Setembro de 2016 iniciou-se sob o governo efetivo de Michel Temer sem que se possa esperar desdobramentos positivos no campo dos direitos sexuais e reprodutivos, pois as intenções e atos ao longo de sua interinidade, entre maio e agosto, já vinham sinalizando impactos perniciosos nessa seara (aqui e aqui).
De imediato, é lamentável ressaltar as perspectivas desalentadoras no campo do direito ao aborto. A morte de Caroline Carneiro, 28 anos, no mês de agosto, em decorrência de um aborto feito em condições inseguras e precárias no Rio de Janeiro foi e continua sendo objeto de um silêncio sepulcral, tanto por parte dos meios de comunicação em geral quanto das autoridades e gestores, de onde rotineiramente pouco ou nada se pode esperar nos últimos anos. Por demanda de organizações da sociedade integrantes do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher, a Subsecretaria de Políticas para as Mulheres da Secretaria de Estado de Ação Social e Direitos Humanos estabeleceu contato com a família de Caroline, mas essas conversações têm sido mantidas em absoluto sigilo, sem possibilidade de acompanhamento pela sociedade civil. Lamentavelmente, apesar das previsíveis reações de indignação e de artigos e manifestações pontuais, não foi possível fazer um acompanhamento do caso como seria necessário.
Por isso, surpreende, diante desse cenário adverso, que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, tenha se manifestado favorável ao direito ao aborto para mulheres infectadas pelo zika vírus, conforme pedido em ação da Associação Nacional de Defensores Públicos (Anadep) apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF). Em seu parecer, Janot afirma que autonomia reprodutiva, direito a saúde e a integridade física e psíquica seriam direitos fundamentais das mulheres violados pela criminalização do aborto em caso de infecção pelo vírus da zika. Chama atenção o fato de o posicionamento ter vindo da figura que está no comando da operação Lava-Jato, que tem investigado e denunciado autoridades do primeiro escalão de Brasília, inclusive do atual governo. Movimentos de mulheres receberam positivamente a manifestação, embora o cenário seja complexo para se prever o desfecho da ação, sobretudo quando se leva em conta os desdobramentos imprevisíveis no mundo político de Brasília.
A iniciativa de Janot deu-se logo em seguida a dois pareceres contrários, igualmente entregues ao STF: o primeiro assinado pelo Advogado Geral da União, Fábio Medina Osório, e o segundo emitido pela Advocacia do Senado Federal. Em ambos está presente a alegação de que a proposta viola o direito à vida. A íntegra do parecer da Advocacia do Senado Federal pode ser vista aqui.
Logo após o parecer de Janot, o presidente Michel Temer demitiu o advogado-geral da União, colocando convenientemente uma mulher como titular na Esplanada dos Ministérios, após a enxurrada de críticas decorrentes do gabinete formado exclusivamente por homens assim que assumiu interinamente a Presidência, em maio. Grace Fernandes Mendonça tomou posse assegurando que não irá abafar a Lava-Jato, acusação de que o governo federal vem procurando esquivar-se apesar dos indícios, e não abordou mais a questão do aborto para mulheres afetadas pelo zika. É compreensível, pois Grace Mendonça ocupou a secretaria de Contencioso da AGU na gestão de seu antecessor, sendo uma das autoras do parecer contrário à ação da Anadep.
Na semana seguinte a essa movimentação, o deputado Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara dos Deputados, patrocinador do processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e prócere da bancada evangélica, foi cassado por um placar avassalador: 450 colegas votaram pela destituição do mandato de um dos presidentes mais poderosos na história da Casa e contumaz defensor de pautas conservadoras e retrógradas, em particular sobre a questão do aborto. Cunha é um dos autores do famigerado projeto de lei 5069/2013, que dificulta o acesso de mulheres vítimas de estupro ao aborto legal, e que gerou forte reação nacional de movimentos de direitos das mulheres no final do ano passado, quando o texto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
O que esse desfecho significa para o direito ao aborto é incerto, diante do clima hostil e radicalizado que contamina a política nacional. Na semana seguinte, a atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Carmen Lúcia, revelou que a ação da Anadep pode ser votada até o final do ano, ressaltando que se trata de uma matéria “delicada”.
Sinais contraditórios também apareceram na mídia em setembro, especialmente após a revista Veja relembrar, na esteira da ação da Anadep, sua famosa capa de 1997 com mulheres, entre elas pessoas públicas, falando sobre suas experiências de interrupção da gravidez. Embora a revista Veja seja um ator crucial, assim como outros meios da grande imprensa, na sustentação da restauração conservadora em curso, é curioso que o assunto venha à tona em meio a um cenário desfavorável para o campo mais amplo dos direitos humanos, com ameaças a direitos sociais. Também é digno de nota o impulso da consulta online promovida pelo Senado Federal a respeito da Sugestão Legislativa 15, que busca regulamentar a interrupção da gravidez até a 12ª semana no Sistema Único de Saúde. Por que razões, em um ambiente pouco favorável, a enquete obteve um impulso em meados de setembro? O percentual de votos favoráveis à legalização do aborto chegou a 55.7% em 14 de setembro (aqui e aqui). Na primeira semana de outubro, observamos uma redução para 51.7%.
É importante ressaltar que a pauta do aborto não pode ser vista isoladamente, senão no marco de outras pautas conservadoras que têm se encorpado desde a mudança de governo. Isso fica evidente na recente apresentação de projeto de lei do deputado federal Rômulo Gouveia (PSD-PB), que votou favorável à PEC de redução da maioridade penal no ano passado, que obriga os hospitais a reportarem à polícia a ocorrência ou tentativa de aborto. O projeto de lei, além de representar uma violação flagrante à dignidade da mulher, contraria a Norma Técnica do Ministério da Saúde sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, revisada em 2005 para garantir à mulher a interrupção da gravidez sem a necessidade de notificar a polícia.
Finalmente e talvez mais importante, o 28 de setembro – Dia de Luta pela Descriminalização do aborto – em 2016 foi o mais bem organizado e vibrante dos últimos dez anos. Foi realizada a virada feminista, que pautou o tema nas redes sociais digitais durante 24 horas. Organizações e entidades se manifestaram em favor da legalização da prática, ressaltando os efeitos nocivos que a criminalização provoca à saúde e vida das mulheres.
As Finadas do Aborto, junto com outros grupos, organizaram uma performance de rua no Rio de Janeiro para chamar a atenção sobre a importância do debate e os riscos da penalização. Também é relevante citar o lançamento do estudo de Flávia Biroli (UnB) que analisa as condições do debate sobre direitos sexuais e reprodutivos na Câmara dos Deputados na atual legislatura, e do dossiê produzido pela Frente Nacional contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto .
Contudo, esta análise do panorama dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil estava sendo finalizada quando as eleições municipais trouxeram perspectivas não exatamente otimistas. A começar pela perda de representação quantitativa das mulheres. Apesar de 51% da população nacional ser composta por mulheres, apenas 639 foram eleitas prefeitas no pleito de 2016, representando 11,6% do total de prefeituras disputadas. Em 2012, tinham sido eleitas 663 (11,9%). Os homens continuam prevalecendo no comando do Executivo, representando 88,4% dos eleitos. Um sintoma previsível nas condições políticas do país. Mas essa leitura não deve ser linear, pois se, de um lado, as eleições municipais expõem com força a guinada conservadora, como argumenta Alberto Dines no Observatório da Imprensa, tornando 2016 um divisor de águas na política brasileira, por outro lado, a nova composição das Câmaras Municipais permite entrever outros sinais menos sombrios. A partir de 2017, 106 vereadoras atuarão nos Legislativos municipais das capitais do país, ante 98 que concluem seus mandatos em dezembro. Mas talvez o elemento mais importante, conforme lembra Carla Rodrigues é a qualidade dessa representação, ou seja, a eleição de vereadoras engajadas na agenda de direitos humanos das mulheres numa perspectiva interseccional, de que são exemplos as vitórias retumbantes de mulheres negras como Marielle Franco (RJ), Talíria Petrone (Niterói) e Áurea Carolina (Belo Horizonte), além de Fernanda Melchionna (Porto Alegre), cujas campanhas procuraram ressaltar o combate aos distintos, e interconectados, tipos de desigualdade (racial, gênero, classe, origem etc).
Feministas também comemoraram a eleição, em Cruz das Amas (Recôncavo Baiano), de Ilza Cruz (PCdoB), que é ativista do movimento de mulheres negras. E por fim, é preciso mencionar os resultados eleitorais de Indianara (PSOL/RJ) – militante transexual e prostituta –, que conseguiu o número necessário de votos para assumir a suplência e da ex-ministra Nilcea Freire (PSOL/RJ), que perdeu um posto de suplente por apenas 700 votos.
No que diz respeito especificamente ao aborto e aos direitos sexuais e reprodutivos, o desafio à frente é, portanto, transportar essas pautas que, no Brasil, têm sido, fundamentalmente nacionais, para os planos municipais.