Por Sonia Corrêa
Em janeiro de 2018, partiram três pessoas cujas vozes habitam lugares especiais na minha memória e formação intelectual: o poeta chileno Nicanor Parra, a escritora norte americana Ursula Le Guin e a feminista uruguaia Teresita de Barbieri. Esses encontros se deram em momentos dispersos no tempo e tiveram significados muito distintos. Porém, ao vasculhar os escaninhos interiores em busca das lembranças de Teresita, a pessoa que conheci de perto e por quem se tece o luto deste pequeno texto, refiz, não sei bem por que, essas várias trilhas.
Lembrei, por exemplo, que, há alguns anos atrás, ao ler, casualmente, seu árido poema sobre a vida de professor, voltei a uma noite fria de novembro de 1966 quando, na minha primeira viagem ao Chile, vi de longe Nicanor na Peña los Parra, a bodega de vinho e empanadas que a família Parra – inclusive Violeta- enchia de música na Rua Santo Domingo, em Santiago. Quanto à Ursula, nos anos 1970, li os Contos Orsinianos, uma saga escura que achei mais misteriosa e atraente do que o Senhor dos Anéis. Mas o encanto fatal se deu quando li a Mão Esquerda da Escuridão, ao final do anos 1980, ao mesmo tempo em que, nós as feministas brasileiras, fazíamos as primeiras incursões ao território do “gênero” guiadas por Gayle Rubin e Joan Scott. Contra o pano de fundo da teoria que desestabilizava meus modos de pensar, eu lia e relia, fascinada, os diálogos entre o viajante estelar, aparentemente terráqueo, e o habitante mutável e andrógino do planeta frio que é o outro personagem principal da novela.
Conheci Teresita algum tempo depois, em 1992, quando fui ao México pela primeira vez. Entre outros percursos, almoçamos, coincidentemente, num restaurante que se chama Hosteria Santo Domingo. Ruminando sobre esse emaranhado terminei por encontrar conexões que não se resumem a primeiras viagens ou ao espectro do santo fundador da ordem dos pregadores. Como Nicanor Parra, Teresita de Barbieri, viveu e sobreviveu ao autoritarismo extremo de nossa história comum e habita plenamente a contemporaneidade crítica latino americana. Como pensadora feminista, foi tão ousada e criativa quanto Úrsula nas suas excursões feministas na literatura de ficção científica.
Quando nos conhecemos, eu não conhecia seus escritos, entre outras razões porque àquela altura a circulação da produção feminista latino americana no Brasil era exígua. Encantei-me com sua acuidade, agilidade e flexibilidade intelectual enquanto passeávamos juntas, com Sara Lovera, pela zona central da Cidade do México: o café da manhã no Hotel Majestic olhando o Zócalo de cima, os murais de Rivera, a catedral, as ruínas astecas, o inesquecível almoço na Hosteria e, depois, mais passeios por San Angel e Coyoacán. Ela me apresentou à cidade onde vivia exilada desde os anos 1970 com uma generosidade ampla e um conhecimento excepcional de sua história, da sua sociologia e dos meandros feitos de fait divers.
Foi só depois desse encontro intenso que li Teresita e descobri os momentos iluminados da sua trajetória política e intelectual, como a famosa polêmica sobre marxismo e feminismo com Vilma Espín (esposa de Raul Castro e naquele então presidente da Federação de Mulheres Cubanas). Entre os anos 1990 e meados dos anos 2000, estive muitas vezes na Cidade do México, várias delas, por longos períodos. E, nos encontraríamos com bastante frequência em seminários, mas também de forma privada, encontros sempre cálidos e instigantes. Uma das últimas vezes em que nos vimos com tempo para trocas foi num desayuno mexicano en Coyoacán, no começo dos anos 2000.
Depois disso, minhas idas ao México escassearam e a compressão do tempo dissolveu nossos fios de conexão. Nas minhas últimas visitas à cidade, eu estava sempre tão tomada por atividades que já não encontrei tempo para procurá-la. Lamento muito. Relembrando agora os dois dias repletos de conversas, encantos urbanos e culinários do nosso primeiro encontro foi como voltar a um mundo que já não existe: o tempo em que era possível apenas deambular, amistosamente, refletindo sobre o estado do mundo e os desafios feministas.
Escrevo sobre Teresita imersa nessa cadência perdida. Mas também pensando que, muito significativamente, na semana anterior à sua partida ela esteve por perto. No contexto das intensas e mercuriais conversas online em torno à polêmica Manifesto das francesas Vs. #Metoo tive um breve debate com Manoela Miklos sobre patriarcado, depois do qual pensei que seria produtivo retornar a um texto clássico de Teresita: Sobre la categoria de género: Una introducción teórico metodológica, incluído na coletânea Direitos Reprodutivos, editada por Verena Stolcke e Sandra Azeredo e publicada pela Fundação Carlos Chagas em 1993 (ou seja há exatamente um quarto de século atrás).
Não fiz então o que faria tão logo soube que Teresita havia nos deixado: ir em busca do texto. Embora a publicação não esteja disponível online, Albertina Costa, a quem agradeço muito, generosa e rapidamente, me enviou a cópia digital do artigo, aqui disponibilizada. Há mesmo inúmeras razões para ler e reler essa reflexão seminal e exemplar de Teresita. A leitura evoca e conjura seu inestimável legado intelectual, como, por exemplo, sua presciência em relação ao que hoje conhecemos como interseccionalidade (gênero, classe, raça e etnia) ou, de maneira ainda mais contundente, a crítica sóbria e severa que ela desenvolveu quanto aos usos e abusos do conceito de patriarcado:
“Rapidamente a visão totalizadora de patriarcado se estendeu e foi retomada no discurso político e no fazer acadêmico. Mas não se precisaram – pois não havia informação, nem reflexão, nem tempo para fazer isso – os elementos constitutivos do sistema: núcleo do conflito, componentes, dinâmica, desenvolvimento histórico, variações, períodos, etc. A categoria patriarcado era em verdade um conceito vazio de conteúdo, raso do ponto de vista histórico, que nomeava algo, mas não transcendia a operação de nomear; essa definição vaga se converteu em sinônimo de dominação masculina, mas sem valor explicativo . Do ponto de vista político foi útil, mas não resistiu à polêmica com os críticos do feminismo e não permitia imaginar projetos viáveis de superação da dominação”
Não menos importante, para as feministas da minha geração é salutar lembrar, com ela, que, na “euforia do nascimento dos grupos e das mobilizações” fomos “parricidas”. Estávamos dedicadas a “esquecer o aprendido” e líamos apenas as autoras e autores que correspondiam a nossa voragem revolucionária, os quais, durante um bom tempo, não foram mais que dois: Simone de Beauvoir e Engels. Esse resgate é, a meu ver, tão importante e instigante quanto o apelo à precisão conceitual e metodológica que Teresita imprime ao texto que, desde então, tem me guiado em muitas coisas, inclusive no que diz respeito à cautela necessária nos usos de patriarcado.
Gracias Teresita, sigues con nosotras!