O SPW inicia uma série de análises breves sobre a crise do covid-19 em contextos que geralmente não são objeto de atenção da grande imprensa e que são caracterizados como regressivos em relação à política sexual de gênero e aborto. O segundo artigo da série é sobre El Salvador. Agradecemos ao educador Amaral Arévalo pela colaboração!
por Amaral Arévalo*
El Salvador é um país de 20,700 quilômetros quadrados com aproximadamente seis milhões de habitantes, sem considerar os três milhões e meio que vivem fora do país, principalmente nos Estados Unidos. Está situado na América Central, fazendo fronteira com a Guatemala, Honduras e Nicarágua e banhado pelo Oceano Pacífico.
A história contemporânea salvadorenha é marcada por graves episódios de violência. Há uma larga história de massacres, genocídios, etnocídios e violência homicida em níveis exorbitantes. Nas décadas de 1960 e 1970, a repressão política das ditaduras militares conduziu processos seletivos de eliminação de pessoas e exposição de seus cadáveres como mostra de torturas nas principais vias públicas de San Salvador. Entre 1980 e 1992, um conflito armado interno provocou a morte de 75,000 pessoas civis e um milhão de salvadorenhos deixou o país.
Na época do pós-conflito, a partir de 1992, a violência social se fez novamente presente por meio de grupos juvenis organizados e armados, conhecidos como “Maras”. Neste período histórico a ultradireita começou a governar. Esta situação incidiu na aplicação de medidas econômicas neoliberais por 20 anos. Neste período do pós-conflito existiu uma reforma do Código Penal, na qual se eliminou as excepções para realizar um aborto no país. Esta situação transformou El Salvado no país das mulheres presas por aborto mesmo quando o aborto é espontâneo, sendo condenadas como criminosas entre 30 a 40 anos de cadeia.
Em 2009, houve uma alternância democrática quando Mauricio Funes conquistou a presidência da república sob a bandeira do FMLN e se tornou o primeiro presidente de esquerda na história do país que governou entre 2009 e 2014. Nos períodos de governo do FMLN uma figura política começou a despontar: Nayib Bukele. No ano 2012, foi eleito prefeito de Nuevo Cuscatlán, pequeno município integrado na Área Metropolitana de San Salvador. Em 2015, foi eleito prefeito de San Salvador, a capital do país. Em ambas eleições, Bukele era parte do FMLN. Em 2017, começaram problemas e diferenças entre Bukele e a cúpula partidaria. Ele saiu do partido e criou o movimento “Novas Ideias”. Sob esse movimento ele competiu à Presidência da República em 2019. Ele ganhou com ampla margem eleitoral e, em 1 de junho de 2019, tomou posse do cargo presidencial.
Sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020, Nayib Bukele, Presidente de El Salvador, exortou o povo salvadorenho a exercer o direito à insurreição popular por conta da recusa da Assembleia Legislativa em aprovar o empréstimo de 109 milhões de dólares, destinado ao Plano de Controle Territorial Fase III, para a prevenção de violência e crimes. Não havia clareza sobre como os fundos solicitados seriam usados e os deputados ignoraram a demanda.
Sábado, 8 de fevereiro de 2020, Bukele insistiu em seu apelo à revolta popular, convocou o povo salvadorenho a participar da Assembleia Legislativa no domingo, dia 9, às 15h, para forçar os deputados a aprovarem o empréstimo.
Domingo, 9 de fevereiro de 2020 (9-F), a Assembleia Legislativa é cercada por militares e policiais. Apoiadores de Bukele participam e os funcionários governamentais foram convidados a participar “voluntariamente”. Os militares invadiram a Assembleia, seguida da entrada de Bukele. Alguns deputados presentes se retiraram quando viram a invasão do complexo legislativo pelos militares. Bukele se sentou na cadeira do Presidente da Assembleia Legislativa e fez uma oração. Ao sair da Assembleia, ele informou a seus seguidores que “Deus” havia falado com ele e pedido “paciência” com os deputados. Essa ação foi interpretada nacional e internacionalmente como uma tentativa fracassada de autogolpe, e sua popularidade foi afetada.
Nesse mesmo fim de semana, no aeroporto de San Salvador, funcionários das lojas e da imigração usavam máscaras e luvas, uma ação que estava alinhada com as medidas de segurança em saúde implementadas internacionalmente. No momento de os passageiros passarem pela imigração, era perguntado se haviam viajado para a China nos últimos 15 dias. Se a pessoa respondesse sim, fazia um check-up médico de rotina e, se a resposta fosse negativa, entrava no país. Nada de extraordinário.
No que diz respeito no uso das forças armadas na tentativa de autogolpe no 9-F, a Câmara Constitucional da Corte Suprema da Justiça advertiu Bukele a abster-se de “fazer uso das Forças Armadas em atividades contrárias aos propósitos constitucionais estabelecidos e comprometer-se com a forma republicana, democrática e representativa de governo, o sistema político pluralista e, em particular, a separação de poderes”. Bukele não respondeu a essa exortação, nem mesmo nas redes sociais que ele usa como meio oficial de comunicação. Mas, atores próximos a ele começaram a agitar seus seguidores para pressionar a Assembleia Legislativa no sentido de finalmente aprovar o empréstimo de 109 milhões. Esse clima marcou o debate nacional durante praticamente todo o mês de fevereiro, ou seja, oportunistas agitando as massas em nome de Bukele enquanto seu papel nos eventos de 9 de fevereiro ia sendo apagado.
Na última semana de fevereiro, porém, as redes sociais de Bukele começaram a se agitar em torno da COVID-19. Desde o final de janeiro, cidadãos chineses foram proibidos de entrar no país, regra posteriormente estendida a pessoas da Coréia do Sul, Irã e Itália ou que haviam estado em trânsito nesses países. Nesse momento, informações chocantes de países da Europa começaram a circular sobre a epidemia. Sempre que um país entrava na lista dos mais afetados, a entrada no país de cidadãs e cidadãos desses países era proibida. A promoção dessas medidas “estritamente sanitárias” contribuiu adicionalmente para diluir na sociedade a memória da tentativa de autogolpe.
No começo de março, as ações contra a epidemia se intensificaram. A proibição de entrada no país de cidadãos dos países mais afetados foi mantida, mas decretou-se quarentena por 30 dias para qualquer salvadorenho que ingressasse no país. Essa medida foi tanto prematura quanto surpreendente, pois o país não estava preparado para responder a esta situação. El Salvador experimenta constantes crises e emergências nacionais, pois praticamente todos os anos acontece algum evento natural que ativa o sistema de proteção civil, para abrigar pessoas devido a terremotos, erupções vulcânicas, inundações, furacões. Mas não estava preparado para estabelecer e sustentar uma quarentena longa para limitar a propagação massiva de uma doença altamente infecciosa. O sistema de proteção civil começou a tratar todas/os que estavam em quarentena como se estivesse em curso um desastre natural e as medidas de isolamento não estivessem sendo cumpridas.
Apesar de não haver nenhum caso confirmado no país nos primeiros 15 dias do mês de março, essa quarentena improvisada se ampliou. Centros escolares e universitários, portos, aeroportos, shopping centers foram fechados e a mobilidade no país começou a ser restringida por meio de um decreto do Estado de Exceção que a Assembleia Legislativa aprovou, mas limitado a 15 dias. No entanto, em 21 de março, Bukele emitiu um decreto executivo para estabelecer uma quarentena residencial obrigatória de 30 dias em todo o país. Esses tipos de medidas restritivas foram intercaladas com promessas de benefícios sociais, tais como: o pagamento de US$ 300 por família de acordo com o consumo de energia, a extensão dos pagamentos de serviços básicos por três meses, a suspensão dos pagamentos de crédito por três meses, a proibição da demissão por três meses para pessoas em quarentena, um bônus de US$ 150 para funcionários públicos atualmente trabalhando na contenção da crise, além da medidas recomendadas em nível internacional.
“Nem tudo que reluz é ouro”, diz um ditado antigo. O mesmo vale para Bukele. Em um esforço para conter a primeira onda da epidemia no interior do país, reviveu antigas práticas de repressão e vulneração dos direitos humanos, sendo um recurso que se desprende de uma ideologia hegemônica da Lei Penal como solução fácil para todo tipo de crise. Apesar dessas regras draconianas, em 31 de março, o país registrava 29 casos importados e três contágios aparentemente comunitários de COVID-19. Os casos importados são salvadorenhos vindos da Itália, Estados Unidos, Guatemala, Espanha, Colômbia, França, Canadá e Brasil. No caso da transmissão comunitária, uma entrou por um ponto cego na fronteira e duas foram detectadas na quarentena domiciliar, um deles infectado num suposto contato com pessoas dos Estados Unidos. Dos casos importados, 28 se encontram nos centros de contenção da epidemia, nos quais foram obrigados a permanecer os salvadorenhos que entraram no país depois de decretado o fechamento de fronteiras, que abrigam a 4,098 pessoas.
Por outro lado, em três dias de implementação da quarentena domiciliar obrigatória, 607 pessoas foram presas como criminosas. Devido à aplicação abrupta da medida, esse número poderia chegar a 6,000 pessoas passados 30 dias de quarentena. No entanto, a Corte Suprema de Justiça interveio com um Habeas Corpus e determinou que as pessoas detidas nas delegacias por restringir as medidas de isolamento não eram criminosas e, portanto, deveriam ser colocadas nos centros de contenção adequados para esse fim. Caso isso não fosse possível deveriam, retornar as suas casas. Por isso em 31 de março havia apenas 712 “restringidas de circulação” em nível nacional. Muitas dessas pessoas são trabalhadores informais que precisam circular pelas ruas, não porque queiram, mas porque precisam ganhar alguma renda para sobreviver. Manter 30 dias de quarentena é um privilégio de classe social que a maioria dos salvadorenhos não pode “cumprir”.
Contudo, do ponto de vista político, por efeito dessa operação de “guerra contra o vírus”, a imagem do presidente que havia promovido um autogolpe fracassado praticamente desapareceu da memória, quer seja da sociedade salvadorenha, quer seja internacionalmente. Segmentos do vídeo que está circulando na região mostram o lado “generoso e consciente” do discurso de Bukele sobre as medidas tomadas para conter a COVID-19 e mobilizam a empatia de pessoas e grupos que consideram esse o caminho correto a ser seguido. No entanto, os vídeos propagados pelas redes sociais de Bukele são decididamente parciais. É fundamental que seu discurso seja visto na totalidade para que as pessoas de fora do país possam perceber os traços esquizofrênicos mesclando frases como: “devemos ter esperança em Deus” , “estamos frente à terceira guerra mundial” , “em El Salvador teremos 3.145.728 infectados em 20 de maio, se não tomarmos medidas drásticas ”.
Bukele recorre ao medo, ao pânico e ao terror para manipular e controlar a população. No atual contexto, os fantasmas da repressão política, tortura, maus-tratos, humilhação e violação dos direitos humanos do passado estão sendo restaurados pelas forças de segurança pública e justificados como medidas necessárias para “salvar” a população de um novo inimigo interno: a COVID-19. Muito claramente, as “medidas sanitárias” adotadas, que são repetidas ad nauseam em cadeia nacional – e que contam com a aprovação do representante da OPAS — cumprem a função de sanear a imagem do caudilho do 9 de fevereiro, fazendo nascer um “salvador messiânico”, que, caso consiga conter a infecção da COVID-19 em El Salvador, com ajuda de sua maquinaria publicitária nos meios virtuais, vai claramente vender essa imagem pelo mundo afora.
Post-scriptum
Dois dias antes da publicação desse artigo, uma multidão de pessoas tomou o centro da capital de El Salvador, como se pode ver na imagem ao lado. Romperam todas as regras estabelecidas pelo “estado de exceção” e colocaram suas vidas em risco aglomerando-se na frente de edifícios do governo para conseguir os 300$ de renda básica, anunciado por Bukele e aprovados pelo Congresso no dia anterior. Esse caos potencialmente mortífero foi também provocado pelo populismo do presidente que anunciou o beneficio em cadeia nacional informando que todos os domicílios com consumo menor que 250 KWH mensais estariam habilitados a recebê-lo. Entretanto, os critérios e regras definidos pela política são, de fato, muito mais restritos. Uma parcela importante da população que foi às ruas não receberá a ajuda, além de ter sido desnecessariamente exposta a COVID 19.
*Educador, mestre em Estudos de Paz, Conflito e Desenvolvimento e doutor em Estudos Gênero e Sexualidade.
Fotos de El Faro, Victor Pena y Carlos Barrera.