
O Observatório de Sexualidade e Política (SPW), o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da Universidade Federal de Minas Gerais (NUH/UFMG) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) lançam o relatório de pesquisa “Fronteiras Borradas: Movimentos Feministas e de Mulheres e Política Antigênero no Brasil”, que também conta com o apoio da Ação Educativa, do Cladem Brasil, de Criola, Ipas Brasil e da campanha Nem Presa Nem Morta.
O estudo examina de onde vêm, quem são, onde estão as correntes feministas antigênero/transfóbicas/essencialistas brasileiras e como se situam e atuam no cenário político mais amplo de desdemocratização, crescimento e consolidação do ultraconservadorismo e da extrema direita no país.
Essa cartografia também explora a imersão e a interação dessas correntes no universo feminista mais amplo e sua confluência com atores da ultradireita nacional e transnacional, a partir de uma atuação antitrans. Analisa os antecedentes históricos, as estratégias adotadas por essas correntes feministas, seu alcance em termos de articulação política e seus efeitos nas lutas feministas e pelos direitos LGBTQIA+ e, mais especialmente, seus impactos sobre os direitos das pessoas trans, alvo prioritário desses grupos.
Combinando metodologias múltiplas — revisão de literatura, análise de redes sociais e entrevistas —, a pesquisa informa que, muito embora os discursos contra os direitos das pessoas trans propagados por essas correntes não sejam exatamente uma novidade, sua presença e influência ganharam uma outra escala no Brasil desde a derrota de Bolsonaro, em 2022. E têm sido nefastos os efeitos dessa amplificação, o que demanda respostas firmes dos feminismos inclusivos, assim como do campo progressista mais amplo, no âmbito dos direitos humanos, da academia, da mídia e mesmo na esfera político-institucional. Por essa razão, o informe insiste na urgência de elucidar o borramento de fronteiras e a confusão que a semântica e a ação dessas correntes têm provocado para ampliar o conhecimento sobre sua atuação e efeitos das políticas antitrans. E, principalmente, nutrir posições de distância e crítica qualificada acerca do gênero e da identidade de gênero.
Fronteiras borradas
O estudo traça uma cronologia da presença e da atuação das correntes feministas essencialistas no Brasil a partir de 2013, ou seja, quando o campo ultraconservador deflagrou uma primeira ofensiva de larga escala contra o gênero na educação. Essa reconstrução mostra que, a partir de 2015, essas vertentes ganharam espaço como lideranças de campanhas contra a Lei de Alienação Parental, cujos efeitos recaem sobre mulheres mais pobres. Nesse cruzamento, o apelo pelos “direitos maternos” fertilizaria trocas e colaboração com atores políticos do ultraconservadorismo e da ultradireita. Além disso, durante a era Bolsonaro, alguns coletivos e figuras desse campo ganharam legitimidade diante de instâncias estatais. Mas, muito claramente, foi após a derrota de Bolsonaro em 2022 que esse campo se adensou e adotou contornos institucionais mais nítidos.
O cerne do estudo é uma análise de redes sociais que descortina o emaranhado que compõe o campo feminista essencialista, identificando não apenas conexões palpáveis num arco que vai da esquerda à ultradireita do espectro político, mas também o borramento de fronteiras que isso produz, em especial no universo dos feminismos. Apesar dessa ambiguidade, o estudo identificou um deslocamento crescente em direção à direita do espectro, assim como um núcleo de figuras e coletivos que tanto operam como pivots entre os extremos do espectro quanto lideram as conexões com os clusters de extrema direita que compõem o mapa.
Por outro lado, as entrevistas realizadas com ativistas e pessoas do campo acadêmico trazem evidências consistentes quanto aos efeitos deletérios da maior presença e da sedimentação dessas correntes, seja em termos do “confusionismo” que incita, seja, sobretudo, porque tem ativado camadas profundas de transfobia no feminismo, nos circuitos de esquerda e na própria sociedade. Finalmente, o estudo também apresenta dois estudos de caso muito ilustrativos das questões, tensões e impactos apontados nas seções anteriores. O primeiro deles examinou os ataques sistemáticos feitos pelas correntes essencialistas ao Ministério das Mulheres, desde sua recriação em janeiro de 2023. E o segundo reconstrói a dinâmica em torno da anunciada missão da Relatora Especial da ONU para a Violência Contra as Mulheres e Meninas e seu posterior adiamento, em especial no que diz respeito aos vínculos da relatora com o campo que foi objeto da pesquisa.