por Roberta Clarke
Mia Mottley se tornou a Primeira Ministra de Barbados no dia 24 de maio de 2018, quando a sua legenda, o Partido dos Trabalhadores de Barbados (Barbados Labour Party ou BLP em inglês) conseguiu trinta cadeiras no Parlamento. A eliminação de representantes do Partido Democrata dos Trabalhadores (Democratic Labour Party ou DLP em inglês) que esteve no poder pelos últimos dez anos é um marco histórico e surpreendente (ou épico, como dizem os millenials). Essa vitória é impressionante porque, pela primeira vez desde as primeiras eleições após a independência, um único partido conseguiu todas as cadeiras e o fez com ampla margem de votos em todos os distritos eleitorais. É histórica porque Mia Mottley se tornou a primeira mulher a ocupar o posto de Primeira Ministra de Barbados.
No entanto, Mia (como ela é chamada familiarmente pelos barbadianos) não é uma neófita política. Ingressou na política partidária antes dos trinta anos. Entre 1994 e 2008, ela foi Ministra da Educação, Ministra de Assuntos Econômicos e Desenvolvimento, Procuradora Geral e, em durante um certo período, foi designada Vice-Primeira Ministra. A despeito de uma trajetória de realizações e inovações nas pastas que dirigiu, ao longo de sua carreira política, Mottley foi acusada de ser uma mulher presunçosa, em razão de sua origem de alta classe média. Essa crítica foi usada para desqualificar sua trajetória política, mas não resistiu às suas extraordinárias habilidades intelectuais e oratórias
Assim sendo, a despeito das intrigas sobre sua presunção, que também evocavam suspeitas morais em relação à orientação sexual, Mottley assumiu a liderança do BLP após a derrota eleitoral do partido em 2008. No curso de dois anos, cinco dos seus colegas parlamentares masculinos retiraram o apoio a ela em favor da candidatura do Primeiro Ministro anterior Owen Arthur, que então passou a liderar o partido, levando a uma segunda derrota eleitoral em 2013. O BLP então retornou à direção de Mottley, que reformulou cuidadosamente o partido, incorporando pessoas jovens e lançando uma nova mensagem aprimorou a mensagem política de “emancipação, empoderamento e inclusão”.
Esse também foi um período de distração e turbulência na política de Barbados, pois Owen Arthur mobilizou várias iniciativas para desestabilizar Mia. Mas ela, estrategicamente, se manteve concentrada na crítica ao governo do DLP, então no poder, recusando ceder às fofocas sobre sua vida pessoal e às tramas políticas internas do partido. É importante mencionar esses aspectos porque ao manter seu foco nos problemas de governança, falta de transparência e ineficiência do DLP, Mottley conseguiu convencer a sociedade de uas habilidades políticas e técnicas para liderar o país.
A vitória eleitoral de 2018 foi indiscutivelmente uma vitória da decência na política e implica uma promessa de eficiência e rejeição da má administração. Esses aspectos não excluem o papel que o gênero desempenhou nessas eleições. O DLP tentou fazer com que temas sobre gênero e sexualidade se tornassem um para-raios destinado a implodir a imagem de Mia. Mas essa tática falhou de forma espetacular. Numa eleição que contou com 60% do eleitorado, ela obteve 80% dos votos e isso nos reflete uma forte rejeição à forma como homofobia e misoginia são utilizadas nos processo eleitorais. Ao contrário, o eleitorado se alinhou às propostas do BLP, sob a liderança de Mottley, no sentido de estabilizar a moeda, reduzir a dívida pública, solucionar o péssimo sistema de saneamento básico do país e assegurar proteção e provisionamento do sistema de seguridade social.
Dada a história e a extensa sombra da escravidão e do colonialismo, a sociedade barbadiana tem um antigo compromisso com o pacto social pela “equidade” e mobilidade social. Os governos que se seguiram à independência honraram essas expectativas através de um modelo social democrata que reconhecia o papel do mercado, mas também o contrapeso que representa o papel regulador e redistributivo do Estado.
O Estado barbadiano assegura de forma universal e gratuita o acesso à educação e à saúde e também há um sistema de seguridade social relativamente robusto. Esse nível de provisionamento social foi possível graças à taxação progressiva. Além disso um imposto uniforme como o Imposto sobre Valor Agregado (Value Added Tax) tem sido implementado com algum nível de sensibilidade em relação a níveis de renda e no que diz respeito a itens de consumo básicos, que são isentos do VAT.
A economia de Barbados entrou em recessão por ocasião da crise econômica global de 2007- 2008. As receitas provenientes do turismo e de serviços financeiros diminuíram. Sem uma estratégia clara de crescimento, redução ou diversificação de despesas, a primeira resposta do governo foi aumentar o endividamento interno e externo, levando a dívida do país crescer a 175% entre 2008 e 2018. Barbados foi declarado como o terceiro país mais endividado do mundo, depois da Grécia e do Japão. Nesse contexto, os serviços públicos se a deterioraram em níveis drásticos. Esta é a crise que deve que ser enfrentada agora. Como poderá o estado de Barbados manter eu compromisso com uma política progressista e de justiça social em tempos da brutal austeridade induzida pela dívida?
Fica a pergunta: este governo seguirá os métodos neoliberais de reduzir o tamanho do Estado, privatizar os serviços essenciais e introduzir taxas aos usuários dos sistemas de educação, saneamento e assistência médica como forma de reduzir os gastos públicos? As políticas destinadas a estimular o crescimento econômico e atrair investimentos estrangeiros diretos serão implementadas às custas dos direitos dos trabalhadores, da propriedade nacional e do controle de importantes ativos e recursos?
Em seu primeiro mini-orçamento, a primeira-ministra explicitou dois princípios que vão orientar as difíceis decisões a serem tomadas por seu governo:
“…O primeiro deles é que o encargo deve ser compartilhado por todos nós. O trabalho e os trabalhadores não podem arcar com todo o peso, mas tampouco o capital deve suportar sozinho esses encargos. Nosso segundo princípio fundamental é que devemos sempre proteger os mais vulneráveis em nossa sociedade”.
Quando foi Ministra das Finanças, Mottley deixou claro que para ela a estabilização macroeconômica deve ser atingida por meio de três medidas: 1) promoção do crescimento sem o uso excessivo de concessões ou subsídios fiscais; 2) reestruturação da dívida pública para ampliar o espaço fiscal; e 3) gerar excedentes fiscais anuais. No ‘mini’ orçamento publicado dezoito dias após as eleições e elaborado com base no princípio de compartilhamento dos custos do ajuste, uma série de impostos, taxas e contribuições adicionais foram reestruturadas e introduzidas. Seguindo uma perspectiva progressista, uma faixa mais alta de taxa a 40% sobre rendas superiores a US $ 75.000 foi instituída. Algumas empresas públicas sofreram redução em seus orçamentos anuais. Essas são as primeiras medidas de austeridade e há mais por vir, incluindo uma possível redução ou redefinição do perfil do emprego no setor público. No entanto, o espaço político também foi assegurado por meio de um aumento salarial de 5% para os funcionários públicos que não tinham recebido um aumento salarial desde 2007 e com o aumento das aposentadorias não contributivas.
Nestas medidas, é possível perceber o equilíbrio que o governo do BLP está tentando imprimir ã sua gestão: garantia da justiça social através do estímulo aos setor privado para assegurar o crescimento econômico e meios de ação garantidos por contribuições e impostos sobre a renda. Serão elas capazes de garantir a justiça social para além da retórica? A abordagem do governo parece ter sido endossada pelo FMI. Sem dúvida, esta chancela promove ansiedade para aqueles que associam o FMI a programas fracassados de ajuste estrutural, aumento da desigualdade, privatização de bens públicos e austeridade desproporcionalmente carregada pelas classes de rendas média e baixa.
Feministas caribenhas e ativistas da justiça social estão monitorando atentamente e de forma crítica essa agenda. O desafio para o movimento é compreender a margem de apoio que o governo de Mottley tem. O movimento está desafiado a influenciar as escolhas políticas de uma governo que aposta na manutenção de programas socioeconômicos essenciais, busca assegurar o valor da moeda (a desvalorização aumentará imediatamente os custos de vida e a pobreza), estimular o crescimento e reduzir o endividamento. Não é suficiente ficar nas linhas laterais reivindicando aumento da despesa pública.
Além de estabilizar a economia, este governo também tem outras prioridades denominadas “missões críticas, as quais incluem programas de emprego e empoderamento de jovens, enfrentamento do crime, promoção da segurança em comunidades e reformulação do sistema de justiça criminal. No entanto, há parâmetros para essa da agenda de justiça social. Estão ausentes referências a algumas questões que se tornaram emblemáticas dos desafios dos direitos humanos no Caribe estão ausentes no Manifesto do BLP, como a descriminalização da homossexualidade (referida como intimidade entre pessoas do mesmo sexo) e do trabalho sexual e a abolição da pena de morte.
É razoável que os movimentos sociais esperem que a Primeira Ministra Mottley gaste tempo e capital políticos com essa questões, dada a escala dos desafios socioeconômicos que o país enfrenta? E de qualquer modo, garantir as condições econômicas é pré-condição para assegurar os direitos sociais e econômicos ao trabalho decente, à assistência médica de qualidade, à educação e à proteção social.
O que o novo governo promete, mesmo que tratado de maneira vaga, são referendos que permitiriam ao “nosso povo, e não apenas parlamentares, ter um papel apropriado na tomada de decisões sobre questões fundamentais que afetam a estabilidade e coesão de nossa nação”. Essas questões emblemáticas serão, sem dúvida, abordadas em consequência da aplicação de um recente julgamento emitido pelo Tribunal de Justiça do Caribe (leia em inglês) sobre Barbados. Nele, a pena de morte foi considerada inconstitucional e o impedimento constitucional de rever leis pré-independência (como as disposições sobre sodomia), que são violações aos direitos e liberdades fundamentais, foi removido.
Nos anos 1970, após a Primeira Conferência Mundial sobre as Mulheres na Cidade do México, todas as leis barbadianas foram revistas para superação da discriminação por sexo e isso foi feito de maneira estruturada. É também digno de nota que, em 1981, Barbados reconheceu as relações de coabitação e, ao fazê-lo, promoveu igualdade e equidade econômica para as mulheres em uniões fora do casamento. Em 1983, através da determinação de Billie Miller, (mentora política de Mia Mottley que agora participa do gabinete como embaixadora), a Lei de Interrupção Médica da Gestação foi aprovada, garantindo acesso ao aborto seguro. Embora ainda haja desigualdade de gênero em Barbados, a maioria dos aspectos de discriminação formal e direta foi eliminada. No entanto, a cultura patriarcal persiste. O manifesto do BLP promete incidir sobre a desigualdade de remuneração, a licença-paternidade e a violência doméstica e de gênero. Por outro lado, o documento é omisso quanto a enfrentar a persistência de estereótipos e normas de gênero que, juntamente com a desigualdade de renda, restringem as vidas de setores de mulheres, homens, meninos e meninas de maneira profunda. Há ainda pouca indicação sobre como o sistema educacional será reformado para atuar como um agente de socialização baseado nos direitos humanos.
Ao entender a política como a arte do possível, a mudança cultural, inclusive através das alavancas como as reformas legais também é uma “missão crítica”. O movimento de mulheres caribenhas deseja que Mia Mottley seja a líder de transformação de que o Caribe precisa. Ela mesma já desenvolveu uma prática de comunicações e consultas para que o país entenda o escopo das decisões que devem ser tomadas. Ainda assim, nós, ativistas pela justiça social, temos muito trabalho pela frente: devemos ser realistas quanto ao que podemos esperar de alguém que lidera uma população com visões sociais, religiosas e culturais muito diversas. Esse trabalho inclui dizer a verdade aos poderosos; não deixar que o pragmatismo obscura nossos princípios; defender os direitos humanos; sermos proativa em nossas recomendações de política; e atuar em todas as nossas esferas de influência reivindicando igualdade, justiça e liberdade.
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Roberta Clarke é ativista de direitos humanos e justiça social. Trabalha na Comissão Internacional de Juristas e é chefe da Coalizão de Trinidad e Tobago contra a Violência Doméstica.