durante a Copa do Mundo de 2014, só devem ser divulgados no início de outubro, mas o SPW adianta algumas evidências e análises obtidas a partir do trabalho de campo realizado pela equipe do Observatório entre julho e o final dos Jogos em 21 de agosto. O projeto foca o trabalho sexual de mulheres cis e trans e resulta de parceria entre as ONGs Davida, Transrevolução, Grupo Pela Vidda, ABIA e o projeto Casa Nem, com apoio da Open Society Foundation para a parte visual da pesquisa. O estudo também acompanhará os Jogos Paralímpicos, em setembro.
Cerca de 30 pessoas integram a equipe, entre prostitutas e pesquisadores, além de profissionais que vêm trabalhando a dimensão audiovisual do projeto etnográfico. Essa equipe está auxiliando trabalhadoras sexuais a retratarem, através da produção de imagens e áudios digitais, os seus cotidianos de trabalho e moradia, seus ‘espaços de vida’, para projetar o olhar delas sobre suas vidas na cidade durante um megaevento. A curadoria será feita pelas próprias autoras e, posteriormente, estará disponível na internet .
Apresentamos aqui alguns dados e impressões preliminares compartilhados por integrantes do grupo de pesquisa, que indicam que, de fato, houve mais oferta que demanda de serviços sexuais, o que frustrou, tal como durante a Copa de 2014, as expectativas de trabalhadoras e donos/as de casas. Até o momento, a equipe de pesquisa do Observatório avalia que os Jogos Olímpicos não mobilizaram a maior repressão estatal em áreas de prostituição, como havia ocorrido durante a Copa, embora episódios de discriminação tenham sido relatados. As imagens desse texto são fotos feitas por profissionais que trabalham nos mercados sexuais do Rio de Janeiro e participam do projeto.
Qual a avaliação inicial sobre o impacto dos Jogos no comércio do sexo na cidade? Que tipo de efeitos ocorreram sobre a demanda?
Nossa percepção inicial é que não há grandes mudanças na prostituição de mulheres cis e trans devido aos Jogos. A oferta foi muito maior que a demanda, em geral, e o excesso de oferta não parecia gerar mais demanda. Até agora, a grande maioria das mulheres com quem estamos falando avalia os Jogos negativamente, e tanto elas como a grande maioria dos/as donos/as das casas afirmaram que não chegou perto da expectativa que tinham. Mas ainda é incerto se isto ocorre porque o comércio sexual caiu ou porque os Jogos não melhoraram sensivelmente o comércio sexual. E isto varia de ponto em ponto.
Só houve um local, na Barra, onde a demanda e o número de mulheres trabalhando parece ter aumentado. Mas é importante notar que isso pode ser apenas maior concentração de mulheres e clientes, e não aumento do mercado no sentido amplo. Por exemplo, outro ponto na própria Barra ficou muito vazio durante os Jogos. Isso está relacionado com mobilidade que foi grande. Os Jogos motivaram alguns deslocamentos na geografia do comércio sexual da cidade, com prostitutas do Centro e da Vila Mimosa trabalhando noites em Copacabana e Barra da Tijuca, o que é decorrente também dos Jogos e da presença de turistas na cidade inteira.
Quais dificuldades e ameaças foram notadas em relação ao exercício da atividade? Houve repressão ou relatos de violência?
Ouvimos relatos de que a polícia estava expulsando as prostitutas das ruas de acesso ao Maracanã. É difícil saber se isto foi uma medida anti-prostituição ou pró-segurança em geral. Fora isto, parece que os Jogos tiveram menos repressão em áreas de prostituição do que na Copa do Mundo. Notamos também uma redução de presença ostensiva da polícia em áreas de prostituição, comparado com a Copa do Mundo.
Temos dúvidas quanto à operação policial contra uma suposta “agência de pedofilia” localizada perto do Parque Olímpico. Embora esse lugar tenha sido retratado como espaço de exploração sexual de crianças é importante lembrar que esse argumento é sempre mobilizado em operações anti-prostituição. E, por enquanto, a polícia só deu informações sobre as acusações e evidências circunstanciais, sem que nenhum explorador tenha sido preso ou criança resgatada. Faremos entrevistas com os agentes estatais envolvidos nessas operações para apurar melhor o que aconteceu.
Por outro lado, vimos e ouvimos alguns casos de putafobia, sobretudo nos locais onde as prostitutas circularam na tentativa de arrumar programas fora de pontos “tradicionais” de prostituição. Em Ipanema, por exemplo, testemunhamos agressões e violências simbólicas por parte de brasileiras não prostitutas contra prostitutas em bares que não são “de prostituição”. Também ouvimos a retórica abolicionista sendo usada por homens para justificar a não compra do sexo em situações de sedução. Muitas prostitutas comentaram negativamente sobre suas experiências em tentar circular em espaços que qualificaram como “de playboy”, como Praça Mauá, Praça 15 e os bares de Ipanema. Em outras palavras, parece que a maior inclusão de mulheres não prostitutas nesses espaços pode ter gerado maiores níveis de putafobia, tanto por parte das mulheres não prostitutas, quanto por parte dos homens. É notável que ouvimos nessas ocasiões coisas como “A França já criminalizou essa sem vergonhice e o Brasil deveria fazer isso também“.
Que paralelo, ainda que preliminar, é possível traçar entre as Olimpíadas 2016 e a Copa do Mundo 2014? Que semelhanças e diferenças podem ser identificadas em relação ao panorama da prostituição em ambos os megaeventos?
É importante começar lembrando o óbvio: a prostituição acontece no Rio o ano todo, não só durante os megaeventos esportivos. O que temos percebido é que há vários fatores que têm influenciado a configuração da prostituição na cidade que precisam ser levados em conta ante se fazer essa comparação.
Por exemplo, percebemos, nos meses anteriores aos Jogos, que a crise econômica e o fechamento de várias casas do Centro ao longo dos últimos anos afetaram o número de mulheres trabalhando (mais mulheres em menos casas). A crise já estava afetando o movimento antes dos Jogos. As mulheres esperavam que o movimento melhorasse com os Jogos, embora desde a experiência da Copa do Mundo, desconfiavam que isso poderia não acontecer (e de fato, não aconteceu).
É importante observar que há diferenças entre os megaeventos. Na Copa, as atividades estavam concentradas na Fifa Fan Fest e no Maracanã. Houve uma concentração de turistas em certos lugares da cidade, inclusive nos pontos de prostituição como Copacabana, enquanto outros lugares estavam muito vazios. Houve também muitos feriados na cidade que deixaram vazias áreas como o Centro e a Vila Mimosa, que são frequentados por trabalhadores cariocas.
Nos Jogos Olímpicos, houve menos feriados e as atividades estavam espalhadas pela cidade inteira, fazendo os turistas circularem por muitos pontos, da Barra, ao Centro e até mais longe no Engenho Novo e Deodoro. Diferente da Copa do Mundo, houve muitas atividades no Centro e Barra da Tijuca. Copacabana continua como um centro de turismo, além de local de algumas competições – como falamos acima, e isso teve reflexos na prostituição.
Resumindo, o que temos como observação inicial, e considerando a cidade inteira, é que o movimento não foi tão ruim quanto na Copa, mas em alguns casos foi “normal”, não chegando perto da expectativa que algumas das mulheres tinham. Os efeitos dos Jogos foram muito mais localizados do que na Copa do Mundo, onde vimos uma clara concentração de prostitutas e clientes em Copacabana. Nos Jogos, as concentrações eram por ponto/casa e num ritmo dia sim, dia não. Poucas casas parecem ter visto uma melhora em geral. Da mesma maneira, o comércio sexual não ficou tão devastado no Centro como aconteceu em 2014.