Estupro, miséria humana e processo penal – Por Lucas Sada
Evitei ao máximo fazer qualquer comentário sobre o lamentável “Caso do Estupro Coletivo” (me recurso a citar o nome da adolescente, pois não compactuo com sua (re)vitimização) que invadiu e dominou o debate público. Tenho consciência da complexidade e da delicadeza do tema: não existe uma só área do conhecimento que dê conta de analisar um fenômeno social tão complexo e muitas são as minhas limitações. Agrega-se isso a natural dificuldade de emitir qualquer opinião sem ofender o justo sentimento de revolta que se espalhou por todos com um mínimo senso humanidade e que atingiu especialmente as mulheres que sofrem cotidianamente com a violência de gênero. Prefiro, porém, errar na exposição da análise a me omitir.
Em um olhar muito superficial pude visualizar, ao menos, dois grandes “grupos” de posição sobre o “que fazer” especificamente em relação fato[1]: (I) rejeição integral da versão da vítima e/ou justificação da violência sexual a partir de seu comportamento pretérito; e (II) assunção integral da versão da vítima. Dentro do segundo grupo identifico: (II.a) exigência de resposta aflitiva na exata medida da violência cometida, isto é, com o estupro/empalamento dos suspeitos do crime; (II.b) exigência de respostas aflitivas inconstitucionais como tortura, linchamento, pena de morte e similares; e (II.c) exigência de resposta penal imediata através da prisão preventiva dos suspeitos do fato e até mesmo daqueles que compartilharam as imagens (já iniciada através de uma midiática operação policial deflagrada poucas horas depois da exibição de uma deplorável entrevista com a vítima no “Fantástico”)
É somente com o grupo “II.c”, na sua imensa pluralidade que vai desde os setores moderados da direita até, arrisco dizer, boa parte pensamento progressista/de esquerda que eu gostaria de dialogar. Antes disso, analisemos de forma sumária e esquemática os demais “grupos” identificados:
I: Opto por não tecer maiores comentários diante de tamanha barbárie. É um pensamento abjeto pautado nas manifestações mais brutais de machismo que precisa ser duramente enfrentado. Parece-me, em juízo especulativo, que as mulheres do movimento feminista tem tido enorme sucesso nesse “combate” seja através textos, reportagens ou protestos. Já li inúmeras manifestações femininas expondo o absurdo desse tipo com as quais tenho aprendido muito. [2]
II.a: Muito similar ao grupo “I” temos aqui apologia a violência sexual. Trata-se da defesa e não da rejeição da prática do estupro como ação imoral e abjeta. Este grupo vê no estupro uma função positiva: de correção do agressor ou de retribuição do mal causado. Difere-se do primeiro em único aspecto: identifica outro alvo “estuprável”, qual seja, o próprio estuprador. Sem falar da notória reprodução de machismo contida na famosa frase “vai virar mulherzinha na prisão”. Fica nítido que para os defensores da posição que ao adquirir a condição de “mulher da prisão” o agressor de outrora assume a posição de vítima de estupro.
II.b: Tipicamente de extrema-direita é uma posição que nos momentos de grande comoção ganha até setores “progressistas” e movimentos de minorias ainda que de forma residual. Além de defender algo inconstitucional e ilegal, desconsidera-se a total ineficácia de punições aberrantes para reduzir a violência sexual. [3]
Para finalmente estabelecer o diálogo proposto faço inicialmente um alerta, qual seja, parto de uma perspectiva de abolição do sistema penal capitalista, tão somente por verificar sua eficácia invertida[4]. Contudo, antes de prosseguir, é ainda importante esclarecer: um movimento que se pretenda respeitável jamais poderá censurar uma vítima de violência sexual (ou seus familiares) que procura(m) a justiça criminal. Inúmeras são as razões: (a) essa é a única resposta que, em geral, se oferece para expiação do sofrimento, (b) ninguém é obrigado a conhecer, muito menos aderir na sua prática cotidiana, aos abolicionismos e (c) não se pode exigir heroísmo de quem é acometido por violência tão atroz. É compreensível inclusive que vítimas desejem a vingança privada nas suas formas mais brutais.
Além disso, apesar da minha inclinação abolicionista, vou focar meus comentários sob uma ótica bem menos “ousada”: a defesa de um processo penal conforme a Constituição da República. Portanto, o debate aqui se centra não no apoio jurídico/institucional que, por lei, a vítima tem direito, mas no discurso punitivo extremado que um setor está encampando. Embora se reconheça a legitimidade, nesse momento, das instâncias ordinárias, aqueles que tem um mínimo de conhecimento crítico sobre o sistema penal, sabem que o processo penal tem pouco ou nada de positivo para oferecer a vítima. Esta, no processo penal “moderno”, não tem qualquer centralidade, posto que a relação fundamental estabelecida é entre indivíduo e Estado. É evidente que vítima tem direitos de reparação a partir do fato delituoso, mas o local ideal para esse pleito não é o processo penal que, caso assuma tal postura, se transforma em revanchismo e vingança.
Aqui entra meu argumento e meu maior incômodo: não há contradição entre se solidarizar com o sofrimento da vítima a apoiando, sem qualquer juízo culpa, e, ao mesmo tempo, defender que, no estrito âmbito da apuração da responsabilidade criminal dos supostos culpados, se respeite o mínimo democrático do processo penal: presunção de inocência (em suas três dimensões), contraditório e a ampla defesa. Preciso ressaltar para evitar equívocos: em um certo sentido, pouca importa o que de fato acontece(u), pouco importam os elementos indiciários presentes (nesse caso o vídeo e alguns depoimentos de suspeitos), pois toda vítima que narra uma violência sexual tem direito à assistência jurídica, médica, psicológica e social. Isso jamais pode estar condicionado a comprovação de culpa do acusado e tão pouco ao registro de ocorrência do fato como pretende a banca evangélica através do PL 5069/2013.
O problema que surge é que, como já dito, o processo penal não é o local da vítima por excelência: aqui o vulnerável, ou como diz Ferrajoli, o débil é inegavelmente o acusado. Infelizmente a persecução penal impõe necessariamente à vítima o terrível ônus de reviver todo sofrimento passado tendo, necessariamente, sua versão posta em questão. É justamente essa produção de dor que o processo penal produz na vítima um dos centros da crítica abolicionista e dos defensores da justiça restaurativa [5]
Pode-se acreditar e, no caso, pessoalmente acredito que houve violência sexual, mas o processo penal democrático nos impõe a dúvida. Sim, no plano da persecução penal estamos obrigados a duvidar, por mais que isso possa nos angustiar ou parecer “incoerente” – não são as nossas impressões iniciais ou o nosso juízo pessoal que devem nos guiar, mas, ao contrário, o estrito respeito as “regras do jogo processual”. Há que ser enfático: não existe processo penal, inclusive por crime sexual, que não questione a palavra da vítima. Se não for assim (e alguns parecerem desejar que não o seja), o que se tem é qualquer coisa menos o processo como pretendido pela Constituição de 1988. É da essência do processo penal que a versão da acusação (que retrata a versão da vítima no todo ou em parte) seja contraposta aos argumentos defensivos. Além disso, no processo penal constitucional, vigora, como regra de julgamento e por decorrência da presunção de inocência, o princípio do in dubio pro reo. [6]
Não é apenas contraditório, mas contraproducente para as distintas lutas pela eliminação, redução ou mesmo pela “racionalização” da violência estatal punitiva que se admita que nos crimes sexuais baste a palavra da vítima para o juízo condenatório. Não se ignora que seja essa a posição dominante em nossos tribunais superiores [7] e também não nos deve causar espanto – são os mesmos responsáveis pela superlotação do sistema carcerário brasileiro – inegavelmente uma das maiores expressões da barbárie entre nós. Isso, contudo, não nos autoriza, mesmo que munidos das melhores intenções, a alimentar uma lógica autoritária de presunção de culpabilidade que, na prática policial e judiciária, vitimiza milhares de homens e mulheres sobretudo os pobres e negros. Não há como se relativizar a presunção de inocência para o “bem”: quando se autoriza o descumprimento de uma regra constitucional se abre a porta para todo tipo de arbitrariedade.
Não ignoro que no caso em questão há um vídeo que retrata uma cena degradante: ainda assim, não há que se falar em “prova”, tão pouco em “prova cabal” nesse momento. Em sentido técnico, prova é aquilo que se constrói sob o crivo do contraditório e ampla defesa e, até agora, sequer existe relação processual instaurada (o que produz no inquérito policial são meros “atos de investigação”). A despeito da consideração informal (em oposição à processualidade) sobre vídeo “comprovar”, ou não, integralmente a versão da vítima é quase consenso doutrinário (que consegue reunir até mesmo relativistas epistemológicos radicais e cientistas) que não se encontra no processo penal a “verdade real”[8]. Portanto, ainda mais em um momento tão inicial, há que se ter sim “cautela” com conclusões precipitadas.
Nessa linha, não é possível que, a pretexto de se solidarizar com a vítima, um setor considerável da esquerda passe a defender um modelo de processo penal autoritário onde polícia, ministério público e judiciário sejam acometidos pelo “quadro mental paranóico” que Franco Cordeiro nos ensinou: o primado da hipótese sobre o fato. Isto é, o cenário onde a primeira versão oferecida é tomada como verdadeira e todos os atos seguintes se direcionam no sentido de confirmar a hipótese primeira desconsiderando contradições e hipóteses laterais[9].
Por evidente eu reconheço que, nesse caso em especial, a “cautela” que a primeira autoridade policial teve ao conduzir a investigação não foi motivada pelos nobres desejos de cumprir a Constituição. O machismo e classismo muito provavelmente explicam essa conduta. Contudo, embora as vítimas de violência sexual não se sintam acolhidas no sistema de justiça criminal (nem poderiam ser) não me parece que se possa dizer que essa “cautela” seja generalizada, dado o alto grau de rigor com que a polícia em geral trata os acusados por crimes sexuais.
De igual modo, repudio, e devemos todos repudiar, a pergunta feita sobre o comportamento sexual pretérito da vítima e qualquer tipo de tratamento ofensivo que possa ter sido dado. Concordo inteiramente que o fato seja investigado pela delegacia especializada responsável (DCAV – Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima) que tem, ao menos em tese, melhores condições de atender de forma minimamente digna a vítima.
Cabe, entretanto, ainda perguntar: como nós, que lutamos contra o absurdo uso de prisões provisórias em nosso país[10], podemos agora defender que suspeitos sejam presos previamente sem qualquer fundamento cautelar? Falando de modo abstrato: por qual razão os suspeitos já identificados não deveriam ser presos se eles, por exemplo, podem fugir? A despeito das considerações acima realizadas e olhando para o plano puramente normativo: pois, embora cotidianamente vilipendiada (inclusive contra acusados de abuso sexual), a nossa Constituição impõe que se trate o acusado como inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Não é fácil, é contra-cultural, mas é um dever. Cumprir a Constituição é saber dizer “não” mesmo quando queremos dizer “sim”, como nos alerta Lenio Streck.
Os suspeitos que já prestaram depoimento podem fugir? Sim. Isso, por si só, autoriza a segregação cautelar? Não. Se há (não posso afirmar) ou se houver elementos concretos que indiquem ameaças contra a vítima ou a testemunhas teremos, de fato, motivo para decretação de prisão preventiva para garantia da instrução criminal. Pedir a prisão processual fora das estritas hipóteses legais é incrementar o mais rasteiro populismo penal: é exigir que a justiça dê uma “resposta rápida” ao clamor popular por punição. Trata-se em última análise de nítida antecipação de pena vedada em qualquer ordenamento jurídico democrático.
Além disso, especialmente a prisão preventiva dos acusados de “tão somente” compartilharem as imagens é escandalosa. Até onde se sabe o crime do qual são acusados é art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. A pena privativa de liberdade para essa infração varia de 3 a 6 anos. Significa dizer que ainda que depois todo o processo criminal se efetivamente condenados muito provavelmente receberão uma pena inferior a 4 anos de prisão sendo possível a substituição por penas restritivas de direitos (no pior dos cenários teriam fixado o regime inicial de cumprimento de pena no semiaberto). A prisão é, portanto, absolutamente desproporcional, pois muito provavelmente será mais gravosa (cumpre-se em “regime fechado”) do que eventual e incerto provimento final. Não falo aqui nenhuma novidade: todos nós denunciamos ad nauseam esses absurdos e existem ótimas pesquisas nesse sentido.[11]
No geral, eu lamento profundamente (re)vitimização que essa jovem está sofrendo: interrogatório perante uma autoridade policial que age de modo inadequado, entrevistas para imprensa, linchamento moral nas redes sociais por boçais que não tem qualquer sentimento de empatia. Tudo isso provoca uma dor incomensurável que, para além do fato em si, é capaz de destruir a saúde mental de qualquer pessoa – não posso imaginar os danos possíveis a uma adolescente.
Não pretendo com essa reflexão extremamente primária esgotar o assunto, como dito, muitas são as abordagens possíveis. Retratei apenas o sentimento de alguém que acredita que para apoiar as vítimas de violência sexual não é preciso abrir mão, no discurso ou na prática, da defesa intransigente dos direitos e garantias fundamentais no processo penal.
Notas e Referências:
[1] Desconsidero aqui as propostas legislativas punitivas que se voltam a casos futuros, tais como, aumento de pena privativa de liberdade, maior tempo de cumprimento de pena para progressão de regime, etc.
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Lucas Sada é advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Especialista em Direito Penal, processo penal e criminologia pela Universidade Candido Mendes (UCAM) e pós-graduando em processo penal e garantias constitucionais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
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Imagem Ilustrativa do Post: walk away // Foto de: Jes // Sem alterações
Evitei ao máximo fazer qualquer comentário sobre o lamentável “Caso do Estupro Coletivo” (me recurso a citar o nome da adolescente, pois não compactuo com sua (re)vitimização) que invadiu e dominou o debate público. Tenho consciência da complexidade e da delicadeza do tema: não existe uma só área do conhecimento que dê conta de analisar um fenômeno social tão complexo e muitas são as minhas limitações. Agrega-se isso a natural dificuldade de emitir qualquer opinião sem ofender o justo sentimento de revolta que se espalhou por todos com um mínimo senso humanidade e que atingiu especialmente as mulheres que sofrem cotidianamente com a violência de gênero. Prefiro, porém, errar na exposição da análise a me omitir.
Em um olhar muito superficial pude visualizar, ao menos, dois grandes “grupos” de posição sobre o “que fazer” especificamente em relação fato[1]: (I) rejeição integral da versão da vítima e/ou justificação da violência sexual a partir de seu comportamento pretérito; e (II) assunção integral da versão da vítima. Dentro do segundo grupo identifico: (II.a) exigência de resposta aflitiva na exata medida da violência cometida, isto é, com o estupro/empalamento dos suspeitos do crime; (II.b) exigência de respostas aflitivas inconstitucionais como tortura, linchamento, pena de morte e similares; e (II.c) exigência de resposta penal imediata através da prisão preventiva dos suspeitos do fato e até mesmo daqueles que compartilharam as imagens (já iniciada através de uma midiática operação policial deflagrada poucas horas depois da exibição de uma deplorável entrevista com a vítima no “Fantástico”)
É somente com o grupo “II.c”, na sua imensa pluralidade que vai desde os setores moderados da direita até, arrisco dizer, boa parte pensamento progressista/de esquerda que eu gostaria de dialogar. Antes disso, analisemos de forma sumária e esquemática os demais “grupos” identificados:
I: Opto por não tecer maiores comentários diante de tamanha barbárie. É um pensamento abjeto pautado nas manifestações mais brutais de machismo que precisa ser duramente enfrentado. Parece-me, em juízo especulativo, que as mulheres do movimento feminista tem tido enorme sucesso nesse “combate” seja através textos, reportagens ou protestos. Já li inúmeras manifestações femininas expondo o absurdo desse tipo com as quais tenho aprendido muito. [2]
II.a: Muito similar ao grupo “I” temos aqui apologia a violência sexual. Trata-se da defesa e não da rejeição da prática do estupro como ação imoral e abjeta. Este grupo vê no estupro uma função positiva: de correção do agressor ou de retribuição do mal causado. Difere-se do primeiro em único aspecto: identifica outro alvo “estuprável”, qual seja, o próprio estuprador. Sem falar da notória reprodução de machismo contida na famosa frase “vai virar mulherzinha na prisão”. Fica nítido que para os defensores da posição que ao adquirir a condição de “mulher da prisão” o agressor de outrora assume a posição de vítima de estupro.
II.b: Tipicamente de extrema-direita é uma posição que nos momentos de grande comoção ganha até setores “progressistas” e movimentos de minorias ainda que de forma residual. Além de defender algo inconstitucional e ilegal, desconsidera-se a total ineficácia de punições aberrantes para reduzir a violência sexual. [3]
Para finalmente estabelecer o diálogo proposto faço inicialmente um alerta, qual seja, parto de uma perspectiva de abolição do sistema penal capitalista, tão somente por verificar sua eficácia invertida[4]. Contudo, antes de prosseguir, é ainda importante esclarecer: um movimento que se pretenda respeitável jamais poderá censurar uma vítima de violência sexual (ou seus familiares) que procura(m) a justiça criminal. Inúmeras são as razões: (a) essa é a única resposta que, em geral, se oferece para expiação do sofrimento, (b) ninguém é obrigado a conhecer, muito menos aderir na sua prática cotidiana, aos abolicionismos e (c) não se pode exigir heroísmo de quem é acometido por violência tão atroz. É compreensível inclusive que vítimas desejem a vingança privada nas suas formas mais brutais.
Além disso, apesar da minha inclinação abolicionista, vou focar meus comentários sob uma ótica bem menos “ousada”: a defesa de um processo penal conforme a Constituição da República. Portanto, o debate aqui se centra não no apoio jurídico/institucional que, por lei, a vítima tem direito, mas no discurso punitivo extremado que um setor está encampando. Embora se reconheça a legitimidade, nesse momento, das instâncias ordinárias, aqueles que tem um mínimo de conhecimento crítico sobre o sistema penal, sabem que o processo penal tem pouco ou nada de positivo para oferecer a vítima. Esta, no processo penal “moderno”, não tem qualquer centralidade, posto que a relação fundamental estabelecida é entre indivíduo e Estado. É evidente que vítima tem direitos de reparação a partir do fato delituoso, mas o local ideal para esse pleito não é o processo penal que, caso assuma tal postura, se transforma em revanchismo e vingança.
Aqui entra meu argumento e meu maior incômodo: não há contradição entre se solidarizar com o sofrimento da vítima a apoiando, sem qualquer juízo culpa, e, ao mesmo tempo, defender que, no estrito âmbito da apuração da responsabilidade criminal dos supostos culpados, se respeite o mínimo democrático do processo penal: presunção de inocência (em suas três dimensões), contraditório e a ampla defesa. Preciso ressaltar para evitar equívocos: em um certo sentido, pouca importa o que de fato acontece(u), pouco importam os elementos indiciários presentes (nesse caso o vídeo e alguns depoimentos de suspeitos), pois toda vítima que narra uma violência sexual tem direito à assistência jurídica, médica, psicológica e social. Isso jamais pode estar condicionado a comprovação de culpa do acusado e tão pouco ao registro de ocorrência do fato como pretende a banca evangélica através do PL 5069/2013.
O problema que surge é que, como já dito, o processo penal não é o local da vítima por excelência: aqui o vulnerável, ou como diz Ferrajoli, o débil é inegavelmente o acusado. Infelizmente a persecução penal impõe necessariamente à vítima o terrível ônus de reviver todo sofrimento passado tendo, necessariamente, sua versão posta em questão. É justamente essa produção de dor que o processo penal produz na vítima um dos centros da crítica abolicionista e dos defensores da justiça restaurativa [5]
Pode-se acreditar e, no caso, pessoalmente acredito que houve violência sexual, mas o processo penal democrático nos impõe a dúvida. Sim, no plano da persecução penal estamos obrigados a duvidar, por mais que isso possa nos angustiar ou parecer “incoerente” – não são as nossas impressões iniciais ou o nosso juízo pessoal que devem nos guiar, mas, ao contrário, o estrito respeito as “regras do jogo processual”. Há que ser enfático: não existe processo penal, inclusive por crime sexual, que não questione a palavra da vítima. Se não for assim (e alguns parecerem desejar que não o seja), o que se tem é qualquer coisa menos o processo como pretendido pela Constituição de 1988. É da essência do processo penal que a versão da acusação (que retrata a versão da vítima no todo ou em parte) seja contraposta aos argumentos defensivos. Além disso, no processo penal constitucional, vigora, como regra de julgamento e por decorrência da presunção de inocência, o princípio do in dubio pro reo. [6]
Não é apenas contraditório, mas contraproducente para as distintas lutas pela eliminação, redução ou mesmo pela “racionalização” da violência estatal punitiva que se admita que nos crimes sexuais baste a palavra da vítima para o juízo condenatório. Não se ignora que seja essa a posição dominante em nossos tribunais superiores [7] e também não nos deve causar espanto – são os mesmos responsáveis pela superlotação do sistema carcerário brasileiro – inegavelmente uma das maiores expressões da barbárie entre nós. Isso, contudo, não nos autoriza, mesmo que munidos das melhores intenções, a alimentar uma lógica autoritária de presunção de culpabilidade que, na prática policial e judiciária, vitimiza milhares de homens e mulheres sobretudo os pobres e negros. Não há como se relativizar a presunção de inocência para o “bem”: quando se autoriza o descumprimento de uma regra constitucional se abre a porta para todo tipo de arbitrariedade.
Não ignoro que no caso em questão há um vídeo que retrata uma cena degradante: ainda assim, não há que se falar em “prova”, tão pouco em “prova cabal” nesse momento. Em sentido técnico, prova é aquilo que se constrói sob o crivo do contraditório e ampla defesa e, até agora, sequer existe relação processual instaurada (o que produz no inquérito policial são meros “atos de investigação”). A despeito da consideração informal (em oposição à processualidade) sobre vídeo “comprovar”, ou não, integralmente a versão da vítima é quase consenso doutrinário (que consegue reunir até mesmo relativistas epistemológicos radicais e cientistas) que não se encontra no processo penal a “verdade real”[8]. Portanto, ainda mais em um momento tão inicial, há que se ter sim “cautela” com conclusões precipitadas.
Nessa linha, não é possível que, a pretexto de se solidarizar com a vítima, um setor considerável da esquerda passe a defender um modelo de processo penal autoritário onde polícia, ministério público e judiciário sejam acometidos pelo “quadro mental paranóico” que Franco Cordeiro nos ensinou: o primado da hipótese sobre o fato. Isto é, o cenário onde a primeira versão oferecida é tomada como verdadeira e todos os atos seguintes se direcionam no sentido de confirmar a hipótese primeira desconsiderando contradições e hipóteses laterais[9].
Por evidente eu reconheço que, nesse caso em especial, a “cautela” que a primeira autoridade policial teve ao conduzir a investigação não foi motivada pelos nobres desejos de cumprir a Constituição. O machismo e classismo muito provavelmente explicam essa conduta. Contudo, embora as vítimas de violência sexual não se sintam acolhidas no sistema de justiça criminal (nem poderiam ser) não me parece que se possa dizer que essa “cautela” seja generalizada, dado o alto grau de rigor com que a polícia em geral trata os acusados por crimes sexuais.
De igual modo, repudio, e devemos todos repudiar, a pergunta feita sobre o comportamento sexual pretérito da vítima e qualquer tipo de tratamento ofensivo que possa ter sido dado. Concordo inteiramente que o fato seja investigado pela delegacia especializada responsável (DCAV – Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima) que tem, ao menos em tese, melhores condições de atender de forma minimamente digna a vítima.
Cabe, entretanto, ainda perguntar: como nós, que lutamos contra o absurdo uso de prisões provisórias em nosso país[10], podemos agora defender que suspeitos sejam presos previamente sem qualquer fundamento cautelar? Falando de modo abstrato: por qual razão os suspeitos já identificados não deveriam ser presos se eles, por exemplo, podem fugir? A despeito das considerações acima realizadas e olhando para o plano puramente normativo: pois, embora cotidianamente vilipendiada (inclusive contra acusados de abuso sexual), a nossa Constituição impõe que se trate o acusado como inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Não é fácil, é contra-cultural, mas é um dever. Cumprir a Constituição é saber dizer “não” mesmo quando queremos dizer “sim”, como nos alerta Lenio Streck.
Os suspeitos que já prestaram depoimento podem fugir? Sim. Isso, por si só, autoriza a segregação cautelar? Não. Se há (não posso afirmar) ou se houver elementos concretos que indiquem ameaças contra a vítima ou a testemunhas teremos, de fato, motivo para decretação de prisão preventiva para garantia da instrução criminal. Pedir a prisão processual fora das estritas hipóteses legais é incrementar o mais rasteiro populismo penal: é exigir que a justiça dê uma “resposta rápida” ao clamor popular por punição. Trata-se em última análise de nítida antecipação de pena vedada em qualquer ordenamento jurídico democrático.
Além disso, especialmente a prisão preventiva dos acusados de “tão somente” compartilharem as imagens é escandalosa. Até onde se sabe o crime do qual são acusados é art. 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente. A pena privativa de liberdade para essa infração varia de 3 a 6 anos. Significa dizer que ainda que depois todo o processo criminal se efetivamente condenados muito provavelmente receberão uma pena inferior a 4 anos de prisão sendo possível a substituição por penas restritivas de direitos (no pior dos cenários teriam fixado o regime inicial de cumprimento de pena no semiaberto). A prisão é, portanto, absolutamente desproporcional, pois muito provavelmente será mais gravosa (cumpre-se em “regime fechado”) do que eventual e incerto provimento final. Não falo aqui nenhuma novidade: todos nós denunciamos ad nauseam esses absurdos e existem ótimas pesquisas nesse sentido.[11]
No geral, eu lamento profundamente (re)vitimização que essa jovem está sofrendo: interrogatório perante uma autoridade policial que age de modo inadequado, entrevistas para imprensa, linchamento moral nas redes sociais por boçais que não tem qualquer sentimento de empatia. Tudo isso provoca uma dor incomensurável que, para além do fato em si, é capaz de destruir a saúde mental de qualquer pessoa – não posso imaginar os danos possíveis a uma adolescente.
Não pretendo com essa reflexão extremamente primária esgotar o assunto, como dito, muitas são as abordagens possíveis. Retratei apenas o sentimento de alguém que acredita que para apoiar as vítimas de violência sexual não é preciso abrir mão, no discurso ou na prática, da defesa intransigente dos direitos e garantias fundamentais no processo penal.
Notas e Referências:
[1] Desconsidero aqui as propostas legislativas punitivas que se voltam a casos futuros, tais como, aumento de pena privativa de liberdade, maior tempo de cumprimento de pena para progressão de regime, etc.
[2] Cito, como exemplo, a nota das minhas companheiras do Instituto de Defensores de Direitos Humanos: https://goo.gl/n7CiZx e o tocante texto da Desembargadora Kenarik. Disponível em: http://justificando.com/2016/05/29/estupros-coletivos-trazem-a-lembranca-as-muitas-dores-que-coletamos-em-audiencias-criminais/
[3] Na Alemanha: ALBRECHT, Peter Alexis. “Criminologia – Uma fundamentação para o Direito Penal”. Nos EUA: WACQUANT, Loic. “Punir os pobres: a nova gestão penal da miséria nos EUA”. No Brasil: http://institutoavantebrasil.com.br/crimes-hediondos-e-a-ineficacia-do-populismo-punitivo/
[4] ANDRADE, Vera Regina Pereira. “Pelas mãos da criminologia – O controle penal para além da (des)ilusão
[5] Por todos: ACHUTTI, Daniel. “Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal”
[6] Não são poucos os casos de condenação indevida por crime sexual inclusive quando há reconhecimento da vítima. Dados em: http://www.innocenceproject.org/ e casos concreto: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2016/05/apos-ficar-mais-de-1-ano-preso-por-estupro-jovem-prova-inocencia-no-rs.html
[7] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-26/stj-reune-decisoes-valor-depoimentos-vitimas-estupro
[8] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-04/busca-verdade-processo-penal-alem-ambicao-inquisitorial
[9] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-jul-14/constituicao-poder-quadro-mental-paranoico-nao-imperar
[10] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-abr-26/40-presos-brasileiros-sao-provisorios-aponta-levantamento
[11] Disponível em: http://danospermanentes.org/
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Lucas Sada é advogado do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). Especialista em Direito Penal, processo penal e criminologia pela Universidade Candido Mendes (UCAM) e pós-graduando em processo penal e garantias constitucionais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
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Imagem Ilustrativa do Post: walk away // Foto de: Jes // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mugley/2417652063
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/estupro-miseria-humana/