Janeiro de 2018 foi marcado por um acirrado debate feminista transnacional. Coincidindo com a premiação dos Golden Globes, cujo clima foi definido pelos efeitos do #MeToo e pelo lançamento da nova campanha #TimeIsUp pela paridade salarial no mundo das artes, um manifesto assinado por 100 mulheres artistas e escritoras francesas foi publicado no Jornal Le Monde com o título a “Liberdade de Importunar”, criticando vieses e excessos da primeira iniciativa. As reações foram imediatas, tanto na França quanto nos EUA. Embora a repercussão da polêmica não tenha sido homogênea nos países do sul global, ela foi muito intensa no Brasil. O Observatório de Sexualidade e Política acompanhou de perto os primeiros momentos da controvérsia e fez uma compilação bastante completa de notícias e artigos publicado no Brasil. Mas também recomendamos a leitura da compilação de artigos em inglês e em francês, pois eles nos dizem que muito antes do Manifesto das francesas, interrogações estavam sendo feitas à campanha por feministas norte-americanas. Também chamamos atenção à diversidade de vozes envolvidas no debate, como por exemplo as mulheres e homens trans.
No Brasil
No país de 62.000 homicídios anuais, mais uma vez, registram-se assassinatos em que as dimensões de gênero e sexualidade não podem ser eludidas como causa agravante da violência letal de caráter estrutural. No começo de janeiro, O Globo e a Revista Fórum informaram que 8 prostitutas haviam sido assassinadas em Belém, inclusive três profissionais conhecidas por seu ativismo em favor da legalização do trabalho sexual. O Observatório da Prostituição mobilizou um abaixo assinado nacional em repúdio a mais um episódio da violência sistemática contra as prostitutas e a sua organização política. E, ao final do mês, os novos dados publicados anualmente pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) registraram 445 homicídios de pessoas LGBT em 2017, o maior número de mortes que a pesquisa registrou em 37 anos. Dentre estas, 179 vítimas são transexuais e travestis e 80% são negras, de acordo com a recente pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) publicada em comemoração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans. Em relação aos homicídios de pessoas trans, também destacamos a entrevista de Simmy Larrat, presidente da ABGLT, ao HuffPost.
Também se registraram violações contra os direitos das mulheres que recorrem ao aborto ilegal e inseguro. Três jovens, duas em Birigui (SP) e uma em Porto Velho (RO), foram denunciadas por procurarem serviços médicos com sintomas de abortamento e duas delas foram presas, devido à denúncia feita pelas casas de saúde, medida que contraria a Norma Técnica do Ministério da Saúde e questiona a ética médica. Um casal foi preso ao realizar um procedimento medicamentoso, acusados de aborto e ocultação de cadáver no dia 19 em Barra Mansa (RJ). Adicionalmente, a Agência Pública fez uma excelente investigação jornalística sobre o site e serviços do “Centro de Ajuda à Mulher” (CAM) que oferece ajuda para mulheres em situação de gravidez indesejada para persuadi-las – com base em argumento religiosos e informações incorretas – a desistirem de interromper a gestação.
Mas há também boas novas a registrar nesse árduo campo de debate. A primeira delas é que a BETA, a robô feminista já lançou uma campanha informativa sobre as falácias do CAM. A segunda é a Resolução 01-2018, recentemente emitida pelo Conselho Federal de Psicologia no dia 29, que complementa a resolução de 1999 e orienta os profissionais a atuarem dentro do paradigma da despatologização das travestilidades e transexualidades. A terceira é o artigo de Manoela Miklos e Lena Lavinas publicado no openDemocracy, que faz uma excelente análise dos resultados das recente pesquisas de opinião sobre aborto no Brasil, concluindo que: “Os ganhos do feminismo na construção de uma narrativa a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, baseada nas evidências acima, capaz de transformar concepções leigas ou conservadoras e ter impacto na legislação, suscitam uma reação raivosa que aciona a falsa moral e a criminalização para nos deslegitimar.” E, no final de janeiro, o Portal Esquerda.Net, do Bloco de Esquerda de Portugal, publicou (em texto e vídeo) uma entrevista de Sonia Corrêa sobre a trajetória do debate sobre aborto no Brasil.
Na esfera dos crescentes ataques a gênero e sexualidade, artigo de O Globo analisa as 14 legislações municipais que proíbem esses currículos e terão efeitos sobre cerca de duzentos e setenta mil alunos da rede pública ao redor do país. Parece-nos importante que a pesquisa e o ativismo em gênero e sexualidade continue atenta ao crescimento do autoritarismo social no sentido amplo. Por exemplo, registrou-se mais uma infração da dita imunidade acadêmica, pois a polícia de Alagoas realizou uma busca por armas no Encontro Regional de Estudantes de Filosofia do Nordeste. Ainda mais significativo, os resultados da pesquisa do Datafolha sobre o Projeto de Lei que pretende diminuir a maioridade penal para 16 anos concluem que o número de pessoas a favor da medida aumentou em relação a crimes graves de 26% para 36%. Nesse âmbito, também foi lamentável a decisão do Ministério da Justiça e Segurança Pública de revogar a obrigatoriedade de espaços de educação e de trabalho em prisões ainda em dezembro de 2017. Além disso, o belo artigo de Judith Butler na Folha de São Paulo comentando sobre os protestos à sua vinda ao evento “Os fins da democracia” e esclarecendo sobre a sua teoria, foi avaliado como um dos mais lidos em 2017 no jornal.
Contra esse pano de fundo, os traços cada vez mais acentuados da restauração conservadora na vida cotidiana do país foram objeto de ótimos exames críticos por Angela Alonso na Folha de São Paulo e Helena Vieira na Revista Cult.
Mas, como sempre, há paradoxos. No dia 17, o Ministério da Educação homologou a decisão que permite o uso do nome social em escolas da educação básica de todo o Brasil. No entanto, segundo Alexandre Bortolini, em comparação à Resolução do Conselho Nacional LGBT da Secretaria de Direitos Humanos em 2012, a nova medida é aquém frente à anterior por se retringir ao nome social, cuja linguagem reconhecia a identidade de gênero de maneira ampla, garantindo o não-encerramento em categorias identitárias e outros aspectos mais abrangentes do que o nome social. Sobretudo deve-se comemorar que a maior abertura do mundo esporte para a participação de pessoas trans, como informa o recente debate em torno ao desempenho de Tiffany na Superliga Feminina de vôlei. O Observatório de Sexualidade e Política reuniu algumas notícias e artigos sobre o assunto numa compilação. Não era assim em 2016, como informam artigos de Leonardo Peçanha e Fernando Seffner que publicamos por ocasião dos Jogos Olímpicos.
Ao redor do mundo
No dia 21 aconteceu em Washington a 2ª Marcha de Mulheres, reunindo mais de dois milhões de participantes. Veja nossa compilação. Ainda nos EUA, Larry Nassar, antigo médico da seleção americana de ginástica, foi o protagonista do maior escândalo sexual na história do esporte quando foi condenado a 175 anos de prisão no dia 24 que, inclusive, envolve a responsabilização legal da Federação Americana de Ginástica e Universidade Estadual de Michigan. Outro fato que chamou atenção foram os homicídios sequenciais de cinco atrizes pornôs nos EUA e no Canadá que revelam a precariedade das condições de trabalho das mulheres nessa indústria.
Na Irlanda, uma Comissão Especial recomendou um referendo para decidir a descriminalização do aborto (3.989 mulheres morreram no ano de 2016). Na Coreia do Sul, onde em 2010 se registraram 170.000 abortos, uma petição contra a criminalização enviada a à Corte Constitucional reuniu 230 mil assinaturas. No contexto da tentativa do presidente Trump de resguardar a liberdade religiosa de forma prioritária aos direitos civis, inclusive para negar o aborto e o casamento igualitário, um processo encaminhado à Justiça de Missouri pode ganhar forças frente a esse cenário e abrir espaço para a garantia do direito ao aborto. A peticionante argumenta que as crenças de sua religião do Templo Satânico, que não reconhecem a vida do embrião, são desrespeitadas pelas normas restritivas ao procedimento do Estado. Por último em relação aos EUA, mas não menos importante, os Democratas lograram uma grande vitória ao derrubarem o projeto de lei que visava criminalizar o aborto após 20 semanas de gestação – uma iniciativa patrocinada pelo Partido Republicano (GOP) e endossada pelo Presidente Trump. (Leia em inglês aqui.)
Nos EUA, um canal de mídia evangélico está utilizando temas LGBT para promover terapias de conversão sexual. O cenário se agrava depois que o Williams Institute evidenciou em estudo recente que quase setecentos mil pessoas já sofreram terapias de conversão sexual nos EUA e, de forma ainda mais grave, vinte mil jovens ainda a sofrerão por médicos ou líderes religiosos.
Em janeiro de 2018, a onda de repressão à população LGBT continuou no Egito,dessa vez ocasionando na prisão de 9 homens em Alexandria, se intensificou no Azerbaijão, em Bangladesh, onde os alvos principais desses ataques são pessoas trans e também no Paquistão, onde duas transativistas foram brutalmente violentadas e assassinadas.
Na Índia, a Suprema Corte indiana voltará a analisar a Seção 377 do Código Penal que criminaliza a homossexualidade. Neste contexto, o Conselho Nacional de Igrejas (protestantes) da Índia emitiu uma nota apoiando o fim da “Lei de Sodomia” (Leia mais em inglês aqui.). E, no dia 25, o Tribunal de Justiça da União Europeia proibiu a realização de testes psicológicos de orientação sexual, ferramenta utilizada para a certificação do pedido de asilo político. O Tribunal definiu que essa prática era insuficiente e feria o princípio de privacidade.
E, há várias notícias positivas sobre os direitos das pessoas trans. O Ministério da Saúde da Rússia emitiu uma nova norma para o reconhecimento da identidade de gênero. E no Chile, ao fim do mandato de Michelle Bachelet, cujas medidas progressistas podem ser ameaçadas com a posse de Piñera em março, uma Lei de Identidade de Gênero, que prescinde de diagnósticos e intervenções médicas, foi aprovada pela Câmara dos Deputados, apesar dos violentos protestos dos grupos anti-gênero na Câmara e da visita papal. Vale dizer, inclusive, que a visita do Papa ao Chile foi considerada um fiasco. Faremos um relato mais completo sobre esse evento em fevereiro.
Uma má notícia vem do Paraguai onde ainda em dezembro de 2917, o Ministério da Educação do Paraguai proibiu a utilização de qualquer material impresso ou digital que faça referência à “ideologia de gênero”. Em contraste, a Corte Interamericana de Direitos Humanos no dia 9 de janeiro, após consulta encaminhada pela Costa Rica, emitiu uma decisão que recomenda ao países membros que reconheçam o direito à identidade de gênero. Embora essa seja uma notícia muito positiva, é significativo e preocupante que a decisão tenha ampliado o apoio à direita conservadora que disputa a Presidência da Costa Rica em defesa dos “valores cristãos” para a corrida presidencial. (Leia mais aqui.)
Despedida
Com incrível pesar, lamentamos a perda da feminista uruguaia Teresita de Barbieri, uma das fundadoras do pensamento feminista latino-americano. Sonia Corrêa escreve sobre sua relação pessoal com Teresita e seus lado intelectual e político.
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Convocatória para o V Encontro Latino-americano e do Caribe “A sexualidade frente à sociedade”
Do dia 25 a 27 de junho de 2018 na Cidade do México
Prazo para submissão de artigos: 30 de março por email
II Encontro Maranhense Sobre Gênero, Educação e Sexualidade
20 de março na UFMA
Arte & Sexualidade
Na ocasião das recentes manifestações políticas que aconteceram no Chile contra o Vaticano e da conquista da Lei da Identidade de Gênero, trazemos novamente a artista chilena feminista Katia Sepúlveda.
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