No mês de março, publicamos um balanço sobre as ofensivas ao aborto legal no Brasil nos últimos dois anos. Na ocasião, destacamos que, especialmente desde o governo Bolsonaro, esse tem sido um dos alvos prioritários da ultradireita, especialmente através de operações jurídicas e políticas para impedir ou atrasar a realização do procedimento em meninas de até 14 anos. Nossa cronologia também chamou a atenção para a resposta insuficiente do governo federal até aquele momento, não havendo uma defesa vigorosa do direito previsto em lei desde 1940. Ao contrário, na votação da Resolução 258 do Conanda, o governo se posicionou de forma alinhada à ultradireita.
É possível dizer que não houve alterações nessa postura contida por parte da gestão federal ao longo de todo o primeiro semestre. E não faltaram oportunidades, uma vez que as ofensivas antiaborto não arrefeceram, especialmente nos níveis estadual e municipal, tendência que já vinha se desenhando nos últimos anos. Mas as resistências também seguem firmes, mobilizando diversos Poderes e setores da sociedade na defesa do aborto legal, já que os ataques não devem sair de pauta tão cedo.
Este cenário, lembramos, não é limitado ao Brasil: como adiantamos já em março, a cena transnacional é componente fundamental de análise, agora sob forte influência de Donald Trump, incansável na mobilização do poderio político, comercial e militar dos Estados Unidos para o avanço de pautas da ultradireita, de onde a postura antiaborto é parte fundamental.
A seguir, trazemos uma breve atualização do cenário do aborto legal no país no primeiro semestre de 2025: as incessantes ofensivas que buscam restringí-lo, e as ainda mais vigorosas resistências que seguem vigilantes em sua defesa.
Março: pressão nacional e internacional
Na primeira quinzena de março, o Estado brasileiro recebeu uma pressão internacional significativa pela defesa ao direito ao aborto. Três relatorias especiais em direitos humanos das Nações Unidas (entre elas a relatoria sobre execuções sumárias e a relatoria sobre formas contemporâneas de racismo) emitiram um comunicado ao governo brasileiro expressando sua preocupação com as ameaças ao direito ao aborto no país em virtude da tramitação do PL 1904/2024 (que criminalizaria o aborto em todas as circunstâncias) e à PEC 164/2012, que inclui na Constituição a proteção do direito à vida desde a concepção. A resposta do governo foi firme em defesa da legislação em vigor – mas essa firmeza contrasta com a atuação da gestão no ano anterior, especialmente na suspensão da Nota Técnica 37/2023-SAPS/SAES/MS e na resistência à aprovação da Resolução 258 do Conanda. Batalhas que seguem em curso, pois embora a Resolução tenha sido aprovada, nunca deixou de ser alvo das forças antiaborto. A campanha Nem Presa Nem Morta mapeou a existência de 13 Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) com o objetivo de derrubá-la, sendo 10 na Câmara e 3 no Senado. Em julho, foram propostos, com esse objetivo, o PDL 36/2025, do senador Eduardo Girão (NOVO/CE) e o PDL 35/2025, do senador Magno Malta (PL/ES).
Também em março, um projeto de lei chamou a atenção por ir no sentido contrário de PLs restritivos ou criminalizantes que em geral têm sido propostos nas Casas Legislativas: a deputada federal Érika Hilton (PSOL-SP) anunciou que quer botar em pauta um projeto de lei que anistia as mulheres presas e investigadas por abortar no Brasil. A proposta encontra eco na realidade, como evidencia a pesquisa “Criminalização do Aborto no Brasil: um estudo sobre os itinerários penais e punitivos de 2012 a 2022″, da Anis. O estudo, lançado em julho, trouxe o dado aterrador de que, no Brasil, quatro em cada cinco mulheres denunciadas por interromperem uma gestação acabam condenadas. Na década analisada, ao menos 569 pessoas foram processadas e 218 foram privadas de liberdade (destas, 175 foram presas antes mesmo do julgamento). Nesse contexto, é significativo que, à ocasião da proposição, Hilton tenha defendido que não se pode ter vergonha de colocar isso em pauta. “Pois aqueles que, em toda legislatura, pautam projetos misóginos e odiosos, estão por aí, orgulhosos dos horrores que produzem”.
Maio: “Criança não é mãe” chega à Brasília
Na Semana Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, representantes das organizações que compõem a articulação “Criança não é Mãe” estiveram em Brasília. Entre as ações, as ativistas lançaram o vídeo Maternidade Não É Coisa de Criança e participaram do Simpósio Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, articulando com outros setores a contenção de retrocessos como os já mencionados PL 1904/2024 e PEC 164/2012, reafirmando a importância do acesso ao aborto legal. As deputadas Erika Hilton, Sâmia Bomfim (Psol-SP) e Luciene Cavalcante (PSOL-SP) fizeram falas em apoio à campanha.
Junho e julho: Lei das Fake news sobre aborto e mais uma morte evitável
À intensa mobilização de reafirmação do direito ao aborto legal em nível nacional, seguiu-se, mais uma vez, um ataque a esse direito. Dessa vez no Rio de Janeiro, com a aprovação na Câmara Municipal e posterior sanção de Eduardo Paes da lei 8396/2025, que obriga unidades de saúde a exibirem placas com desinformação antiaborto, sob pena de advertência e multa às unidades.
A lei, que ficou conhecida como a “Lei das Fake News de Aborto”, foi amplamente repudiada por organizações feministas e outros setores – carta assinada pela Abrasco, CEBES, ABRES e Rede Unida, por exemplo, foi firme em afirmar que “a referida Lei é mais um instrumento do Estado brasileiro a produzir desinformação generalizada na população, além de coibir direitos reprodutivos de meninas, adolescentes, mulheres e pessoas que gestam, garantidos desde 1940″. As entidades mencionam a proposital mistura de termos e ocultação de informações que acarretam em moralização e desinformação.
Coube mais uma vez ao Judiciário conter o ataque. O Ministério Público do estado entrou com ação pedindo a derrubada da lei, e apenas poucos dias após a sanção do prefeito Eduardo Paes a juíza Mirela Erbisti confirmou a decisão. Vale ler o texto da juíza, exemplar em ressaltar a violência e revitimização contidos na lei, e resgatando normativas e obrigações internacionais do Brasil, como a Recomendação 24 da CEDAW e a recém criada Rede Alyne Pimentel, resposta a um caso marcante de violência obstétrica e racismo pelo qual o país foi responsabilizado.
Já no Congresso Nacional, no contexto da realização da 18ª Marcha Nacional pela Vida, que aconteceu no dia 10 de junho, em Brasília, instituições que atuam contra o direito ao aborto foram homenageadas em sessão especial do Senado. Na mesma semana, a Comissão de Direitos Humanos da casa concedeu parecer favorável ao projeto de lei que exige a veiculação de campanhas sobre os supostos “riscos físicos e mentais relacionados ao aborto”. O PL altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é de co-autoria do Senador Eduardo Girão (Novo-CE) e a relatora cujo parecer favorável foi aprovado é a Senadora Damares Alves (Republicanos-DF), presidente da Comissão.
No início de julho, o PSOL, com apoio da Frente Estadual contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto / Frente Rio, apresentou uma ADPF ao STF contra a lei 8.396/25. A Ação argumenta que a lei é inconstitucional e agrava as barreiras de acesso ao aborto legal, além de violar os princípios da dignidade humana, cidadania, não discriminação e proibição de tortura, além do direito fundamental à saúde e direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Um julgamento positivo do STF nesta ação pode impedir que leis do tipo proliferam-se em outras localidades, o que, segundo a Campanha Nem Presa Nem Morta, já começou a ser articulado. À época da aprovação da Lei na Câmara do Rio e da sanção do Prefeito, o vereador Rafael Yonekubo (PL) apresentou à Câmara Municipal de Cuiabá um projeto de lei praticamente idêntico. O mesmo aconteceu em São Paulo, por iniciativa do Vereador Lucas Pavanato, também do Partido Liberal.
Também em julho, uma morte evitável no interior de Minas Gerais ganhou as manchetes e ilustra os riscos da gestação em crianças: uma menina indígena de apenas 12 anos, migrante venezuelana da etnia Warao, morreu por complicações de uma gravidez – que, por sua idade, deve ser entendida como resultante de violência sexual. Sua família só tomou conhecimento da gestação com mais de seis meses – o que, segundo a legislação, não impediria a realização do aborto (na verdade, segundo a OMS, a interrupção da gravidez nessa faixa etária é consideravelmente mais segura do que levá-la a termo). Como mostramos em nosso primeiro balanço, as forças antiaborto, representadas não apenas no Legislativo mas também em órgãos como o CFM, vêm tentando limitar a idade gestacional – ao contrário do que diz a lei -, para restringir ainda mais o direito ao aborto, especialmente em casos resultantes de violência sexual. Este mais recente e lamentável episódio, que terminou em óbito, ilustra como não são manobras em defesa da vida.
Como fica evidente, as perspectivas para o direito ao aborto, no curto prazo, são muito desafiadoras no Brasil. Seja pelas condições internacionais de uma ultradireita com fôlego e tração crescentes em diferentes continentes, seja pelo contexto político nacional. A cerca de um ano de eleições gerais, persiste a polarização do eleitorado frente a um governo sem grande aprovação popular e uma ultradireita transnacional atacando as instituições brasileiras, em especial o Judiciário. Historicamente, as gestões petistas nunca hesitaram em largar a mão da pauta do aborto quando se viram pressionadas, e as pautas de direitos humanos tendem a ser as primeiras limadas nos jogos e negociações de poder. Tudo indica que – na pauta do aborto, mas não só – não há mar calmo no horizonte, exigindo ainda mais vigilância de ativistas e defensores dos direitos sexuais e reprodutivos.