Por Alipio de Sousa Filho, cientista social e professor da UFRN
Hoje, é voz corrente que há homens que, sendo gays, mas não “assumidos”, tornam-se agressivos com os próprios gays, até ao nível de assassiná-los. Estes seriam gays que sofreriam de “homofobia interiorizada” ou “internalizada”, isto é, que levaram a homofobia para dentro de si próprios, internalizando-a e fazendo das ideias homofóbicas suas próprias ideias sobre o que seria a homossexualidade em si mesmo e nos outros: esta representada como um atributo negativo, algo abjeto, a ser rejeitado. A tese da internalização da homofobia por homens que presumidamente seriam gays, mas que não se aceitariam, propõe que, como um de seus efeitos, a homofobia interiorizada faria que alguns gays passassem a cultivar um ódio tão profundo à homossexualidade que passariam a se odiar desequilibradamente, tornando-se algozes de si e de outros.
De clara tendência psicologizante, essa é uma abordagem do assunto que nada mais é que a continuidade da perspectiva patologizante das homossexualidades. A obsessão por explicar a subjetividade de gays, lésbicas e trans pelo prisma de teorias psicológicas ou psicanalíticas, o que incluiria explicar também suas sexualidades, faz que tudo deles seja pensado a partir da ótica do indivíduo psicologizado e nunca em termos sociológicos e políticos. Quando essas teorias se tornam manual das mídias, informação de almanaque, opinião de bazar… tão pior!
Vejamos o caso recente do ataque à boate “Pulse” nos Estados Unidos. Rapidamente, especialistas e canais diversos da mídia passaram a dar o “diagnóstico” do “assassino”: um rapaz mulçumano, frequentador da própria boate, um espaço gay, e com práticas de paquera com homens e uso de aplicativos de busca por parceiros sexuais masculinos. O rapaz teria essas práticas, mas, ao que parece, não se sentindo bem, decidiu destruir a vida daqueles que ele enxergava como abomináveis, mas felizes, o que lhe incomodaria: a descontração, a festa e a alegria da boate, evocando essa felicidade, pareceu-lhe o cenário adequado para praticar seu último gesto de ódio à homossexualidade, um ódio que seria também ao seu próprio ser, um ser dividido entre a homossexualidade e a heterossexualidade. Afinal, ele era também casado com uma moça afegã.
Quando muito já se fez para que não se voltasse a falar das homossexualidades como “doença”, eis que retorna a ideia de “homossexuais doentes” pela “internalização da homofobia”. A novidade é que a homossexualidade aparece como causa da própria homofobia: gays não-assumidos são gays-doentes… tornando-se homofóbicos. Repetindo: se todo homofóbico é um “gay enrustido”, temos aí um “problema psicológico” de que padeceriam os homossexuais não-assumidos, sendo a homossexualidade a causa do problema. Então, em princípio, por mal-estar com a homossexualidade, gays se tornam homofóbicos. Os homofóbicos seriam sempre homens (ou mulheres) com alguma perturbação homossexual. A dedução que se pode fazer, então, é que homofóbicos nunca seriam heterossexuais “convictos”, heterossexuais “verdadeiros”. A heterossexualidade (sem perturbações da homossexualidade) não seria fonte de homofobia.
Mas o que se deixa de dizer quando se aborda o assunto dessa maneira? Primeiro, que a internalização da homofobia não é fenômeno exclusivo da subjetividade de gays, mas algo que se verifica na subjetividade de muitos outros indivíduos, muitos destes heterossexuais. Segundo, a homofobia não é um fenômeno de caráter individual e psicológico, mas um fenômeno social, constituído na vigência da ideologia que torna norma a heterossexualidade e a homossexualidade uma abjeção, e que, internalizada, faz que o indivíduo aja enquanto agido por ela. Qualquer indivíduo. Terceiro, que a interiorização da homofobia pelos próprios gays – quando é o caso – não é algo intrínseco à presumida dificuldade natural do ser homossexual. Ninguém sofre por ser homossexual, mas pelo rechaço social à homossexualidade, sofre-se pela negação social da homossexualidade. Nenhum homossexual sofre por sua homossexualidade, mas pelo rechaço social à sua escolha, à sua autodeterminação erótica, ao seu desejo. E é esse próprio rechaço social que dá origem à homofobia. Primeiro como ideologia, discurso social, depois como “homofobia interiorizada”.
Em livro de 2007, cujo título é “Que querem os gays?”, David Halperin, professor da Universidade de Michigan, já denunciava o mau resultado – pelo viés psicologizante e patologizante – do uso da noção de “homofobia interiorizada” nas abordagens, nos Estados Unidos, do assunto da prevenção contra o HIV, como explicação para a adoção de práticas sexuais de risco, que, para o caso de gays, como consequência de uma presumida desvalorização patológica de si por eles próprios, produzida pela interiorização de representações negativas da homossexualidade, agiriam como se buscassem sua própria morte. Como desvalorização de si e como uma espécie de monstro inconsciente, a “homofobia interiorizada” conduziria gays a práticas nas quais arriscariam suas vidas e a de outros. Para Halperin, uma atribuição de comportamento patológico aos gays, sem passar pela análise e denúncia dos efeitos da própria homofobia como desvalorização social da homossexualidade em termos muito anteriores a qualquer realidade interna aos indivíduos. Ao invés da denúncia da homofobia como um fenômeno e uma construção social a serem removidos de nossas sociedades, a transformação da “homofobia internalizada” em um problema individual, e, no caso de gays, algo de pessoas deficientes em reflexão e determinação, indivíduos arrastados pelas forças inconscientes, sucumbidos à pulsão de morte. Individualização, psicologização e patologização de um problema social e coletivo que é também um problema político em sociedades que não se decidem pela remoção, por meio da educação social geral, da ideologia que torna norma a heterossexualidade e uma abjeção a homossexualidade.
A homofobia, para quem a internaliza, não é um problema psicológico, mas um fenômeno e uma construção social a serem, pela educação e pela política, enfrentados.