por Rogério Diniz Junqueira (Inep)
& Marco Aurélio Máximo Prado (UFMG)*
Resumo
Considerando que pandemias são alvo de gestão ético-política por parte de governos e sociedade, objetivamos aqui reconhecer correlações possíveis entre a pandemia do HIV/aids e a atual da Covid-19 com vistas a sublinhar a herança de lutas sociais de grupos subalternizados e, desse modo, interpelar o uso da noção de “grupo de risco”, fortemente criticada pelos movimentos de base comunitárias desde a década de 1990. Abordamos os sentidos dispersos desta noção e os efeitos de sua adoção, sobretudo, na gestão ético-política da pandemia da Covid-19. Por fim, buscamos caracterizar a resposta brasileira à pandemia atual e seus nexos com a reativação de uma noção anacrônica que parecia ter sido abandonada.
A memória social e política, particularmente aquela relacionada às lutas de grupos subalternizados e/ou estigmatizados, não figura entre os elementos mais valorizados em nossa sociedade. No entanto, vale enfatizar que, a partir dela, podemos relacionar aprendizados, acumular e potencializar redes e experiências de solidariedade e, assim, incrementar reflexões, reforçar e reinventar lutas por conquistas de direitos, dignificação e ressignificação da vida e do mundo.
Em um quadro catastrófico de pandemia, antecedido pela pior crise econômica em décadas, por retrocessos nas esferas políticas e sociais, entre outras e, por um cenário ainda mais agravado por uma gestão autocrática, desordenada, inconsistente e inconsequente da pandemia (Ventura, 2020), incentivar a participação, relembrar debates e revalorizar saberes construídos ao longo de batalhas coletivas pode ser não apenas necessário mas indispensável.
A insegurança, a desinformação, a incerteza e a desesperança têm sido amplamente cultivadas, entretanto não são igualmente distribuídas na sociedade. Inclusive por isso, vincular temporalidades certamente requererá muito mais do que ir em busca de lembranças afetivas, mas exigirá sobretudo a revalorização da construção conjunta de saberes partilhados, bem como o questionamento, a redefinição e o abandono de conceitos, disposições, relações de poder, classificações e práticas geradoras de opressão e sofrimento. Entre outras coisas, isso implica tensionar a administração ético-política dos corpos, das enfermidades, das pandemias, dos territórios, e também envolve rever a nossa relação com saberes biomédicos, jurídicos e os poderes públicos. Diante disso, parece-nos importante considerar que a gestão ética, social e política da pandemia da Covid-19 possa ter em sua base alguns dos fundamentos coletivamente construídos no âmbito do enfrentamento da pandemia do HIV/aids (Fee, 2006) entre os anos de 1980 e 2000, no Brasil.
É nessa articulação que queremos argumentar a possível relação entre as pandemias, especificamente entre a pandemia do HIV/aids e a atual da Covid-19[1]. Há várias dimensões dessa relação, todas complexas. Ativar essas memórias sociais e políticas poderá, em certa medida, contribuir para incrementar o debate público não apenas em torno das conduções do enfrentamento da atual pandemia, mas também para imprimir-lhe novos rumos e, quem sabe, enriquecer e impulsionar uma série de discussões e lutas em um cenário de barbárie, erosão da cidadania e desmantelamento dos direitos fundamentais.
HIV/aids e Covid-19: correlações possíveis
Aprendemos no caso do HIV/aids e de outras enfermidades que o manejo ético-político de uma pandemia não pressupõe apenas políticas e planos de ações públicas efetivamente organizados para o seu enfrentamento e controle. Envolve, sabidamente, uma complexidade de atores sociais, sujeitos, instituições, organizações, percepções, interesses, concepções. Em tal caso, narrativas biomédicas, tratos médicos, pedagogias, crenças e conhecimentos híbridos podem incidir na modelagem de medidas preventivas e nas decisões políticas sobre as formas de enfrentamento das doenças coletivas. Nesse sentido, coordenação de uma gestão pode desvelar a nossa capacidade como sociedade de reconhecer as facetas das vulnerabilidades históricas, valorizar as solidariedades construídas e reafirmar a política social como um direito.
As formas erráticas, mal articuladas, contraditórias e inconsistentes de enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil têm nos conduzido a dados alarmantes de contaminação, letalidade e ocupação do sistema de saúde público e privado. Isso sem mencionar a crise política à qual o governo federal parece dedicar-se com vistas a viabilizar um projeto autoritário e repressivo, aproveitando-se inclusive do contexto de distanciamento físico. Nem sequer parece hesitar em disfarçar sua aversão a diretrizes fornecidas pela comunidade científica e seu empenho contra toda e qualquer ação voltada a garantir medidas efetivas de prevenção ao avanço da pandemia, tanto em termos sanitários como econômicos (Ápyus, 2020).
Mesmo com taxas ínfimas de testagens da população e reconhecidamente elevada subnotificação, o país lidera os registros de novos casos e de mortes no último mês, e é um dos poucos que não faz rastreio de contatos (Gabriel, 2020; Santino, 2020; Tenente, 2020). Gestores estaduais e municipais, em geral, entre posturas negacionistas, anacrônicas, cínicas, desinformadas e acovardadas, mostram-se desorientados e desprovidos de planos articulados e bem estruturados em termos conceituais, além de raramente respaldados em dados epidemiológicos consistentes e critérios que priorizem a defesa de todas as vidas. A maioria deles revela-se disposta a improvisar soluções, ao sabor da ilusão de que podem promover uma “gradual” (mas, na verdade, acelerada) “reabertura inteligente das atividades” em pleno avanço da pandemia.
O desastre anunciado se materializa a cada nova semana, e a catástrofe não parece ser grande o bastante para convencer a maioria dos dirigentes políticos e os grupos econômicos sobre a necessidade de reverem radicalmente suas posições. Não por acaso, a resposta brasileira à pandemia atual, muito diferentemente do que ocorreu no caso do HIV/aids, tem sido alvo de grande preocupação da comunidade internacional, que passou a ver o país como uma ameaça global (Chade, 2020). De modelo que éramos, somos agora um claro exemplo a não ser seguido (Lodoño, Andreoni & Casado, 2020).
Embora as duas situações estejam marcadas por contextos políticos e sanitários distintos, há correlações possíveis a serem feitas que poderão nos ajudar a construir melhores respostas para este momento. A pandemia do HIV/aids recebeu por parte da sociedade brasileira respostas variadas ao longo do tempo. Entre as décadas de 1980 e 2000, segundo Richard Parker (2020), assistimos à construção de políticas de enfrentamento, fruto da mobilização social comunitária, balizadas por quatro princípios ético-políticos: a solidariedade, o reconhecimento à diversidade, cidadania e a saúde entendida como direito fundamental. Amalgamadas ao sabor de contextos sociais, políticos e econômicos adversos (“abertura democrática”, crise econômica prolongada, intensas mobilizações sociais), as respostas envolveram inclusive as políticas de educação. Em 1996, o Ministério da Educação incluiu a sexualidade como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental.
O discurso institucional, no entanto, em vez de ensejar a ampliação do debate e abordagens mais críticas e inovadoras, favoreceu uma associação da sexualidade às ideias de risco e ameaça, e foi por isso, ao longo de anos, alvo de críticas crescentes. A tônica alarmista caracterizou inúmeras campanhas promovidas pelo Ministério da Saúde na segunda metade dos 1980, e sua mudança resultou das pressões dos movimentos sociais e outros atores sociais. Com efeito, a partir da década seguinte, o discurso foi gradativamente trazido para o terreno da cidadania e dos direitos humanos, ainda que, muitas vezes, o foco tenha permanecido na prevenção. Na esteira de embates e polêmicas que atravessaram todo esse período, logrou-se ressignificar, mais nitidamente a partir do início dos anos 1990, um dos pontos nodais das ações de enfrentamento ao HIV/aids: a noção de “grupo de risco”.
A noção de “grupo de risco”, seu emprego e conotações
Essa nomenclatura, vaga e imprecisa, um significante com muitas interpretações, foi utilizada no início da pandemia do HIV/aids, no Brasil e em vários países. Seu emprego foi alvo de intensas críticas por ensejar percepções equivocadas do alcance da pandemia, favorecer o enquadramento da discussão no terreno da moral sexual e contribuir para agravar o quadro de estigmatização das pessoas diretamente atingidas. Isso deixou rastros profundos, pois, apesar da identificação do agente causador da síndrome e das várias formas de transmissão, ao longo dos anos de 1990 ainda era recorrente o acionamento dessa noção, não raro, acompanhado da culpabilização de “gays”, “prostitutas” e “usuários de drogas” pelo advento da aids. Mesmo perdendo força e espaço, a noção parece não ter sido de todo abandonada.
Vale lembrar que “risco” é uma categoria epidemiológica que indica as probabilidades de um corpo ou de um grupo com determinadas características ser afetado por algum tipo de enfermidade em maior escala do que outros indivíduos ou grupos. Refere-se ao corpo frente a determinadas enfermidades ou comorbidades, embora sua utilização no discurso biomédico seja bastante imprecisa (Ayres, 2011; Spink, 2001). A partir desse entendimento, “grupo de risco” indicaria corpos que, em determinadas situações, estariam mais expostos e vulneráveis do que outros, possuindo, assim, um risco maior de adoecimento do que outros. Naquele momento, um termo usado pelo discurso médico para significar “um corpo mais vulnerável”, portanto, com maior risco de exposição à enfermidade, migrou rapidamente para outro terreno. Ou seja, em pouco tempo a noção passou a respaldar um discurso que acionava (e ainda aciona) uma compreensão de “grupo de risco” permeada pela moralidade sexual. Desde então, a cada vez que emerge, ela parece quase invariavelmente ostentar o potencial de operar como um vetor de discriminação e estigmatização de grupos sociais a que venha se referir, realçando preconceitos e alimentando processos de classificação e marginalização[2].
Novos estudos poderão nos esclarecer, mas, até o momento, temos a impressão de que a noção de “grupo de risco” adotada no Brasil no caso da Covid-19 parece dever muito a um processo de internalização de um entendimento talvez aligeirado do que teria sido a experiência europeia (especialmente a italiana) no enfrentamento à pandemia (Harayama, 2020). Antes mesmo dos primeiros registros oficiais de casos no país, propagavam-se entre nós representações do idoso e do sujeito com comorbidade como integrantes por excelência do “grupo de risco” da Covid-19. Pouco parecia contar o fato de que ainda carecemos de estudos aprofundados sobre as formas e as facilidades de transmissão do vírus e as possíveis manifestações clínicas em uma sociedade com elevada concentração de renda, altas taxas de desemprego e subemprego, acentuadas clivagens sociais, raciais e de gênero, enormes diferenças territoriais, desigualdade no acesso à informação e à comunicação, serviços públicos em processo de acelerado desinvestimento, com consequente agravamento nas áreas da saúde pública, assistência social, educação, na cultura e na oferta de moradia e de transporte público, entre outros.
Em um país onde mais de um quarto dos mortos por Covid-19 está fora dos assim denominados “grupos de risco” (Souza, Prazeres, Magalhães & Grandelle, 2020) e 45% das internações por coronavírus são de pessoas entre 20 e 59 anos (Manzano, 2020), um turbilhão de discursos cacofônicos cravejados de noções restritas e anacrônicas faz com que as sinergias das vulnerabilidades que podem levar enormes contingentes sociais a serem afetados fiquem, no melhor dos casos, em segundo plano.
Várias vezes especialistas chamaram nossa atenção para o fato de que, se, por um lado, poderíamos admitir a existência de fatores que, por assim dizer, aumentam os “riscos” ou agravam as situações de vulnerabilidade; por outro, teríamos que suspender a noção de grupo de risco pois ela, entre outras coisas, favorece uma compreensão dicotômica açodada de que os demais estariam, grosso modo, ao seguro, fora de perigo.
Assim, deveria soar bastante paradoxal falar em “grupo de risco” diante de uma pandemia. Mais ainda diante de uma pandemia cuja etiologia deriva de um vírus altamente contagioso. Especialmente quando não há vacina nem medicação específica para combatê-lo, e os protocolos de tratamento dos sintomas das pessoas infectados são alvo de enormes polêmicas. E se, além da falta de testes, campanhas informativas e transparência na divulgação de dados, as discussões em torno das medidas de prevenção e de distanciamento físico são capturadas e polarizadas em virtude de meros interesses políticos e econômicos.
Evidentemente, podemos convir que há fatores que aumentam sensivelmente os “riscos” frente a uma determinada disseminação de um agente etiológico com altíssima capacidade de contaminação. No entanto, a questão é saber se a distribuição desses riscos deve ficar dicotomicamente circunscrita a categorias definidas em bases essencialistas (“o idoso”, sim; “o jovem”, não) ou se, em vez disso, consideramos que grande parte desses fatores geradores de risco são, de todo modo, socialmente localizados e politicamente conotados. Uma pessoa idosa, um dos alvos da mira do juízo crítico durante essa pandemia, não é simplesmente “mais velha”. Além de outros marcadores sociais, ela está sujeita a uma série de fatores sociológicos associados a diferentes processos de pertencimento e atuação no mundo da vida. Nem mesmo a idade é uma mera condição ou constatação cronológica, e seu acúmulo pode possuir sentidos e representar possibilidades diferentes para pessoas de mesma faixa etária. A complexidade de fatores que concorrem nas dinâmicas de estruturações sociais e nas distribuições desiguais dos fatores de “riscos” e na definição das possibilidades de acesso a medidas preventivas ou ao tratamento, deveria nos levar a construir processos mais sofisticados e dialogados (participação e controle social) de avaliação dos cenários, com vistas a pensar em medidas de prevenção e tratamento (e na viabilização de seu acesso) pautadas pela compreensão da gestão ético-política mencionada anteriormente, e que contemplem ações políticas transversais e interseccionais para garantir a proteção de quem quer que necessite delas, considerando elementos comuns, específicos e multiplicidades de condições, circunstâncias, dinâmicas.
Ao lado disso, é no mínimo curioso observar essa tentativa de revestir de laivos de generosa preocupação com o cuidado e a proteção uma noção reconhecidamente dotada de carga preconceituosa e estigmatizante. Os efeitos perversos podem ser muitos, podendo chegar a uma situação em que o sujeito foco da atenção e do cuidado é preterido, desamparado, abandonado. Vale mencionar o que sinalizam Luiz Mello e Jean Baptista (2020) no caso de situações (nada hipotéticas) em que os profissionais de saúde devem decidir qual paciente acudir:
Em face da inevitabilidade da Escolha de Sofia (…), os integrantes de grupos de risco/vulneráveis perdem o lugar de prioridade que supostamente seria seu. A atenção e os cuidados passam a ter como alvo os mais jovens, os bem nutridos, os sem histórico de doenças graves, por possuírem condições prévias que ampliam as chances de sobrevivência (…). Nesse sentido, a partir de um critério de elegibilidade clínica, a expressão “grupo de risco” ou “grupo vulnerável” passa a fragilizar ainda mais quem em tese deveria proteger (Mello & Baptista, 2020).
Gestão ético-política catastrófica e o “novo normal”
Com base nesses argumentos, poderíamos elencar os efeitos deletérios da utilização da noção “grupo de risco” para instrumentalizar uma gestão ético-política catastrófica da pandemia no Brasil. Dentre tantos possíveis exemplos, um merece destaque: o da administração interessada em realizar, o mais rapidamente possível, a “abertura inteligente das escolas”. De quebra, defende-se também a manutenção do calendário das universidades e das avaliações em larga escala, afinal, como dizia uma recente peça publicitária do governo federal, de caráter alegadamente motivacional: “E se uma geração de novos profissionais fosse perdida? Médicos, enfermeiros, engenheiros, professores. Seria o melhor para o nosso país? A vida não pode parar. É preciso ir à luta, se reinventar, superar” (Ministério da Educação, 2020).
De fato, não parecem ser poucos os atores políticos desejosos de se valer tanto das difusas incompreensões acerca da pandemia, quanto dos equívocos que noções como a de “grupo de risco” potencialmente implicam. Em tais casos, associar uma noção de fácil consumo (como a de que há “grupos de risco” com determinadas características fixadas e evidentes) a outras ideias supostamente técnicas pode contribuir para conferir fé cênica aos personagens e encarecer a narrativa sanitária que tentam promover. Considerações pretensamente técnicas munir-se-ão de termos criados para conferir espessura e validade a argumentos fictícios. O repentino surgimento de termos alheios aos estudos epidemiológicos, como os de “isolamento vertical”, é um exemplo disso.
Contrariando as recomendações dos organismos internacionais (Fundo das Nações Unidas para a Infância [Unicef], Organização Mundial de Saúde [OMS] & Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho [IFRC], 2020), Bolsonaro fez inúmeras declarações defendendo o retorno imediato às aulas presenciais, valendo-se, não por acaso, das noções de “grupo de risco” e “isolamento vertical”.
Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa. O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima de 60 anos. Então, por que fechar escolas? (Brasil. Jair Messias Bolsonaro, 2020)[3]
Tem que enfrentar a chuva, pô. Tem que enfrentar o vírus. Não adianta se acovardar, ficar dentro de casa. Nós sabemos que a vida é uma só. Sabemos dos pais que estão preocupados com os filhos voltarem à escola. Mas tem que voltar à escola, nós não temos nenhuma notícia de alguém abaixo de 10 anos de idade que contraiu o vírus e foi a óbito ou foi para a UTI. (Brasil. Jair Messias Bolsonaro, 2020)[4]
O governo federal, se depender de nós, está tudo aberto com isolamento vertical e ponto final. (Brasil. Jair Messias Bolsonaro, 2020)[5]
Dentre o muito já dito para esclarecer e evitar os danos que os cultivados equívocos e o desdém que tais declarações expressam, vale sucintamente lembrar uma análise de Ana Estela de Sousa Pinto (2020) acerca das evidências que têm sido repetidas por especialistas em contenção de doenças transmissíveis em todo o mundo:
Jovens são tão suscetíveis a contrair o vírus quanto os mais velhos (…) a evolução da doença nos mais jovens é mais branda que entre os mais velhos, mas o novo coronavírus pode matar até mesmo crianças, com uma probabilidade maior que a da gripe comum (…) quanto mais jovens contaminados, maior o risco para os mais velhos e doentes (…) Entre os mais jovens, a transmissão é mais intensa (…) a velocidade de transmissão depende da intensidade de contato entre as pessoas. Nas escolas, essa taxa de interação é o dobro da verificada nas empresas ou no cotidiano das cidades, (…) [cientistas do Imperial College estimam que] um terço das transmissões do novo coronavírus aconteça nas escolas. (…) O sistema de saúde precisa ser protegido: sem medidas mais drásticas que reduzam a velocidade de contágio, os hospitais entram em colapso mesmo nos países mais ricos.(…) É preciso planejamento (…). (Pinto, 2020)
Por sua vez, Naomar Almeida Filho (2020), em seu breve comentário genealógico sobre a noção de “isolamento vertical”, não hesita em denunciá-la como uma fraude pseudocientífica e aponta os mesmos efeitos danosos anteriormente mencionados:
Do ponto de vista epidemiológico, não faz qualquer sentido usar uma quarentena invertida, aplicada somente a vulneráveis e não a infectados, sem contar que grande parcela da nossa gente vive em condições que dificilmente ou jamais pode isolar alguém em casa. A livre circulação dos sujeitos contaminantes, sintomáticos ou não, facilita o contágio e a pandemia foge a qualquer controle, podendo tornar-se endêmica. Além de cientificamente inválida, essa estratégia é problemática também do ponto de vista da ética médica, na medida em que implica um gerontocídio anunciado, dada a maior virulência e letalidade da covid-19 entre idosos. Em suma, por esses e outros motivos, a esquisita noção de “isolamento vertical” não se sustenta nos campos científicos da medicina e da saúde coletiva. (Almeida Filho, 2020)
Embora não seja uma novidade, é inquietante notar que, quando se dispõe de meios e encontram-se convergências de interesses ou setores propensos a se deixar capturar, pode ser fácil fazer concepções anacrônicas e narrativas enganosas ganharem cada vez maior espaço na arena pública. Cabe, porém, observar que, por trás daquilo que aparenta ser uma mera e proverbial manifestação de falta de razoabilidade ou de conhecimento de causa, pode ser mais uma estratégia ardilosa.
Um gestor político desdenhoso da saúde coletiva, indiferente à angústia e ao tormento a que submete a população, pode apostar em medidas ardilosas com vistas a construir ou reforçar a sua imagem de gestor determinado, cheio de convicções, corajoso “defensor da vida, da família e das crianças”. Nesse momento, sofisticadas estratégias retóricas podem ser ativadas, inclusive, em “defesa dos direitos humanos e dos direitos fundamentais” em contraposição àqueles gestores empenhados em implementar medidas de distanciamento físico e diminuição da circulação da população nos centros urbanos.
Ao lado disso, entre atores de diferentes campos político-ideológicos, vemos emergir uma invocação a um “novo normal”. Uma ideia supostamente generosa, que, no entanto, expressa uma ânsia normalizadora. Intrinsecamente enredada à noção de “grupo de risco” e ao que ela implica, essa fabulação reitera e atualiza processos de marginalização e estigmatização. Um artifício retórico despolitizante que contribui para preservar, sem ser interpeladas nem tensionadas, boa parte das condições materiais, políticas e simbólicas que, até aqui, possibilitaram uma gestão da pandemia responsável por conduzir números crescentes de pessoas ao sacrifício.
Esse acionamento da noção de “grupo de risco”, em um cenário de desempenho sofrível do Estado na condução das políticas sociais, contribui para deslocar a responsabilidade relativa à gestão da proteção, do cuidado e da segurança sanitária para as famílias e os indivíduos, sobretudo as mulheres. “Tome todos os cuidados”, “lave bem as mãos”, “use álcool em gel”, “use máscara”, “mantenha o distanciamento social”, “isole as pessoas do grupo de risco”. Deixa-se, assim, toda a gestão nas mãos individuais, sem coordenação política, relegando à população a decisão sobre como agir. Mais uma vez, obliterando toda e qualquer discussão que considere fatores como classe social, condições sociais de existência, relações de gênero e outras hierarquizações e processos de marginalização, a noção de “grupo de risco”, associada a um discurso apoiado em noções individualistas, reitera um discurso de cuidado especial que deporta o sujeito à própria sorte – um “salve-se quem puder” em que cada indivíduo age conforme suas possibilidades e posições na estrutura social, obrigando a maioria a um gerenciamento de risco incalculável e inaceitável.
A ideia de “grupo de risco” opera como fator de naturalização e banalização das mortes. E até de um certo negacionismo da própria existência da pandemia. “Morreu porque era de risco”. “Morreria de qualquer maneira”. “Morreu de covid-19 ou com covid-19?” (Sakamoto, 2020). Desassocia-se a morte de sua causa etiológica ou responsabiliza-se a vítima. Aquilo que deveria ser indicador de cuidado vira predicado moral e opera como argumento, como se uma doença pré-existente ou a faixa etária representassem um passe-livre para a morte (Harayama, 2020; Spautz, 2020). O fato de ser presumivelmente pertencente ao imaginário “grupo de risco” torna a causa mortis certificada pela perda de tantas vidas, invisibilizando a responsabilidade de uma coordenação ético-política por parte dos órgãos e poderes governamentais.
Não se defende aqui um relaxamento da proteção e do cuidado de pessoas idosas ou com outras condições de maior ou menor vulnerabilidade. Pelo contrário. Ao mesmo tempo, é necessário ressaltar os enormes desafios de se enfrentar uma pandemia que, dia após dia, recrudesce nas periferias (Mathias & Torres, 2020) e se interioriza sem freios, em um país onde a gestão da crise humanitária se dá, principalmente, ao sabor de uma deriva classista, autoritária, racista, xenofóbica, sexista, capacitista e anti-ambiental, com doses de obscurantismo e fortemente orientada a atender interesses imediatistas, sobretudo econômicos.
Diante desse cenário, valeria favorecer abordagens que considerem fazer da escola um epicentro de confluências críticas e democráticas, capazes de também nos vincular à memória social das mobilizações e lutas políticas de outras temporalidades para produzir subjetividades não subordinadas à verticalidade de uma gestão ético-política do desastre e da morte. Uma escola engajada em favor das experiências coletivas e que não apenas evite, mas contraste a promoção sistemática de desinformação[6], silenciamentos, práticas autoritárias, humilhações, preconceitos, marginalização e exclusão.
Em um tempo em que o diálogo democrático, a reflexão e o conhecimento científico encontram pouco apreço entre governantes e seus acólitos, e em que parte expressiva da mídia mostra-se disposta a deixar-se capturar pelo discurso governamental e a reverberar a doxa ultraliberal[7] das fundações empresariais autoproclamadas “amigas da escola”, parece-nos imprescindível politizar criticamente o debate sobre a pandemia e, nesse ínterim, reafirmar a escola pública no cerne de um conjunto de confluências e variadas disputas. Um espaço onde os acúmulos de experiências e saberes construídos ao longo de distintas temporalidades ajudem a fazer pulsar as lutas democráticas em defesa de todas as vidas, da existência plural, da dignidade, em torno daquilo que inquieta e apaixona.
*Esse texto, em versão anterior, foi publicado no sítio da internet da Campanha Nacional pelo
Direito à Educação.
Referências
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Notas
[1] Importante sublinhar que paralelos podem também ser traçados com temporalidades e contextos de outras pandemias, considerando suas especificidades, memórias, seus saberes e acúmulos construídos, como nos casos da “gripe espanhola” e da epidemia de zika (BBC, 2020; Diniz & Carino, 2020).
[2] Processos de estigmatização operam no contexto da Covid-19 produzindo hostilidades que envolvem inclusive profissionais da saúde (Guimarães, 2020), percebidos não apenas como representantes de um “grupo de risco”, mas sobretudo como vetores de transmissão e contágio. Desse modo, desconsidera-se a precariedade das condições de trabalho responsáveis por fazer com que a taxa de letalidade entre tais profissionais seja, nessa pandemia, uma das mais altas do mundo (Fernandes, 2020).
[3] Pronunciamento do presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, noticiado em 24 de março de 2020, por Daniel Gullino, via O Globo.
[4] Pronunciamento do presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, noticiado em 16 de abril de 2020, por Matheus Schuch, via O Globo.
[5] Pronunciamento do presidente da República Federativa do Brasil, Jair Messias Bolsonaro, noticiado em 14 de maio de 2020 por Emilly Behnke, via UOL – conteúdo Estadão.
[6] A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com o apoio de dezenas de entidades e voluntários, tem produzido guias com informações checadas, dados sobre pesquisas, experiências e recomendações nacionais e internacionais, e análises sobre os impactos da pandemia no mundo da educação. Materiais indispensáveis para orientar docentes, gestores, estudantes, familiares e quem mais se interesse em atuar com segurança e de maneira colaborativa na proteção das pessoas, bem como em cobrar e garantir os direitos de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade ou emergência. Ver: https://campanha.org.br/covid-19.
[7] No Brasil, a gestão ético-política da pandemia Covid-19 investiu no ataque aos direitos trabalhistas de profissionais da educação e na estigmatização da escola pública.