A Portaria 2.282/2020, do Ministério da Saúde, é mais elucidativa em relação às concepções das autoridades brasileiras sobre o estupro, do que revelam sobre o aborto. A portaria, editada em 27 de agosto e modificada no dia 23 de setembro – às vésperas de ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, que em função das mudanças adiou a pauta – introduz procedimentos que afetam especificamente mulheres vítimas de violência sexual, pois são elas as únicas pessoas que podem engravidar em decorrência de um estupro. Se falar de estupro é algo doloroso, tratar dessa experiência pelo Direito não é um caminho menos tortuoso.
No Brasil começamos a falar de violência de gênero de forma mais aberta com a edição da Lei Maria da Penha, em 2006. Algo bem recente, portanto. O Direito em suas formas escritas, nas suas linguagens e principalmente por meio das instituições, produzem, e reproduzem, significados culturais e práticas sociais de uma elite, nem sempre consentâneas com a vida concreta das pessoas comuns. No entanto, apesar da Lei Maria da Penha se traduzir num paradigma público importante, remanescem concepções amealhadas por Silvia Pimentel, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian, em 1995, quando publicavam a pesquisa com o título Estupro: crime ou “cortesia”?(1). Na obra, denunciavam o tratamento ambíguo dado à questão da violência sexual contra a mulher pelas autoridades, que se revelava no momento da notícia do crime, quando quase sempre a mulher era – e ainda é – encarada com extrema suspeição, invertendo a sua condição de vítima em ré. Isso ocorria – ainda ocorre – não só no âmbito do sistema de justiça, e estampava a incidência de estereótipos sociais influenciando a investigação, o processamento e o julgamento de crimes de estupro.
A pesquisa das autoras afirmava que o primeiro passo para superação das práticas discriminatórias era a conscientização por parte dos indivíduos e das instituições sobre as estereotipias e discriminações de gênero que acriticamente se reproduziam – e ainda se reproduzem – nos campos social, jurídico, político, econômico e cultural.
Pois bem, 25 anos depois da publicação do livro Estupro: crime ou “cortesia”? estamos quase na iminência de ouvir novamente que o estupro foi uma “cortesia”. E, como explicam Saffioti e Almeida, no campo da sexualidade é possível encontrar toda sorte de preconceitos e estereótipos, como os juízos de valor que categorizam as mulheres em honestas e prostitutas, em boas mães e mulheres de família(2).
Como imperativo ao estabelecimento de uma sociedade justa e democrática, é inadiável responder à violência de gênero contra a mulher. Nesse sentido, em 2015, o Comitê que monitora a implementação da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), elaborou a Recomendação Geral nº 33, sobre acesso à justiça, explicitando o conceito e as implicações da discriminação contra as mulheres. Baseada em estereótipos de gênero, estigmas, normas culturais nocivas e patriarcais, a discriminação e a violência de gênero, que particularmente afeta as mulheres, podem ser agravadas por fatores de intersecção com etnia/raça, situação socioeconômica, religião ou crença, deficiência, dentre outros marcadores não menos importantes. Homens e mulheres são classificados pelo gênero e separados em duas categorias: uma dominante, outra dominada, dentro dos critérios da heteronormatividade. São relações assimétricas de poder que sedimentam as desigualdades e discriminações de gênero, e estruturam instâncias formais de controle social.
Nesse universo inteiramente centrado no masculino que é o sistema penal, ainda ressoa a concepção da mulher honesta, da mulher virgem como destinatárias da proteção, ou do casamento com o estuprador como causa de extinção da punibilidade. Se essas aberrações foram afastadas do nosso direito legislado, alguns estereótipos negativos, indicados por Elena Larrauri(3), relacionados às mulheres agredidas parecem revivescer a cada dia: a mujer irracional, referindo-se àquela que retira a denúncia; a mujer instrumental, porque denuncia para obter vantagem; a mujer mentirosa, que denuncia falsamente; a mujer punitiva, que provoca a violência só para poder denunciar; e a “mujer vengativa”, que pretende castigar seu parceiro e se vale do direito penal para isso.
Tais estereótipos, ganharam destaque no cenário nacional nos últimos dias, especialmente qualificar como discriminatória a Portaria do Ministério da Saúde, cuja constitucionalidade será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 737 e ADI 5662).
Das ações e políticas públicas possíveis e necessárias ao enfrentamento da violência de gênero, a opção do Governo Federal foi pela discriminação das mulheres em relação à saúde e à segurança. A Portaria 2.282, introduz barreiras à fruição do direito ao mais alto padrão de saúde física e mental, condicionando-o a medidas inerentes à segurança pública, como se mulheres fossem irracionais, instrumentais, mentirosas, punitivas e vingativas. Como se a violência do estupro não fosse uma violação aos direitos humanos das mulheres, mas uma cortesia às mulheres e a maternidade um destino indissociável. Se a Portaria for efetivamente adotada pelos (raros) serviços de saúde que são referência no atendimento à violência sexual e ao aborto legal, além de se institucionalizar as discriminações de gênero, redundará num significativo aumento da morbimortalidade materna.
O aborto é uma questão de assistência em saúde e o acesso ao aborto seguro e legal está intrinsecamente ligado ao direito de mulheres e meninas à vida, à saúde, à igualdade, à dignidade e à privacidade.
*Sandra Lia B. Barwinski – advogada, integrante da coordenadoria do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres – CLADEM Brasil e vice-presidente da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB/PR.
(1) Violência de gênero – poder e impotência, Rio de Janeiro: Revinter, 1995, p. 20, apud PIMENTEL, Sílvia, SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P., PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 24-25.
(2) SAFFIOTI, Heleieth I.B. e ALMEIDA, Suely Souza de. Violência de Gênero: Poder e Impotência. Rio de Janeiro, Livraria e Editora Revinter Ltda., 1995.
(3) LARRAURI, Elena. Cinco tópicos sobre las mujeres víctimas de violencia. A los tres años de aprobación de la LOVG (1/2004, de 28 de diciembre). Cuadernos de derecho judicial, p. 9-29, 2007
Em parceria com MULHERES EM MOVIMENTO, da Folha de Pernambuco