Sexuality Policy Watch [PTBR]

O poder da política antigênero e seus efeitos sobre os direitos humanos – por Sonia Corrêa

Notas elaboradas para uma conversa com a Anistia Internacional, em setembro de 2025, a partir de perguntas propostas sobre as origens das políticas antigênero e sua acumulação de força e poder. Ao respondê-las, adicionei uma breve elaboração sobre seu impacto no campo dos direitos humanos.

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Políticas antigênero: Por que do nome e como defini-las hoje?

Em setembro de 2025 não restam muitas dúvidas de que as guerras implacáveis contra o “gênero”,  que têm varrido a Europa e as Américas nos últimos dez anos, são como ciclones alimentando as tempestades políticas que abriram caminho para os tempos neofascistas de agora. Nessa breve nota, me limito a resgatar as trajetórias dessas mobilizações nessas geografias, pois o que acontece em outros contextos tem características próprias e essas diferenças não devem ser borradas. Por outro lado, o impacto das políticas antigênero sobre os direitos humanos tem efeitos muito mais amplos.

Quando começamos a pesquisar as cruzadas contra o gênero, mais ou menos dez anos atrás, usamos o nome antigênero não como lente analítica, mas como recurso descritivo para retratar o que as forças políticas engajadas nessas ofensivas faziam e diziam quer faziam. Ou seja, ataques vigorosos ao “gênero” como uma grande cesta onde cabiam muitos alvos, mas que também se dirigiam ao próprio conceito de gênero como teoria crítica.

Hoje é mais que evidente que a política antigênero nunca é apenas sobre ou contra o “gênero”. Olhando para o que se passa no cenário americano, desde o retorno de Trump em janeiro de 2025, assistimos a um feroz ataque ao “gênero” que está imbricado com ofensivas sistemáticas contra o progressismo de maneira mais ampla e a produção de conhecimento crítico, com incitação ao racismo e ao brutalismo antimigratório, e muito mais. [1]Como, sagazmente, perceberam as feministas do leste europeu uma década atrás, a política antigênero é mesmo um adesivo multifacético que permite agregar, a um só tempo, múltiplos alvos da política neofascista.[2]

Nessa paisagem conflagrada, é fundamental discernir entre mobilizações sociais,  ou mesmo legais jurídicas, contra o “gênero” e o que se desdobra quando a ideologia antigênero é transportada para a gramática dos Estados. Ou seja, para atos de fala de autoridades públicas, medidas normativas, propostas legislativas e políticas públicas,  como aconteceu no Brasil sob Bolsonaro (2019-2022) e hoje assistimos a desenrolar-se numa escala decididamente mais massiva, nos Estados Unidos. [3]

Como as forças antigênero ganharam poder?

As forças antigênero não ganharam poder, repentinamente, nos últimos dez anos. Retomando a metáfora da política antigênero como uma hidra de muitas cabeças, que tenho usado desde algum tempo[4], a maior parte dessas cabeças sempre foi muito poderosa. Como, por exemplo, o Vaticano, o campo ultracatólico, igrejas evangélicas fundamentalistas e também poderosos atores políticos e econômicos seculares, alguns dos quais compartilham o repúdio ao gênero, outros que investem em ataques ao gênero para atingir outros objetivos.

Hoje, o que se manifesta como seu maior poder é resultado de uma longa, complexa e persistente trajetória de reorganização que remonta à década de 1960. Isso significa que nomear essas forças como “nova direita” deixa escapar esse aspecto crucial.  Algumas dessas forças são antiguíssimas, como a Igreja Católica ou as demais igrejas cristãs, mas também estão nesse ecossistema como a Opus Dei – que completará um século daqui a dois anos – outras plataformas que, de fato, eram novas quando esse longo percurso começou — como a TFP, a Heritage Foundation, a CPAC, ou o grupo intelectual secular europeu conhecido como GRECE —hoje tem mais de meio século de existência.

Dito isso, as forças que insuflam políticas antigênero apresentam, de fato, um traço novo: no longo processo de reorganização acima mencionado, seu modo de fazer política foi reconfigurado. Modos reacionários de restabelecer ordens políticas, como golpes de Estado, foram deixados de lado à medida que essa pletora de atores passou a investir em disputas culturais pela hegemonia política. Esse novo modo de agir politicamente foi nomeado por seus criadores como metapolítica, pois extrapola de muito a incidência sobre as instituições políticas convencionais. Nós pesquisadoras e pesquisadores das ofensivas antigênero nomeamos essa reconfiguração como a virada gramsciana da extrema-direita.

É crucial mencionar que essa mutação se beneficiaria, enormemente, da digitalização da política instalada a partir dos anos 1999. E esse giro também implicou ajustar engrenagens estratégicas no sentido de tomar o poder estatal pela via da política eleitoral, antes de eventualmente estabelecer regimes autocráticos (a experiência brasileira durante a era Bolsonaro que terminou com uma tentativa de golpe militar é, nesse sentido, exemplar[5]).   

Também é fundamental contabilizar a robusta interseccionalidade que carateriza a articulação e o modo de ação política das forças antigênero. Suas múltiplas cabeças se movem em muitas direções, mas apesar de diferenças ou mesmo divergências, o corpo caminha firmemente em direção ao mesmo objetivo. Essa é outra fonte inequívoca de sua força.

Impactos sobre os direitos humanos?

Desde algum tempo tenho dito e escrito que, do ponto de vista de ciclos longos, mas também em razão de outras dimensões, a terminologia “antidireitos” que tem sido amplamente usada para descrever os impactos das políticas antigênero sobre os direitos humanos não é uma boa descrição. As forças antigênero, de fato, se opõem ferozmente a certos direitos – em especial aqueles que se referem ao gênero, à sexualidade e à procriação. Isso não significa, contudo, que seu projeto político não abarque uma estrutura jurídica e legal robusta sólida. Mas abarca, da mesma forma que os fascismos históricos não eram regimes “sem lei”. [6]

Adicionalmente, quando afirmamos que essas forças estão apenas secularizando seus credos ou instrumentalizando a linguagem dos direitos humanos, uma vez mais, passamos o largo de aspectos cruciais. Por exemplo, a história alargada dos direitos humanos informa que  – embora sacralizados pelas revoluções seculares do século 18 – os  “direitos do homem” estavam marcados por traços ou legados ancorados derivados da filosofia jurídica cristã. Essa impregnação, posteriormente, facilitaria a sua recristianização como pode ser verificado na seguinte elaboração Hegel em A Filosofia do Direito:

“.. que o homem deve ser livre em si mesmo e para si mesmo, em virtude de sua própria essência, que ele deve nascer livre como homem era desconhecido para Platão, Aristóteles, Cícero ou para os juristas romanos, embora a fonte dos direitos humanos resida nesse conceito. Somente no princípio cristão o espírito pessoal individual assume essencialmente um valor infinito e absoluto. Deus quer que ajudemos todos os seres humanos. Na religião cristã, a doutrina de que todos os homens são iguais perante Deus porque Cristo os chamou para a liberdade cristã ganhou força… Essas afirmações garantiram que a liberdade se tornasse independente do nascimento, da classe social, da educação, etc O significado desse princípio agiu como fermento ao longo dos séculos e milênios, produzindo as revoluções mais gigantescas.”

Nesse mesmo registro, como analisam historiadores do renascimento dos direitos humanos após 1945, sua elaboração foi, também, decididamente marcada pela influência de concepções cristãs, a começar pela composição do Comitê de Redação da Declaração Universal de 1948,  no qual apenas um dos membros não era cristão. Esse traço também é flagrante nas definições de direito à vida e dignidade adotadas no texto, esta última derivada do pensamento de Jacques Maritain, intelectual francês católico progressista.[7]  Não surpreende assim que, nas Américas, pelo menos desde 1948, o Vaticano tem usado esses enquadramentos para demolir ou impedir a inclusão de exceções para o aborto nos códigos penais[8].  

Os atores antigênero, particularmente aqueles situados nos quadrantes católicos desse ecossistema, são, portanto, mais que familiarizados com as premissas cristãs derivadas do jus naturalismo ou da lei natural tomista e, desde muito, têm investido na sua relegitimação. Esse investimento se amplificou, decididamente, a partir da década de 1960, quando o Vaticano começou  a desenvolver, com vigor, sua própria moldura de direitos humanos. A famosa carta papal Humanae Vitae, de 1968, que abomina a contracepção e o aborto, foi um dos primeiros resultados desse esforço. No outro extremo, a Declaração Dignitas Infinita, publicada em abril de 2024, é a elaboração mais recente e sofisticada das elucubrações vaticanas acerca de gênero, sexualidade, procriação e direitos humanos [9].

Contudo, investimentos similares se desenvolveram, concomitantemente, para além dos muros do Vaticano. O mais conhecido, consolidado e influente é a chamada corrente originalista norte-americana. Essa linha ultraconservadora de elaboração jurídico-legal surgiu em resposta às decisões progressistas da Suprema Corte de Warren, nas décadas de 1950 e 1960, baseadas em concepções contemporâneas da chamada Constituição viva [10]. Seus fundamentos inicialmente aplicados às demandas antirracistas do movimento pelos direitos civis seriam posteriormente estendidos a outros âmbitos, como a contracepção e, principalmente, o direito constitucional ao aborto concedido pela decisão Roe Vs Wade de 1973[11].

Essas novas modalidades de interpretação, mais tarde situadas no âmbito do chamado constitucionalismo democrático, seriam gradualmente adotadas por outros tribunais superiores. Inclusive ao sul do Equador, especialmente após a dinâmica de redemocratização dos anos 1980-1990, sendo disso exemplos as Cortes Constitucionais da África do Sul e da Colômbia. Também se expandiram para o âmbito da lei internacional dos direitos humanos, com maior intensidade e vigor após Viena (1993) e as conferências subsequentes da década de 1990.

Como se sabe, o primeiro ataque político aberto ao “gênero” eclodiu na transição entre duas dessas conferências, a CIPD do Cairo (1994) e a IV CMM de Pequim (1995) e nunca mais cessou[12]. E essa cruzada foi, inevitavelmente, transportada para as elucubrações vaticanas sobre direitos humanos. Em 2003, o Léxico de Termos Ambíguos sobre a Família, considerado como a  Bíblia da política antigênero católica, comporta verbetes sobre “gênero”, “aborto”, “homossexualidade” e também uma seção sobre a “indústria dos novos direitos”.

Essa terminologia, que se manteve latente durante um certo tempo, tem sido em anos recentes resgatada, reiterada e reelaborada com vitalidade em documentos politicamente relevantes, tanto não clericais como o próprio Vaticano. São exeamplos: o Relatório da Comissão sobre Direitos Inalienáveis, criada em 2020 durante o primeiro governo Trump [13]; o documento final da Cúpula Transnacional de 2023 da Rede Política para os Valores, realizada nas Nações Unidas em Nova York, que clama fervorosamente por um retorno e uma leitura literal da Declaração Universal de 1948 [14]; e, sem maiores surpresas, a Declaração Dignitas Infinita.

Para concluir

Esta breve recapitulação resgata, de maneira concisa, a trajetória das políticas antigênero nas Américas e na Europa e oferece elementos  para esclarecer porque é improdutivo nomear as forças antigênero como  sendo “antidireitos”. Embora elas oponham abertamente a muitos direitos, principalmente aqueles relacionados a gênero, sexualidade e procriação, por elas apelidados como “novos direitos”, o que se assiste hoje é, de fato, mais estrutural e mais arriscado. Essas forças estão vigorosamente disputando a própria epistemologia e heurística dos direitos humanos, tal como evoluíram após 1948.

Se ainda há  dúvidas quanto a isso, trago uma última ilustração: o falecido juiz da Antonin Scalia, ator principal dos esforços que pavimentaram o caminho para a tomada da Corte Suprema norte-americana por uma maioria ultraconservadora em 2020, disse algumas vezes que: “A Constituição não é um documento vivo… Ela está morta. Morta, morta, morta.”  Em 2025, quando a Corte está completamente subserviente aos desígnios de Donald Trump, o juiz Clarence Thomas, desde sempre alinhados às posições de Scalia, declarou que o tempo do “stare decisis” — o princípio jurídico de que o tribunal deve manter as decisões anteriores — acabou, pois, segundo ele “os precedentes devem respeitar nossa tradição jurídica, nosso país e nossas leis, e devem se basear em algo, não apenas em algo que alguém sonhou e outros concordaram.”


[1] Para um balanço da cena norte americana ver: https://sxpolitics.org/ptbr/biblioteca-spw/boletim-da-politica-sexual/o-retorno-de-trump-180-dias-de-destruicao-sadismo-e-desordem-mundial/27249

[2] Essa elaboração seminal está acessível em: https://library.fes.de/pdf-files/bueros/budapest/11382.pdf

[3] Sobre o caso Brasil ver https://sxpolitics.org/ptbr/biblioteca-spw/publicacoes/relatorio-ofensivas-antigenero-no-brasil-politicas-de-estado-legislacao-mobilizacao-social/25955

[4] Ver https://sxpolitics.org/sem-categoria/dr-frankensteins-hydra-contours-meanings-and-effects-of-anti-gender-politics/34675/

[5] Um balanço mais completo dessas trajetórias está disponível em entrevista de 2022 para a Revista Sur, disponível em https://sur.conectas.org/e-importante-entender-o-alcance-historico-a-longevidade-da-mobilizacao-conservadora/

[6] A esse respeito, vale resgatar a análise de Hannah Arendt sobre o argumento de autodefesa de Adolf Eichmann de que ele estaria “apenas obedecendo à lei”.

[7] Essa genealogia foi examinada em profundidade em The Last Utopia, de Samuel Moyn.

[8] Isso aconteceu, por exemplo, nos debates da Carta de Bogotá, que estabeleceu a Organização dos Estados Americanos em 1948 ver em  Lorea, Roberto Arriada. (2006). Acesso ou aborto e liberdades leigas. Horizontes  Antropológicos, 12 (26), 185-201 . https://dx.doi.org/10.1590/S0104-7183200600020000 8

[9] Para uma revisão crítica preliminar da Declaração ver https://sxpolitics.org/ptbr/biblioteca-spw/artigos/dignitas-infinita-uma-primeira-leitura/26249

[10] Cujas raízes podem ser rastreadas até Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte no início da Era Progressista, cuja obra marcante The Living Law vale a pena ser lida. Acessível em: http://www.minnesotalegalhistoryproject.org/assets/Brandeis–Living%20Law.pdf

[11] Como se sabe, o direito constitucional ao aborto foi revogado em 2022 pela decisão Dobbs que constituiu um momento da inflexão ultraconservadora jurídico-legal nos EUA, iniciada exatamente quando começou a tomar corpo o giro Gramsciano da ultradireita. Ver https://sxpolitics.org/we-recommend/compilations/roe-vs-wade-overturned-us-supreme-court-ends-constitucional-rights-to-abortion/22513/

 

[12] Ver  “ A política do gênero: um comentário genealógico” em https://doi.org/10.1590/18094449201800530001

[13] Ver https://www.state.gov/wp-content/uploads/2020/07/Draft-Report-of-the-Commission-on-Unalienable-Rights.pdf

[14] Ver https://www.ipas.org/wp-content/uploads/2023/12/PoliticalNetworkforValuesSpanish-c.pdf



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