O 28 de setembro (Dia de Luta pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe) deste ano foi celebrado em meio a um doloroso e cruel episódio de ataque aos direitos das mulheres no Brasil. O caso da menina de 10 anos de Guriri, em São Mateus (ES), cujo direito ao aborto foi inicialmente recusado, mesmo com autorização judicial, após engravidar por estupro cometido pelo tio, ganhou projeção midiática nacional. A menina foi brutalmente hostilizada por manifestantes religiosos e ultraconservadores no hospital onde enfim conseguiu realizar o procedimento, em Pernambuco.
Inspirada pelo caso da menina e para marcar a data, essa coletânea de artigos foi publicada pela coluna “Mulheres em Movimento”, editada por Carla Batista, na Folha de Pernambuco. O conteúdo da coletânea ganhou especial relevância no momento em que a publicamos, na última semana de outubro de 2020. Isso porque, na semana anterior, o governo norte-americano, em aliança com o Brasil e um grupo de regimes autoritários como Hungria, Polônia, Uganda, Belarus, Egito, Arábia Saudita, Líbia, Paquistão, Bahrein e Omã ou países onde as democracias têm muitos déficits, como Zâmbia, Congo e Níger, lançaram uma declaração que repudia o direito ao aborto e clama pela proteção do direito à vida desde a concepção. As análises que se seguem ilustram e iluminam com acuidade as razões por que essa posição abraçada pelo atual governo é espúria e inaceitável.
Cena brasileira
O primeiro artigo aborda a trajetória de criação dos serviços de aborto legal numa entrevista realizada com a médica Maria José de Oliveira Araújo, ativista e gestora no campo da saúde das mulheres. O tema foi retomado pela enfermeira e professora universitária Benita Spinelli que relembra sua trajetória profissional na área da saúde da mulher em Pernambuco, relatando o processo de acolhimento e cuidado à menina de Guriri, no centro onde atua.
“Do estupro como cortesia para o aborto inseguro” é o título de artigo da advogada Sandra Lia B. Barwinski, vice-presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR, no qual ela critica a Portaria 2.282, editada em agosto, poucas semanas após o caso de Guriri, e que criava dificuldade para a mulher estuprada acessar o aborto legal. A revogação e reformulação do texto da portaria no final de setembro também é analisada criticamente pela professora de Direito Silvia Pimentel e por Amanda Cabral, Flavia Moura, Larissa Ferraz e Maria Mendes, da Equipe da Optativa Direito, Gênero e Igualdade da PUC/SP.
Com um olhar a partir do Serviço Social, Luciene Maria Silva dos Santos, coordenadora do Serviço de Apoio à Mulher Wilma Lessa (Recife), ressalta o papel de resistência que as profissionais da categoria têm no enfrentamento da ofensiva religiosa contra a pauta da vida e dos direitos das mulheres. Também a partir de uma perspectiva profissional, desta vez da Psicologia, a pesquisadora Paula Rita Bacellar Gonzaga propõe uma reflexão sobre o papel da categoria “para dirimir as violências psicológicas a que mulheres que abortam estão sujeitas”. E a psicanalista Ana Laura Prates parte de conceitos lacanianos para produzir uma crítica à concepção biológica da maternidade no artigo “Colonização do corpo da mulher e direito ao aborto”, no qual critica tanto os fundamentalistas religiosos que atacaram a menina de Guriri quanto as portarias do Ministério da Saúde.
Mirada latino-americana
A série de artigos também inclui várias análises da situação do direito ao aborto em outros países latino-americanos. O primeiro deles, de autoria Ana Cristina González Vélez, trata da campanha das feministas colombianas para retirar o crime de aborto do Código Penal, uma mobilização parcialmente bem sucedida, pois no dia 18 de outubro a Corte Constitucional aceitou a demanda como legítima. Escrevendo da Argentina, onde a batalha pela descriminalização da prática persiste, a socióloga e feminista Beatriz Giri retraça o percurso de debate e mobilização desde a derrota do projeto de despenalização em 2018, destacando a importância de a sociedade civil continuar pressionando: “Eles são governo, nós somos movimento. Vamos continuar a manter o direito ao aborto na agenda pública e política, insistindo. Porque todos os dias morrem mulheres ou há ‘meninas mães’”, afirma.
Já a uruguaia Florencia Roldán, integrante da organização Cotidiano Mujer e da Articulación Feminista Marcosur (AFM), oferece um testemunho de sua experiência em abortar no país que legalizou a prática em 2013, apontando entraves e pontos a serem aprimorados para as mulheres que desejam interromper voluntariamente uma gravidez. E “O inacessível aborto legal no Chile”, de Anita Peña Saavedra (Corporación Miles Chile para os direitos sexuais e reprodutivos), traz um panorama das dificuldades de acesso ao aborto legal no pais andino, mesmo após a descriminalização parcial promovida em 2017.
Finalmente, a importância da mobilização da sociedade civil é, também, o tema do artigo de Izabella Borges, doutora em Língua, Cultura e Literatura Lusófonas pela Universidade Sorbonne Nouvelle, que analisa a lei de aborto francesa, promulgada nos anos 1970, com o intuito de destacar a importância das “mobilizações políticas, sociais, midiáticas e intelectuais” necessárias para a mudança no quadro legal.
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