Imagem: A Ordem foi Estabelecida, Paula Rego
por Sonia Corrêa [1]
O aborto é decididamente uma questão da democracia ou, para ser mais precisa, de aprimoramento democrático. Esse olhar sobre o tema é necessário e relevante por várias razões. A primeira delas é que a democracia brasileira, embora consolidada em vários aspectos, é frágil em muito outros e não estamos isentos de tentações autoritárias. Nossa democracia pode e deve, portanto, ser alargada e aprofundada.
Além disso, as reformas de leis criminais que devem ser parâmetros para orientar o debate nacional sobre o direitos ao aborto legal e seguro são, sem dúvida, aquelas que resultaram da deliberação democrática — nas sociedades, nos parlamentos e nas cortes de controle constitucional — sobre o direito das mulheres a decidir a respeito da reprodução. O escopo geográfico dessas reformas é hoje muito amplo indo das primeiras revisões da lei criminal ocorridas na Europa nos anos 1960 e 1970 a reformas e decisões constitucionais recentes que reconheceram o respeito à decisão reprodutiva das mulheres como um direito fundamental em contextos tão diversos quanto a Colômbia, o Distrito Federal do México e o Uruguai. Mas também África do Sul, Nepal e Moçambique.
É vital sublinhar esse aspecto pois na história contemporânea das leis sobre aborto há registros dramáticos de legislações autoritárias e coercitivas de que o caso chinês é o exemplo mais debatido e conhecido por ser ainda vigente. A perspectiva feminista que reivindica o direito de decisão reprodutiva das mulheres repudia as leis e políticas do aborto compulsório, assim como medidas estatais de coação das mulheres à procriação compulsória. São exemplos políticas destinadas à promoção da natalidade que, em passado recente, tiveram efeitos nefastos sobre a vida das mulheres como na Romênia dos anos 1970 e 1980. Cabe também mencionar as restrições drásticas à autonomia das mulheres — muitas vezes implicando violação de seu direito à vida e à saúde — decorrentes de leis nacionais que se pautam pela interpretação absolutista do direito à vida do embrião, como acontece em El Salvador e Nicarágua.
É preciso reiterar sistematicamente o repúdio feminista a ambas manifestações de coerção reprodutiva pois, no debate brasileiro, temos ouvido frequentemente– inclusive no contexto dessa audiência– a tese de que nossa defesa do direito ao aborto legal teria um objetivo impositivo. Muito ao contrário, a premissa de liberdade reprodutiva que defendemos nunca poderá ser coercitiva.
O tratamento do direito ao aborto como uma questão da democracia tem, contudo, outras angulações. Enquanto componente da pauta mais ampla de direitos sexuais e reprodutivos o direito ao aborto legal está inscrito no arcabouço geral de direitos humanos cuja realização está condicionada à gestão democrática das sociedades ou, numa linguagem jurídica mais formal, à existência e aprimoramento do estado de direito.
Mas há outro aspecto, talvez menos debatido: a relação entre autonomia reprodutiva das mulheres e democracia. Hoje no Brasil, assim como na maioria dos países do mundo, a igualdade entre os gêneros e a participação igualitária das mulheres em todas as esferas da vida são reconhecidas como fortes indicadores de desenvolvimento humano e democrático. Mas vale lembrar que no século 19 e começo do século 20, período em que foi adotada a grande maioria das leis ainda vigentes que criminalizam o aborto, as mulheres estavam excluídas dos direitos formais de cidadania, mesmo quando engajadas em atividades econômicas de caráter público, e continuavam sujeitas ao poder do pater família na esfera privada. Mesmo quando nos anos 1930 e 1940, em países latino-americanos como o Brasil, foram reconhecidos o direito ao voto e os direitos trabalhistas das mulheres, as restrições criminais à decisão reprodutiva foram mantidas.
Neste ponto, parece-me instrutivo retomar a elaboração desenvolvida pela Juiza Ruth Ginzburg, da Corte Suprema norte-americana, em seu voto dissidente no caso da nefasta decisão sobre o caso conhecido como Hobby Lobby: “A habilidade das mulheres de participar em condições iguais na vida social e econômica da Nação foi facilitada por sua habilidade de decidir sobre a sua vida reprodutiva.” O corolário desse entendimento é que as restrições à autonomia reprodutiva restringindo as possibilidades de participação plena das mulheres na sociedade comprometem a democracia. Assim sendo abrir caminho para o direito ao aborto num marco ampliado de saúde e direitos reprodutivos alarga e aprofunda a democracia.
Outra angulação diz respeito aos significados bastante problemáticos de manutenção e ampliação do recurso à lei criminal como instrumento de pedagogia estatal para correção de “males sociais” em condições democráticas. Em debate recente sobre direitos humanos na América Latina, o secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Emilio Alvarez, sublinhou corretamente que, a despeito da consolidação democrática dos últimos 30 anos, a região vive a pior crise carcerária de sua história. Nunca tantas pessoas estiveram presas em condições tão precárias e sujeitas a violações brutais de direitos humanos. Uma crise que, em grande medida, decorre do apelo ideológico crescente aos recursos do poder punitivo. Nas palavras da jurista Maria Lúcia Karam: “O quadro vivido neste novo tempo, proporcionando campo extremamente fértil para a intensificação do controle social, proporciona e alimenta o crescimento da demanda de maior repressão, de maior rigor punitivo, de maior intervenção do sistema penal, trazendo desmedida ampliação do poder punitivo do Estado.”
Essa incontestada ideologia da punição está imbricada com a chamada Guerra as Drogas e seu efeitos nefastos –sobretudo a isso se refere Karam. Mas a preservação da criminalização do aborto assim como propostas hoje postas sobre a mesa que ampliam a punição desta prática podem e devem ser analisadas através das mesmas lentes que apontam para a contradição estrutural entre aumento do poder punitivo e regras de governança democrática. Numa entrevista à Revista Liberdades o Juiz de Direito José Henrique Rodrigues Torres também sublinha a essa disjunção ao examinar a inconstitucionalidade dos artigos do Código Penal de 1940 que punem a interrupção da gravidez nos seguintes termos: “…a criminalização do abortamento contraria princípios jurídicos e democráticos. O princípio da idoneidade, por exemplo, exige que a criminalização de qualquer conduta deve ser um meio útil para controlar um determinado problema social. Contudo, a criminalização do aborto tem sido absolutamente inútil, ineficaz e ineficiente para conter a prática dessa conduta… também viola o princípio da subsidiariedade, que determina que, no processo democrático de criminalização, devem ser considerados os benefícios e os custos sociais causados pela adoção da medida proibicionista e criminalizadora”. Nunca é demasiado lembrar que, seja no Brasil seja em outros países, a aplicação da lei penal é seletiva afetando de maneira mais drástica as mulheres pobres, negras e socialmente excluídas. Seja no caso do aborto ou de outras práticas, sempre estaremos frente a uma correlação perversa entre criminalização, desigualdade e déficit democrático.
Para finalizar quero brevemente tratar de duas condições que são necessárias para assegurar a continuidade do debate democrático sobre criminalização do aborto no Brasil. A primeira é a garantia e qualidade da deliberação democrática. Esse debate, como muitos outros, não é trivial. Portanto, ele requer respeito, escuta e abertura ao diálogo, condições que têm sido bastante escassas no debate brasileiro sobre muitos temas, mas especialmente no caso de questões situadas no campo da sexualidade e da reprodução. Resgatar e ampliar os fluxos de ação comunicativa num contexto democrático, seja em debates como o de hoje ou no mundo virtual, são os maiores desafios que temos pela frente.
Finalmente, mas não menos importante, os princípios de laicidade, a secularidade e a distinção entre esfera religiosa e esfera do político são também condições necessárias para o processamento efetivamente democrático acerca do direito ao aborto seguro e legal pois, em muitos contextos, as restrições à liberdade reprodutiva hoje vigentes têm origem nas doutrinas do dogmatismo religioso. Não há democracia sem laicidade e a laicidade é garantia tanto de liberdade religiosa como de liberdade de expressão, consciência e livre adesão filosófica.
Nesse âmbito, contudo, é preciso lembrar que pode haver coerção reprodutiva de caráter secular — como se dá na China. No caso brasileiro, em especial, também cabe sublinhar que nossa laicidade novecentista arrasta consigo o legado oligárquico, patriarcal e racista da Velha República, e dentro dele a criminalização das mulheres que abortam. Ou seja, não se trata apenas de resgatar de maneira idealista os marcos normativos da laicidade de 1889, mas sim de reinventar ou refundar premissas de laicidade num mundo que hoje é interpretado por vários autores como sendo pós-secular.
Retomando — de maneira breve e talvez precária — as proposições de Jurgen Habermas em seu debate com Ratzinger, publicadas pela Folha de São Paulo em 2005 com o título Cisma do Século 21 : o estado constitucional democrático não pode excluir sem debate a opinião emitida pelas comunidades religiosas. Nos trânsitos das sociedades democráticas, crentes e não crentes estão desafiados a estabelecer canais de ação comunicativa e, ao fazê-lo, devem idealmente abdicar de posições dogmáticas. Ou seja, devem abdicar do sentimento de que detêm uma visão superior sobre o mundo e a vida humana.
Espero que essas breves ideias contribuam para que o diálogo de hoje e muitos outros que sejam realizados sobre esse tema preencham esses requisitos.
[1] Esse artigo transcreve as ideias compartilhadas pela autora na Audiência Pública chamada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal em 6 de agosto de 2015 para debater Sugestão Legislativa nº15, de 2014, que pretende “regular a interrupção voluntária da gravidez, dentro das doze primeiras semanas de gestação, pelo SUS – Sistema Único de Saúde”. A sugestão, encaminhada ao Senado por meio do Portal e-Cidadania, com 20 mil apoios, obrigou a retomada da discussão da regulamentação do aborto no legislativo federal. Revisão de texto por Angela Freitas