
A política do direito ao aborto no Brasil ganhou novo capítulo em outubro. Antes de sua aposentadoria voluntária, o último ato do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso foi depositar um voto favorável à demanda da ADPF 442 no sentido da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O voto retomou o julgamento da ADPF, apresentada em 2017 pelo PSOL e pelo Instituto Anis, cujo último movimento de tramitação tinha acontecido em 2023, quando a ministra relatora Rosa Weber, ao se aposentar, também depositou um voto favorável à inconstitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal. O passo seguinte foi o pedido de vistas do próprio Barroso, que paralisou uma vez o andamento da ação que só viria a ser retomado agora com seu voto de despedida da Corte. Ao pedir abertura de plenário para a votação da ADPF 442/2017, Barroso argumentou que:
“… ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado e da sociedade é o de evitar que ele aconteça, dando educação sexual, distribuindo contraceptivos e amparando a mulher que deseje ter o filho e que esteja em circunstâncias adversas”. Também destacou que “a interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal” e que “direitos fundamentais não podem depender da vontade das maiorias políticas”. [1]
E adicionando outras elaborações substantivas fundamentais:
– “A criminalização não reduz o número de abortos, apenas os torna inseguros e desiguais, atingindo de forma desproporcional mulheres pobres e vulneráveis”;
– “Em uma sociedade democrática e laica, cabe à mulher decidir sobre a gestação, cabendo ao Estado garantir condições seguras, acesso à informação e a serviços de saúde”;
– “A autonomia reprodutiva é um direito fundamental, e o Estado não deve impor uma moral única em questões que envolvem liberdade e convicção pessoal”;
Semanas antes de apresentar o voto, Barroso havia declarado que não analisaria a matéria antes de se aposentar porque a sociedade brasileira não estaria pronta para essa discussão. A fala causou forte reação do movimento pelo direito ao aborto, que ressaltou não caber ao Supremo aguardar flutuações políticas ou sociais para analisar direitos fundamentais. Tão logo o ministro anunciou, no dia 09 de outubro, que iria se aposentar, o campo feminista que luta pelo direito ao aborto deflagrou uma campanha de mobilização no sentido de fazer ver ao ministro que ele não poderia deixar a corte sem depositar seu voto.
A carta que resultou dessa mobilização pedia não apenas o voto para a ADPF 442, mas também no que diz respeito a duas outras ações pendentes de decisão da Corte que buscam superar obstáculos de acesso ao aborto nos casos legais – a ADPF 989 (2022) e a ADPF 1207 (2025). Elas também são muito importantes, dado que esse é o campo de batalha da atualidade, pois como o SPW vem documentando e analisando desde algum tempo, em especial a partir da era Bolsonaro, os serviços de aborto legal tem sido alvo prioritário das forças antiaborto. A ADPF 989 aponta para a inconstitucionalidade desses obstáculos e pede garantia de acesso ao procedimento, e a ADPF 1207 visando o reconhecimento da legitimidade de atuação dos profissionais de enfermagem nesses procedimentos.
A carta elenca os obstáculos no acesso ao procedimento: “Apenas 3,6% dos municípios brasileiros possuem um serviço público de aborto legal. Além disso, observa-se a imposição de barreiras ilegais nos serviços de saúde, tais como a requisição de documentos não exigidos por lei, como boletins de ocorrência e autorização judicial, a fixação arbitrária de limites gestacionais e a invocação indiscriminada da objeção de consciência, inclusive em nível institucional.” E ressalta que “as consequências do aborto inseguro configuram como a quarta causa de mortalidade materna, e as mulheres negras possuem 2,5 vezes mais chances de morrer nessas situações”.
Os votos declarados na véspera da aposentadoria indicam que a pressão surtiu efeito. Além do voto favorável a ADPF 442, o ministro também emitiu uma ordem liminar com vistas a implementação imediata das medidas propostas nas duas outras ações. Houve reações positivas nos campos feministas e no âmbito progressista, num sentido mais amplo, sendo esses votos lidos como um passo à frente na longa trajetória da luta pelo direito ao aborto no Brasil.
No dia 21/10, a Campanha Nem Presa Nem Morta publicou um anúncio de página inteira na Folha de São Paulo, com o seguinte texto: “Obrigada, ministro Barroso! O direito de seguir ou não com uma gestação é questão de saúde pública, autonomia e dignidade. Ministros e Ministra da Suprema Corte, o tempo das nossas vidas é agora!”.
O que seguiu e seus significados
Logo após o voto de Barroso, contudo, o ministro Flávio Dino, relator da ação, retirou a ADPF 442 da pauta do plenário. E, na sequência, o ministro Gilmar Mendes apresentou um pedido de destaque, que interrompe o julgamento virtual e determina que o caso seja apreciado em plenário físico, com debate presencial entre os ministros. A liminar acerca das ADPFs 989 e 1207 tampouco foi referendada pelo Plenário do STF. A maioria dos ministros acompanhou o voto do mesmo ministro Gilmar Mendes que reconheceu a relevância do tema, mas entendeu inexistentes os requisitos cautelares, especialmente risco de dano imediato. Já o ministro Luiz Fux votou pelo não referendo da liminar, alegando que o tema envolve profunda controvérsia moral e política e que não cabe ao Judiciário substituir o Legislativo na formulação de políticas públicas.
A cena não tem nada de novo. No Brasil, desde meados dos anos 2000, de tempos em tempos, o debate institucional sobre direito ao aborto se reativa com vigor, mas, na sequência, se registram movimentos regressivos e o entusiasmo se converte em frustração. A cena da luta pelo direito ao aborto, quando analisada pelo espelho retrovisor, é, nesse sentido, pedagógica: nunca há razões sólidas para grandes entusiasmos. Nesse momento, menos ainda, porque desde 2023, essa luta tem sido, de fato, travada com pouco ou nenhum suporte de um governo progressista que, de outro modo, tem enfrentado, com bastante vigor, os avanços contínuos da extrema direita no Brasil e no mundo.
Além dos movimentos regressivos em relação ao acesso ao aborto legal arrolados num balanço feito recentemente pelo SPW, nesse momento, os nomes que compõem a lista para a substituição de Barroso são todos potenciais ou abertamente refratários à pauta. O nome escolhido vai, portanto, somar-se à bancada contrária ao direito ao aborto que já conta com os dois ministros indicados por Bolsonaro, com o ministro Luiz Fux — a terceira voz do Bolsonarismo na Corte — e também com o ministro Flávio Dino, que substituiu Rosa Weber e já se manifestou contrário à descriminalização. Concomitantemente, as forças que se opõem ao direito ao aborto instaladas no Congresso, desde o ano passado, investem com vigor, em regressões legislativas. E a aproximação da eleição presidencial de 2024, que será uma vez mais muito acirrada, certamente adiciona mais pedras nesse caminho.
Em tal contexto, todo e qualquer ganho institucional deve ser valorizado. Nesse caso, por exemplo, o conteúdo dos votos deixados pelo ministro Barroso é um legado significativo que pode e deve ser amplamente disseminado na sociedade. Sobretudo, é crucial apoiar as iniciativas de mobilização social em defesa do aborto legal, especialmente via Campanha Criança Não é Mãe, que tem conseguido amplificar seu alcance e adesão e sustentar a pauta do direito ao aborto como um tema da democracia, com vigor, no debate público. Desistir não é uma opção.
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Compilação
O oportunismo de Barroso no voto pró-aborto – Mariliza Pereira Jorge – Folha de São Paulo
Alcolumbre pressiona, e Pacheco distensiona em jogo por vaga no STF – Uol
CFM se posiciona contra voto de Barroso a favor da descriminalização do aborto – Folha de São Paulo
Barroso vota por descriminalizar o aborto, mas Gilmar suspende o julgamento – Carta Capital
STF forma maioria para derrubar decisão de Barroso que autoriza enfermeiro a fazer aborto legal – G1
Barroso decide que enfermeiros podem auxiliar aborto legal – Folha de São Paulo
Nota de rodapé
[1] Leia aqui a íntegra do voto: https://noticias-stf-wp-prd.s3.sa-east-1.amazonaws.com/wp-content/uploads/wpallimport/uploads/2025/10/17210627/Voto-MLRB-ADPF-442.pdf